Sunday, November 26, 2017

Trabalhar "sem incentivos"

No twitter, Carlos Guimarães Pinto escreve "Sem ponta de sarcasmo, há algo que n invejo nos professores: saberem que a sua progressão salarial depende exclusivamente da idade e ambiente político. Deve ser frustrante estar preso num ambiente profissionsl em q o mérito n vale nada" e "Tive um único emprego em que a parte fixa era mais de 80% do salário e onde as hipóteses de ser despedido eram quase nulas. Despedi-me ao fim de 5 meses. Não percebo como alguém aguenta uma vida de trabalho assim, sem incentivos."

Nem sei se isto não irá contra a netiqueta (fazer um post no blogger a comentar post no twitter, que têm mais o estatuto de comentários informais), mas atendendo que eu estou mais ou menos no estatuto de ter um emprego em que a parte fixa é 100% do salário e onde as hipóteses de ser despedido são quase nulas, senti vontade de escrever algo sobre isso, nomeadamente sobre a questão de porque é que algumas pessoas não aguentam uma vida de trabalho assim, e outras sentem-se perfeitamente bem ou até preferem dessa maneira.

Fazendo uma auto-análise, não será difícil perceber porque é que eu gosto de ter hipóteses quase nulas de ser despedido - sendo um caso extremo de personalidade INTP / Enneagrama tipo 5 (e não é preciso alguém acreditar nos modelos teóricos subjacentes a essas classificações para facilmente identificar o tipo de pessoa descrito...), entrevistas de emprego são complicadas para mim, logo um eventual despedimento seria problemático (logo, um emprego "seguro" é vital para mim); pelas mesmas razões, eu provavelmente seria largamente desadequando num cargo de chefia (que é o que normalmente significa "promoção"), logo também seria pouco provável (pelo menos, da perspetiva da boa gestão) que eu fosse promovido a um cargo desses; e depois (e talvez seja isso o principal...) eu ganho mais do que grande parte ou a maior parte das pessoas com quem em me relaciono quotidianamente no trabalho, o que possivelmente (nem que seja a nível do meu subconsciente) me leva a imaginar-me como estando no topo das remunerações - noto que é de pessoas que ganham menos do que eu que surge mais a conversa do "devia-se premiar mais os melhores".

Agora, um ponto de ordem - convém distinguir entre "promoções" e "aumentos salariais" (frequentemente chamadas "progressões", em funcionariopubliquês) - pelo menos para mim, "promoção" é quando alguém vai exercer um cargo mais elevado, enquanto um aumento pode ser simplesmente permanecer no mesmo cargo mas ganhando mais; é que de vez em quando aparecem comentadores a dizer que só na função pública há promoções por antiguidade, mas não há promoções por antiguidade na função público - penso que as promoções na FP sempre foram por concurso, o que durante muitos anos foi automático (e continua largamente a ser no caso dos professores, acho) foram as "progressões", que são exatamente a mesma coisa que as "diuturnidades" que creio que existem também nalgumas empresas privadas (exemplo - pdf).

Mas agora, o ponto do "mérito" valer nada - na verdade, em nenhuma organização as pessoas são promovidas pelo "mérito"; as pessoas são promovidas pela "perceção do mérito", o que é algo ligeiramente diferente (isto para não entrarmos sequer na questão do que significa realmente "mérito"...); isto aliás, também se aplica a outras questões como a das quotas (frequentemente opostas com o argumento "as pessoas devem ser nomeadas pelo mérito"; mas, salvo raríssimas exceções - p.ex., fusões empresariais em que passa a haver duas pessoas para cada cargo e é preciso escolher qual fica - é quase impossível nomear as pessoas para cargos com base no "mérito" porque se as pessoas ainda não desempenham esse cargo, como é que se sabe o seu "mérito"? A mim parece-me que a conversa "as pessoas devem ser nomeadas pelo mérito" na realidade quer dizer "as pessoas devem ser nomeadas pelo mérito que demonstraram noutros cargos e que temos esperança que se vá manifestar também no novo cargo").

Agora, abstraindo da minha experiência pessoal, que é capaz de não ser representativa (eu talvez não seja uma pessoa estatisticamente muito normal), eu diria que o gostar-se ou não dos aumentos salariais derivarem da "perceção do mérito" depende da confiança que alguém tenha em a "perceção do mérito" refletir o "mérito", e sobretudo da sua capacidade em a influenciar: alguém que esteja convencido que é fácil medir-se o mérito achará naturalmente que as pessoas devem ganhar mais pelo mérito; já alguém que veja a medição do mérito como um processo algo aleatório (e há montes de razões para alguém poder achar isso*) preferirá sistemas mais mecânicos e impessoais - e curiosamente acho que ambos os lados considerarão que o "seu" sistema é o que lhes dá maior controlo sobre a sua vida:

- Os que acreditam na medição do mérito acharão que com aumentos baseados no mérito controlam mais a sua vida, porque assim podem fazer alguma coisa para serem promovidos (tentarem trabalhar mais e/ou melhor)

- Os que acreditam que a medição do mérito é largamente aleatória acharão que com aumentos "mecânicos" é que controlam mais a sua vida, porque sabendo quando e que aumentos vão ter, podem melhor planear a sua vida (estilo "no ano 2027 vou ser aumentado, portanto 2023 vai ser o ano ideal para mudar de carro e ao fim de quatro anos e ao fim de quatro anos pagar uma pintura nova"), enquanto aumentos "aleatórios" (isto é, dependentes da opinião de outra pessoa) podem estragar o plano todo e fazê-los sentirem-se como se andassem à deriva numa jangada (há uma cena na série "House. M.D." em que alguém diz ao protagonista "Because when it comes to being in control, Gregory House leaves our faith healer kid in the dust. And that's why religious belief annoys you. Because if the universe operates by abstract rules, you can learn them and you can protect yourself. If a supreme being exists, he can squash you anytime he wants." - um raciocinio semelhante pode levar alguém a preferir um sistema de progressão na carreira baseado em regras abstratas em vez de num "ser supremo" que decide quem é aumentado e quem não é)

*uma poderá ser a pessoa não ter mesmo mérito, mas recusar-se a admiti-lo; todavia poderá haver razão mais benévolas.

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