Saturday, January 27, 2007

O aborto e o desenvolvimento do cérebro

Afonso Gaiolas/Jackal, no seu post Referendo sobre o aborto ou um aborto de referendo? (também postado como comentário neste blog), entre outras coisas, escreve:

Em coerência devo portanto afirmar que, sendo o valor da vida o mais importante na escala das pertenças individuais, a partir do momento em que cientificamente me provarem que a centelha existe, devem ser repudiados todos os actos contrários ao seu desenvolvimento e maturação.
Pois, pois, centelha é muito vago...
Estava só a tentar ganhar tempo para que o meu cérebro me ajudasse...
Disse cérebro?
Se trocarmos um rim, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
Se trocarmos de coração, continuamos a ser nós próprios?
Concordam que sim!
E se trocarmos de cérebro?
Eu convictamente penso que não. Acredito aliás que a verdadeira fonte de longevidade para os seres humanos reside na substituição de "componentes", preservando ao máximo o único insubstituível - o cérebro.
Reside aqui portanto a resposta à minha pergunta.
É verdade que no momento da concepção, potencialmente temos uma vida a ser gerada. Mas estamos ainda no domínio das células indiferenciadas, e a verdade é que, mexendo os cordelinhos certos, ou errados, conforme o ponto de vista, podemos gerar uma miríade de monstruosidades que com a vida nada têm em comum. Não considero portanto que os inúmeros bancos de embriões existentes pelo mundo sejam imorais, uma vez que a essência de cada ser individual ainda não existe - que o cérebro ainda não se formou.
Parece ser cientificamente aceite que todos os principais componentes do cérebro são claramente distinguíveis praticamente cinco semanas após a concepção. Assim sendo, em nome da coerência, até essa data (ou qualquer outra mais precisa que cientificamente seja acreditada) não deveria ser criminalizada, penalizada, ou sequer moralmente condenável a decisão de inviabilizar a evolução do embrião.

A partir dai, Jackal expõe a sua tese de que o aborto só deveria ser legal até às 5 semanas, inclusive para os casos previstos na lei actual.

Eu até concordo com Jackal quando este diz que o nosso cérebro que faz de nós "nós" e acho que o inicio de uma "pessoa" pode ser estabelecido a partir do inicio da actividade cerebral. Agora a questão é - será que o cérebro já está formado às 5 semanas?

Mário de Sousa, em entrevista ao Jornal de Noticias:"O cérebro só amadurece a partir dos cinco meses, aí os neurónios conseguem permitir ao feto o movimento voluntário"

Carl Sagan, no livro "Biliões e Biliões": "Os cerca de 100 biliões de neurónios do cérebro constituem a base material do pensamento. Os neurónios estão ligados uns aos outros e as suas sinapses desempenham um papel fundamental no acto de pensar. Mas a interligação de neurónios em larga escala só começa entre a 24ª e a 27ª semana de gravidez".

É verdade que Mario de Sousa e Sagan referem-se à altura em que o cérebro começa a funcionar, não à altura em que o cérebro está formado. Eu, sinceramente, não sei se os neurónios já existem às cinco semanas; mas, mesmo que os neurónios já existam, se ainda não existem as ligações entre eles que permitem ao cérebro funcionar, poderemos considerar que o cérebro já está formado?

12 comments:

Anonymous said...

só a partir das 10 semanas é que se pode considerar o ser em vias de desenvolvimento aquilo que designamos de homo sapiens sapiens.
desde logo um ser humano e mais tarde uma pessoa.

Anonymous said...

No comentário acima, há oito anos atrás, estaria escrito "12 semanas" ao invés de "10 semanas".(E desde a fecundação que o ser em vias de desenvolvimento será, inevitavelmente, um homo sapiens sapiens. Não poderá ser outra coisa.) Os neurónios já existem, biliões deles, e já existe actividade neuronal. Pelo menos durante a 5ª semana de vida do embrião o cérebro já se encontra dividido nos 4 lobos e cerebrelo. O conceito de "cérebro formado" não existe. O consenso actual é no sentido de admitir a existência da neurogénese durante a vida adulta. Mas isto é o que se sabe hoje. A neurociência embrionária (e não só) tem registado desenvolvimentos notáveis e bastante surpreendentes nas últimas décadas, e não se vislumbram sinais de abrandamento - bem pelo contrário. Por isso, todos os actuais consensos são altamente precários. Ou seja, quer o comentário acima, quer a diferença entre o que o Sagan escreveu há 10 anos (por essa altura as únicas ligações neuronais a desenvolver são as do hipotálamo, de que só há registos a partir da 27 semana; e há bébés prematuros com 24 semanas que sobrevivem) e aquilo que é o actual estado da arte dá que pensar.

Anonymous said...

Reli o post e penso ter percebido melhor a questão do "cérebro formado". Um sistema nervoso central suficientemente desenvolvido ao ponto de controlar voluntariamente os movimentos corporais (que me permite estar a teclar este comentário) existe, seguramente, a partir da 23ª semana - o 5º mês referido pelo Prof. Mário de Sousa. Mas repito que falta saber muita coisa sobre o desenvolvimento fetal. Há alguns anos atrás este facto seria tomado como absurdo.

Anonymous said...

Pois e. Muitas das ligacoes entre neuronios, bem como diferenciacao neuronal so acontece depois do nascimento do bebe e durante os primeiros meses. Na realidade, existe uma coisa chamada plasticidade na sinapse, que nao vou aqui explicar, mas que acontece durante a vida adulta e que resulta no fortalecimento ou enfraquecimento de determinadas "ligacoes" entre neuronios. Conclusao: o cerbero humano e um orgao bastante complexo e e extramamente dificil decidir quando o cerbero esta "formado". segunda conclusao (esta pela logica do Miguel Madeira): como o cerbero nunca esta completamente formado, vamos abortar ate a idade adulta. Comecemos pelo Miguel Madeira, digo eu.
Claro que Nao

Miguel Madeira said...

A questão é quando o cérebro está suficiente formado para poder funcionar - todos os estudos conhecidos indicam que o cérebro só começa a funcionar por volta das 20 semanas de gestação.

Anonymous said...

Miguel, o problema mantem-se. Como define (ou como definem os estudos que menciona) que "o cerebro esta suficiente formado para poder funcionar". As 20 semanas sao um prazo tao arbitrario como qualquer outro. Eu posso definir "o cerebro funcionar" como: capaz de exercer uma actividade intelectual intensa. Por exemplo, ler a obra do Proust em 2 horas.
A sobrevivencia do bebe permaturo (24 semanas) e um criterio objectivo e melhor, mas tambem dependente de factores exogenos, como avancos na medicina que permitam a sobrevivencia de bebes com menos semanas.
O criterio "o cerbero funciona" e completamente falso.

Miguel Madeira said...

«Como define (ou como definem os estudos que menciona) que "o cerebro esta suficiente formado para poder funcionar"»

Eu defino "cérebro a funcionar" como um cérebro capaz de experimentar sensações, emoções e/ou pensamentos - no fundo, um cérebro capaz de ter uma vida "espiritual", em vez de ser um organismo comparável a uma alforreca que apenas tenha reacções reflexas.

Anonymous said...

Um recem-nascido e capaz de experimentar sensacoes e tem muitas reaccoes reflexas, mas nao emocoes e/ou pensamentos e muito menos tem vida "espiritual". Devo portanto concluir que e um organismo comparavel a uma alforreca.

Miguel Madeira said...

Primeiro lugar, é você mesmo que diz que um recem-nascido é capaz de exprimentar sensações (o que demonstra que não é comparável a uma alforreca).

Segundo, um recém-nascido não tem só reacções reflexas - muitos dos movimentos que um recém-nascido faz (ou mesmo antes de nascer) não são "reflexos".

Terceiro, creio que mesmo um recem-nascido pode estar triste ou contente, logo é capaz de sentir emoções.

Quarto, não tenho tanta certeza que um recem-nascido não seja capaz de pensar - claro que não pode pensar em termos verbais (já que ainda não sabe falar), mas provavelmente consegue imaginar coisas (e penso que é consensual que os bebés sonham - mesmo os prematuros)

Portanto, os recem-nascidos sentem sensações, controlam alguns dos seus movimentos, tem emoções, sonham, como é que pode argumentar que não têm vida "espiritual"??

Anonymous said...

Miguel Madeira:

Em termos neurológicos, o nascimento não tem importância alguma. Reafirmo que não pode existir tal conceito de cérebro formado. Actividade neuronal existe desde muito cedo, é complicado afirmar que uma é mais nobre que outra - para mais quando não sabemos exactamente qual é uma e qual é outra. Este critério parece-me muito frágil e, essencialmente, precário.

"Portanto, os recem-nascidos sentem sensações, controlam alguns dos seus movimentos, tem emoções, sonham, como é que pode argumentar que não têm vida "espiritual"??!"

Pode dizer exactamente isto de um feto.

Anonymous de há uns dias

Anonymous said...

"A sobrevivencia do bebe permaturo (24 semanas) e um criterio objectivo e melhor, mas tambem dependente de factores exogenos, como avancos na medicina que permitam a sobrevivencia de bebes com menos semanas."

Concordo. Se o Miguel Madeira procura um critério diferente da concepção, este é mais indicado.

Miguel Madeira said...

"Pode dizer exactamente isto de um feto. "

Exactamente - a partir das 20 semanas! (mais semana,menos semana)