Saturday, March 24, 2012

O resultado imprevisto do Acordo Ortográfico

Os defensores do AO apresentaram-no como uma forma de uniformizar a escrita da língua portuguesa; alguns dos seus críticos dizem que é uma tirania estatista, com o Estado a querer mudar a maneira como as pessoas escrevem.

Mas, atendendo à carrada de comentadores que terminam as suas crónicas dizendo "Fulano escreve de acordo com a antiga ortografia", e aos correctores ortográficos que agora vêm em duas versões (pré- e pós-AO), parece-me que o resultado prático acabou por ser que, agora, o "Português de Portugal" tem duas normas ortográficas socialmente válidas (note-se que não digo legalmente válidas), e cada um pode escolher qual quer seguir sem se considerar que está a escrever "mal" - no fundo, entramos numa situação parecida com a da Galiza, em que há duas normas concorrentes sobre qual a forma "correcta" de escrever galego.

Ou seja, contrariamente aos objectivos do acordo, não se uniformizou nada (muito pelo contrário); por outro, inversamente ao que diziam alguns críticos, não há nenhuma estatização da língua: muito pelo contrário - neste momento, na prática, há muito mais liberdade para escrever de forma diferente da ortografia "estatal".

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]

Friday, March 23, 2012

As indignações anti-indignação de Helena Matos

Um "tema de post" típico de Helena Matos é o "Anda tudo indignado com [determinado assunto]; no entanto...", seguindo-se uma descrição das razões pelo qual esses indignados estão errados, ou são contraditórios, ou hipócritas, ou coisa assim (exemplo A; exemplo B).

Por norma, essas "enormes indignações" ou "bolhas de indignação" que contesta são sobre assuntos que ninguém está a ligar senão ela...

"Os crimes que Nixon cometeu contra mim seriam legais"

Daniel Ellsberg: All the crimes Richard Nixon committed against me are now legal:

In the 1960s, Ellsberg was a high-level Pentagon official, a former Marine commander who believed the American government was always on the right side. But while working for the administration of Lyndon Johnson, Ellsberg had access to a top-secret document that revealed senior American leaders, including several presidents, knew that the Vietnam War was an unwinnable, tragic quagmire.


Officially titled "United States-Viet Nam Relations, 1945-1967: A Study Prepared by the Department of Defense,"–the Pentagon Papers, as they became known–also showed that the government had lied to Congress and the public about the progress of the war. In 1969, he photocopied the 7,000-page study and gave it to the Senate Foreign Relations Committee. In, 1971, Ellsberg leaked all 7,000 pages to The Washington Post, and 18 other newspapers, including The New York Times, which published them.

Not long after, he surrendered to authorities and confessed to being the leaker. Ellsberg was charged as a spy. His trial, on twelve felony counts posing a possible sentence of 115 years, was dismissed on grounds of governmental misconduct against him. In April 1973, the court learned that Nixon had ordered his so-called "Plumbers Unit" to break into the office of Ellsberg's psychiatrist to steal documents they hoped might make the whistle-blower appear crazy. In May, more evidence of government illegal wiretapping was revealed. The charges against Ellsberg were dropped. This led to the convictions of several White House aides and figured in the impeachment proceedings against President Nixon. (...)

Also, the PBS series POV is streaming “The Most Dangerous Man inAmerica: Daniel Ellsberg and the Pentagon Papers,” on June 13 and 14.


In this interview, Ellsberg says, "Richard Nixon, if he were alive today, would feel vindicated that all the crimes he committed against me–which forced his resignation facing impeachment–are now legal. " (Thanks to the Patriot Act and other laws passed in recent years.) And he says all presidents since Nixon have violated the constitution, most recently President Obama, with the bombing of Libya.

Thursday, March 22, 2012

Scitovsky and the Income-Happiness Paradox, por Mauricio Pugno e Cakes, capitalism & happiness, por Chris Dillow.

A tese dos autores - a razão porque, aparentemente, muitas vezes aumentos de rendimentos não vêm associadas a aumentos da felicidade auto-avaliada será porque a felicidade derivará mais de fazer coisas (cozinhar, tocar guitarra, escrever um blogue, etc.) do que de comprar coisas (um carro novo, uma casa nova, etc.).

Wednesday, March 21, 2012

Escola e criatividade

Creativity: Asset or burden in the Classroom? [pdf], por Erik Westby e V.L. Dawson - um estudo sobre a atitude dos professores face à criatividade e ao perfil comportamental dos seus alunos. A conclusão é que os professores dizem gostar de alunos criativos, mas ao mesmo tempo não gostam do "perfil comportamental" que normalmente é associado com a criatividade.

Teachers Don’t Like Creative Students, por Alex Tabarrok:

What the paper shows is that the characteristics that teachers use to describe their favorite student correlate negatively with the characteristics associated with creativity. In addition, although teachers say that they like creative students, teachers also say creative students are “sincere, responsible, good-natured and reliable.” In other words, the teachers don’t know what creative students are actually like.  (FYI, the research design would have been stronger if the researchers had actually tested the students for creativity.)
Uma ideia que me ocorre é se não estará a haver aqui uma confusão entre "criatividade" (ter ideias novas e originais) e "flexibilidade" (ter abertura perante as ideias novas e originais dos outros), e, quando os professores descrevem a sua ideia de um "aluno criativo", na verdade estão a descrever um "aluno flexível".

Marx estava certo?

Marx was right, por Chris Dillow:

- Some work by Jeremy Greenwood vindicates Marx’s claim that “the mode of production of material life conditions the general process of social, political and intellectual life.”
- The labour theory of value, much maligned as it is, does a rather good job of explaining relative prices
- Daniel Kahneman’s work on cognitive biases can be read as corroboration of Marx’s theory that capitalism generates an ideology which prevents people seeing its injustices.

- A lot of work in public choice is quite consistent with the Marxian view that “the executive of the modern state is but a committee for managing the common affairs of the whole bourgeoisie.”
Of course, Marx got some forecasts wrong*. Capitalism has not (yet!) collapsed - though it might yet - but in forecasting this he was largely elaborating upon the stationary state discussed by Smith and Ricardo.

But the fact is that, viewed from a narrowly empirical basis, Marxism scores rather well - and (arguably) quite possibly better than a lot of mainstream or neoliberal economics. Which raises the suspicion that the appeal of the latter over Marxism might rest on considerations other than empirical fact.

* We can leave central planning aside, as Marx probably wrote about as much on central planning as Adam Smith did on the invisible hand - which is to say, very little.

"blogspot.pt" - II

Afinal é fácil resolver o problema - se eu meter o link http://ventosueste.blogspot.com/ncr em vez de http://ventosueste.blogspot.com/, não é redirecionado para http://ventosueste.blogspot.pt/, não ficando preso no filtro anti-pornografia.

Mais informações: BlogSpot Published Blogs Being Accessed Using Country Code TLDs, em The Real Blogger Status; parece que a ideia é os blogues terem endereços diferentes conforme o país do leitor, de forma ao Blogger poder bloquear um blogue na Arábia Saudita ou na China sem o bloquear em Portugal.

Quando é que começa a vida de um zangão?

Para os que dizem que a vida começa com a concepção, e acrescentam que "não há qualquer dúvida científica sobre o que é o início da vida, seja ela vegetal ou animal. No pinheiro é o pinhão e na espécie humana é o zigoto", digam-me lá quando é que é o inicio da vida de um zangão.

Tuesday, March 20, 2012

"blogspot.pt"

Por qualquer razão, os endereços do Blogger passaram de "blogspot.com" a "blogspot.pt"; desde então que o filtro da internet no meu local de trabalho (para já, vamos assumir que eu costumo consultar os blogues na hora de almoço...) passou a considerá-los "pornografia" .

Será que o "gspot" activa automaticamente os filtros para a pornografia, e que estaria predefinida uma excepção para "blogspot.com" (que, com a mudança para ".pt", deixou de funcionar)?

Eu também

Vo Nguyen Giap will turn 101 this year.

Don't know why, but I just always assumed he'd been dead for decades.

Atenção que eu não vou fazer 101 anos; estamos era também convencido que Giap (o general vietnamita que derrotou americanos e  franceses) já teria morrido.

JOSEPH KONY, AMERICA'S PRETEXT TO INVADE AFRICA: US Marines Dispatched to Five African Countries

In a recent decision, the Pentagon confirms the sending in of Marine Special Forces to train Ugandan troops in the fight not only against Joseph Kony's Lord's Resistance Army (LRA) but also against Al Shabab in Somalia. Joseph Kony is being used as a pretext for outright military intervention in five African countries.

E ainda não pararam

De vez em quando gosto de relembrar esta história (e outras) contadas por Erik von Kuehnelt-Leddihn:

"Wilson was a genuine ideologue in the narrow sense of the term; his plan, unfortunately, was not to make democracy safe for the world, but rather to make the world safe for democracy. He was working towards a Djihad, a holy war to extend what he considered the American form of government. This was already evident in his dealings with Mexico before America's entry into World War I.

About America'sneighbor south of the Rio Grande he said, "Our friendship is a disinterested friendship, so far as our aggrandizement goes ... leaving them to work out their own destiny, but watching them narrowly and insisting that they shall take help when help is needed. "23

What sort of help he thought about we can gather from a conversation between Walter Hines Page, his ambassador, and Sir Edward Grey, Britain's Foreign Secretary. Page recorded it himself:

GREY: Suppose you have to intervene, what then?
PAGE: Make'em vote and live by their decisions.
GREY: But suppose they will not so live?
PAGE: We'll go in again and make 'em vote again.
GREY: And keep this up for 200 years?
PAGE: Yes. The United States will be here for 200 years and it
can continue to shoot men for that little space till they learn
to vote and rule themselves. 24"

Democracia, Ditadura e Progresso Tecnológico

Democracy, Dictatorship and Technological Change [pdf], por Carl Knutsen (Universidade de Oslo):

Abstract



This paper investigates how regime type afects technological change, arguably the most important determinant of long term economic growth. The paper's main hy- pothesis is that democracies have higher technology-induced economic growth than dictatorships. This hypothesis is deduced from a formal model where dictators are assumed to value both personal consumption and staying in office. In the model, dictators can restrict civil liberties and diffusion of information, which reduces economic growth, but increases dictators' probability of surviving in office. The model also implies that dictators enforce harsher restrictions on civil liberties if the global rate of technological change is low, if the capital shares of their economies are high, if their ability to discern politically dangerous from economically relevant information is poor, and if their positions in office are insecure. The hypothesis that democracies have higher technology-induced growth is tested on an extensive dataset, including data from more than 100 countries with some time series going back to the 19th century.

The hypothesis finds robust empirical support: Democracies produce higher Total Factor Productivity growth than dictatorships. The paper also discusses the hypothesis that dictatorships with high bureaucratic quality can mitigate democracies' advantage in generating technological change. This hypothesis finds only partial support.

Monday, March 19, 2012

Inglês extraditado para os EUA por... linkar

US wins extradition of British student over UK-based website (Russia Today, via LewRockwell.com):

A 23-year-old student from the UK will be extradited to the United States to face trial for operating a website overseas that linked visitors to external pages that hosted copyrighted material.


Richard O'Dwyer of Sheffield Hallam University in northern England will soon find himself on American soil following the United States’ recent victory in an attempt to extradite the student stateside over a website he ran. American authorities attest that O’Dwyer’s TVShack website, while not in violation of any UK laws where he lived and operated it, infringed on American copyright legislation.  (...)
O’Dwyer’s case is similar to that of Megaupload.com founder Kim Dotcom, who is facing a possible extradition from New Zealand to the US over his own site, one which provided file-sharing services for users and made money off of selling ads and subscriptions. Unlike Dotcom, however, O’Dwyer did not host any illegal material or allow users to commit crimes by uploading such. Instead, rather, O’Dwyer managed a website that just contained links to other site, something his attorney says is on par with the services Google offers.


"If Richard appears to have committed a crime in this country – then try him in this country,” he mother, Julia, tells BBC today. She adds that she believes that her son was “sold down the river” by the government and cautions others to be weary of UK officials siding with pressure from the US.

Tide - o novo grande negócio da economia clandestina?

Tide Detergent Being Stolen From Stores Across the Country (Yahoo News):

Tide laundry detergent is meant to be used for household cleaning purposes, but thieves are turning it into something dirty. Authorities are reporting a spike in thefts of Tide, and in some cities they are setting up task forces where the detergent is sold to track the number of bottles in stores. Police believe thieves are using the soap on the black market, which retails for $10-$20, to buy drugs. On the black market, Tide is often referred to as "liquid gold" and can go for $5-$10 per bottle.

Last year, in St. Paul, Minnesota, a man is alleged to have stolen $25,000 worth of Tide over 15 months before authorities captured him. Stores such as CVS have amped up security measures to prevent theft; at some locations the detergent is kept in a locked container and an employee must retrieve it for customers.

So why is Tide the only detergent being targeted? Authorities list several reasons: Tide is instantly recognizable because of its Day-Glo orange bottle; it is one of the most expensive brands of laundry detergent; and it does not have serial numbers, so it cannot be tracked.
Ou é apenas um rumor posto a circular na internet para ver quem é que acredita na história (ver os comentários a este post sobre o assunto)?

Vouchers para combarer a fome?

In Famine, Vouchers Can Be Tickets to Survival (New York Times):

The town of Dhobley, Somalia, sits at the gateway of hell. Just west of Dhobley is the border with Kenya, and the road to Dadaab, which hosts a giant complex of refugee camps; Dhobley has become the last stop in Somalia for a growing stream of desperate, starving people in flight from famine. In Dhobley, as well, drought has ruined crops and felled cows. There is no government to help. The town is a battleground; control of Dhobley has teetered between the Shabaab Islamist militant group and government forces. Shabaab has blocked food aid from entering Dhobley and burned a food truck, but soldiers from all sides have stolen food meant for the destitute. The usual street life of an African village — children playing, women laughing together — has vanished. Gunshots are a constant background noise — “like birds singing,” said Tracy Stover, the emergency coordinator in Dadaab for the humanitarian group World Concern.


It is too dangerous for aid workers to come to Dhobley. Food aid is not getting through. Yet some in Dhobley are eating.

World Concern, a Seattle-based Christian humanitarian group, and its Somali partner, the African Rescue Committee, provide 1,800 families every two weeks with rice, beans, cooking oil, salt and sugar for their tea. The recipients are both residents and families from elsewhere in Somalia who have fled to Dhobley. Another 800 families a week, mostly the displaced who have come to Dhobley, get goods such as mosquito nets, pots, spoons, jerry cans for water, sleeping mats and plastic sheeting.

Sunday, March 18, 2012

O que são os "Custos de Interesse Económico Geral"?

Quando recebemos a factura da electricidade, há lá uma coisa chama "Custos de Interesse Económico Geral". Em que é que consistem esses custos?

A Entidade Reguladora do Sector Eléctrico explica [pdf]:

[clicar para ver melhor]

O que interessa para aqui é o gráfico da direita, em tons de castanho.

No documento, a ERSE explica que os "sobrecustos com a produção em regime ordinário" se referem aos "[s]obrecusto[s] dos contratos de aquisição de energia, custos para a manutenção do equilíbrio contratual e garantia de potência."

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]

Thursday, March 15, 2012

Sistemas monetários-financeiros alternativos

A propósito da discussão entre o ladrão de bicicletas João Rodrigues e o insurgente Luciano Amaral sobre o sistema financeiro actual e as suas possíveis alternativas (socialização? "disciplina do mercado", quiçá com regresso ao padrão-ouro?), deixo aqui as opiniões de 3 pensadores do século XIX (pelo menos dois deles - provavelmente os menos conhecidos - escreverem em épocas e contextos em que as "corridas aos bancos" - e respectivas falências - eram frequentes) sobre o assunto:

Pierre-Joseph Proudhon - Solution of the Social Problem [pdf, traduzido para inglês por Henry Cohen, em 1927]; como o nome indica, fala sobre muita coisa, mas grande parte do texto tem a ver com a organização do sistema de crédito

Lysander Spooner - A New System of Paper Currency

Benjamin Tucker - Free Money First, Free Banking, Necessity for a Standard of Value e The Redemption of Paper Money: alguns ensaios do autor sobre a moeda e o crédito

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]

Obama, o defensor dos Direitos Humanos

President Obama Wants A Yemeni Journalist To Be Stuck In Prison For Embarrassing The US Government, na Business Insider

Obama’s personal role in a journalist’s imprisonment, por Glenn Greenwald, na Salon

Why Is President Obama Keeping a Journalist in Prison in Yemen?, em The Nation

Wednesday, March 14, 2012

A electricidade e as energias renováveis

Em primeiro lugar, confesso que ainda não percebi se, no meio desta floresta de subsídios, taxas, apoios, "custos de interesse económico geral", etc., a electricidade fica mais cara ou mais barata para o consumidor final.

Mas vamos à questão principal - faz sentido haver apoios às energias renováveis; ou (numa expressão que eu prefiro), às energias não-poluentes? À primeira vista parece que sim: afinal, parece haver benefícios para a sociedade no seu todo na produção de energias por meios não poluentes, logo parece ter lógica haver subsídios a esses tipo de energia.

Mas a verdade é que não existe nenhum benefício social no uso de energias não-poluentes; o que há é um prejuízo social no uso de energias poluentes. É verdade que um aumento do consumo e produção de energias não-poluentes reduz os prejuízos da poluição; no entanto, se o individuo, em vez de usar energia não-poluente, não usasse energia nenhuma também existia essa ausência/redução de custos sociais. Dando um exemplo: num dado período de tempo, o Manuel consome 100 kilowatts-hora (KWh) de energias não poluentes e 400 KWh de energias poluentes; a Luciana consome 300 KWh de energias poluentes: ou seja, o Manuel polui mais que a Luciana, mas a energia que ele consome é, no total, mais subsidiado do que a da Luciana.

Ou seja, o que deve haver não é subsídios ou apoios às energias não-poluentes, mas sim impostos adicionais sobre as energias poluentes; depois, se as pessoas e empresas reagem a esses impostos adicionais mudando para as energias não-poluentes ou simplesmente reduzindo o seu consumo de energia, é um assunto para "o mercado" decidir (sim, eu às vezes tenho uns momentos de quase-liberalismo; de qualquer maneira, este post está sendo escrito no contexto da economia mista actualmente existente - se estivéssemos a falar, p.ex., de uma economia planificada por conselhos operários, as políticas a adoptar já seriam totalmente diferentes).

Um possível contra-argumento - o consumo de energia electricidade provavelmente não cresce de forma proporcional ao rendimento: duvido que alguém que ganhe 5.000 euros por mês consuma 10 vezes mais electricidade que alguém que ganha 500; se assim for, é de esperar que as despesas com a electricidade representem uma maior proporção das despesas dos consumidores de menores rendimentos, de forma que o tal imposto adicional sobre as energias poluentes acabaria por ser regressivo, já que (directa ou indirectamente) iria afectar mais as famílias mais desfavorecidas. Mas penso que a solução para isso seria usar a receita adicional desse imposto para baixar outros impostos que incidem sobre os mais pobres (como o IVA e os escalões inferiores do IRS), ou então para financiar um "dividendo do cidadão" (um dos meus pet issues...).

[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]

A praxe académica

Acerca da discussão n'O Insurgente e do documentário "Praxis", Luis Pedro Mateus, no Centro Social, escreve:

[o documentário] se dirige principalmente a academias que de tradição académica muito pouco têm, se é que se pode afirmar mesmo que o que têm é Praxe Académica. É o caso de Lisboa, Évora e afins, onde o fenómeno das praxes é algo recente e que se baseia em “caçoadas” a caloiros. Coisa que, sendo parte da Praxe Académica, não a define nem a resume. Desde logo, ao focar-se em Academias bastante desenraizadas dum propósito tradicional, não contribui para um espelho fiel do que são as tradições académicas e muito menos para uma verdadeira compreensão do que é a verdadeira Praxe Académica. (...)

o autor, de todas as actividades e dinâmicas que se englobam na Praxe Académica, decide apenas focar-se, pelo que é dado a parecer, nas “caçoadas” aos caloiros, nas recepções para eles preparadas pelos mais velhos. Ora, mais uma vez, ao focar-se apenas nessa prática e ao ignorar dezenas de outras, está a enviezar a sua amostra. Porque não uma abordagem aos cortejos de queima das fitas? Ao cortejos de Latadas? A imposições de insígnias? A serenatas? Tudo isto faz parte do universo das tradições académicas, mas parece que se insiste em ignorá-lo. Infelizmente.
Penso que o problema aqui é que, pela minha experiência, pelo menos de Loures para baixo, "praxe" é sinónimo de "recepção ao caloiro" - ninguém (ou quase) chama "praxe", p.ex., à Semana Académica de Lisboa, ao traje académico, à benção das fitas, etc; e, pelo menos no ISEG dos anos 90, a "Comissão de Praxe" era formada no principio do ano lectivo e dissolvida após a "recepção ao caloiro". Também no Algarve, quer antes de ir para a faculdade, quer depois de regressar, nunca ouvi ninguém falar (no contexto universitário) de "praxe" com outro sentido que não esse. Aliás, é frequente dizer-se "na universidade X, a praxa dura 1 semana; na Y, dura 3 semanas, etc."; ora, se a palavra "praxe" tivesse o significado corrente que Luis Mateus lhe dá, a praxe não duraria um dado período de tempo, seria até acabar o curso.

Voltando ao ISEG dos anos 90, e à terminologia em uso na época, "praxe" significava "recepção ao caloiro"; todos os outros hábitos e costumes da "vida estudantil" (de certeza que muito menos codificados do que em Coimbra) eram designados por "espírito académico".

Ou seja, pelo menos para a maior parte das pessoas de Loures para baixo (mas diga-se que eu não faço a menor ideia de onde o Luis Pedro Mateus é, vive ou viveu), o argumento "a praxe não é só as «caçoadas» aos caloiros" é como, numa discussão sobre se os Estados Unidos têm uma política imperialista, alguém argumentar que os Estados Unidos Mexicanos há mais de 150 anos que não intervêm noutros países (excluindo eventualmente intervenções multilaterais no quadro da ONU ou da Organização dos Estados Americanos). Formalmente é correcto, mas não tem nada a ver com o que se está a discutir: não só quase ninguém (pelo menos nas zonas que conheço) usa "praxe académica" nesse sentido lato, como os críticos da "praxe académica" usam o termo exclusivamente ou quase nesse sentido.

Sunday, March 11, 2012

O objectivo da "agricultura biológica"

João Miranda, no Blasfémias: «A agricultura “biológica” existe para que as pessoas possam comer produtos mais saudáveis» (esta passagem descontextualizada pode dar uma ideia errada da opinião de JM; o conjunto do post é contra a agricultura biológica).

A mim parece-me que há razões muito mais fortes (e cientificamente mais sólidas, diga-se de passagem) para a agricultura biológica do que "comer produtos mais saudáveis", nomeadamente os efeitos da agricultura não-biológica sobre os ecossistemas naturais:
 
a) Os pesticidas não afectam apenas a "vítimas" predefinidas - afectam também outros animais, a água etc., e sobretudo tendem a acumular-se ao longo da cadeia alimentar: um insecto apanha com o pesticida, um melro come o insecto, um falcão como o melro, etc.

b) O uso de fertilizantes artificiais prejudica a fertilidade natural do solo. Quando o solo é fertilizado com matéria orgânica, o que acontece é que algumas bactérias e fungos transformam essa matéria em amoníaco e em nitratos (que são nutrientes para as plantas); assim a fertilização "natural", além de fornecer nitratos às plantas, estimula o desenvolvimento das tais bactérias e fungos que se alimentam de matéria em decomposição e que contribuem para manter o solo fértil. Pelo contrário, se o solo for fertilizado com nitrato artificial, o efeito sobre as tais bactérias é o oposto: tal como o CO2 é potencialmente tóxico para nós (que produzimos CO2), os nitratos são tóxicos para as bactérias produtoras de nitratos (por norma, um ser vivo não consegue viver rodeado dos seus excrementos); assim, os nitratos artificiais matam as tais bactérias e tornam mais díficil ao solo produzir nitratos por si próprio (usando uma terminologia importada de outro contexto, podemos dizer que os adubos "químicos" favorecem uma "cultura de dependência" em que o solo, sendo "alimentado" com nitratos já fabricados, se torna incapaz de produzir nitratos por ele próprio).

Note-se que nenhuma destas razões para ser a favor da agricultora biológica (e há mais, estas são só as que me parecem mais relevantes) tem a ver com "produtos mais saudáveis"; e penso que estes efeitos até estão muito mais cientificamente comprovados do que a tal questão dos produtos serem mais ou menos saudáveis; aliás, quando leio noticias do género "estudo indica que alimentos biológicos não são mais saudáveis que os convencionais" ou "cientistas contestam metodologia do estudo que diz que os alimentos biológicos não são mais saudáveis", tendo a pensar "e o que é que isso interessa? Não é esse o argumento fundamental a favor da agricultura biológica".

[Uma nota: isto não é uma critica ao ponto fundamental do artigo do JM - que de qualquer maneira tem mais a ver com a "pecuária biológica" do que com a "agricultura biológica"; se a situação que o JM descreve fosse verdade - e parece que não é, mas isso é outro assunto - a sua crítica faria sentido, fosse qual fosse o objectivo da agricultura biológica]

Saturday, March 10, 2012

"Evento de crédito" na Grécia

ISDA [PDF]:

In light of today’s EMEA Determinations Committee (the EMEA DC) unanimous decision in respect of the potential Credit Event question relating to The Hellenic Republic (DC Issue 2012030901), the EMEA DC has agreed to publish the following statement:

The EMEA DC resolved that a Restructuring Credit Event has occurred under Section 4.7 of the ISDA 2003 Credit Derivatives Definitions (as amended by the July 2009 Supplement) (the 2003 Definitions) following the exercise by The Hellenic Republic of collective action clauses to amend the terms of Greek law governed bonds issued by The Hellenic Republic (the Affected Bonds) such that the right of all holders of the Affected Bonds to receive payments has been reduced.
É daquelas situações que, há partida, não é muito fácil se são boas ou más notícias para a economia mundial, mas à partida dá-me a ideia que são boas (isto é, se os credores da Grécia vão ver os seus seguros activados, isso faz com que, no geral, seja mais fácil negociar restruturações de dívida de países à beira da bancarrota; e se uma organização - a ISDA - que representa largamente as seguradoras - acha que os seguros devem ser pagos, quer dizer que há dinheiro para os pagar sem provocar um colapso do sistema financeiro mundial); no entanto, é possível que eu esteja a ver mal a coisa, e isto sejam afinal más notícias.

Friday, March 09, 2012

Endividamento para pagar cursos

No Blasfémias, é aventada a tese que, se os futuros licenciados tiverem que pagar os cursos (e endividarem-se para isso), "[a] qualidade do ensino e a empregabilidade dos cursos tornar-se-ão assim os requisitos principais da concorrência entre Universidades. Cursos da treta, que apenas garantem o título académico e o empolamento da economia não transaccionável, tenderão a desaparecer".

Essa teoria é muito popular, mas parece-me não ter grande suporte, nem na prática, nem na teoria.

Na prática, pelo menos em Portugal, é no ensino pago (particular) que proliferam os "cursos da treta".

Mesmo em teoria, não há grande razão para, se alguém ter que pagar o curso, seja mais cuidadoso a escolhé-lo: pelo menos, se seguirmos o paradigma do Homo economicus, que tenta sempre obter o máximo de benefícios com o mínimo de custos, os estudantes irão escolher sempre o curso com maiores possibilidades de rendimento (estou adoptando uma definição ampla de "rendimento", que incluí também satisfação pessoal, estauto, etc., e não apenas rendimento monetário), idependentemente de pagarem ou não pelo curso; vejo realmente um mecanismo pelo qual o ensino pago e, sobretudo, o endividamento podem orientar os alunos para cursos com maior rentabilidade: é lógico assumir que, quanto mais "pobre" alguém for, maior importância irá dar a coisas como "dinheiro" e "emprego" face a coisas como "satisfação profisional"; ora, se os estudantes têm que pagar os cursos universitários e endividarem-se para isso, isso vai "empobrecé-los" relativamente a um cenário em que a formação universitária fosse gratuita, logo irá fazé-los dar mais importância à empregabilidade e menos à satisfação profissional.

Mas mesmo esse efeito não me parece tão linear assim:

a) se o terem que pagar a formação universitária "empobrece" os estudantes à saída da universidade (porque nesses anos tiveram a gastar dinheiro), "enriquece-os" à entrada (porque afastará alguns alunos de meios desfavorecidos), logo temos dois efeitos de sinal contrário

b) Se os cursos com mais empregabilidade forem mais caros (pondo as coisas de outra maneira  - montar uma universidade com cursos de Relações Internacionais, Gestão de Recursos Humanos e Ciências da Comunicação é relativamente barato), um aumento da comparticipação dos alunos no custo da educação irá afastá-los desses cursos (no fundo, no sistema actual, pelo menos no ensino público, os estudantes de Química e de Engenharia dos Materiais estão a ser subsidiados desproporcinalmente, o que em príncipio atrairá alunos para esses curso).

Mais um ponto, acerca da tese que as escolhas académicas dos alunos portugueses contribuiem para o enviesamento da economia em favor dos sectores não-transacionáveis (ver também aqui): aparentemente, os preços no sector não-transacionável têm crescido mais que no sector transcionável; ora, se o que se estivesse a passar fosse muita a gente a tirar cursos e a procurar empregos nos sectores não-transacionáveis, o resultado deveria ser o oposto - a inflação ser menor nesses sectores (aumento da oferta > redução dos preços).

Tuesday, March 06, 2012

Conan, o liberal de esquerda?


Conan, the Liberal, por Ben Dobson, no Overthinking It:
I felt that it would be worthwhile to look at an oft-ignored aspect of the older Conan movies. Not only are the movies Conan the Barbarian and Conan the Destroyer politically charged, they’re also, despite being directed by John Milius, much more progressive than most movies released around that time. Specifically, I’d like to point out this series’ feminist, anti-racist and anti-theistic themes.


Feminism

The primary goal of feminists is equality between the sexes, and from what we can tell in the Conan movies, there are several cultures that have embraced this principle. (...)

Racism


It cannot, however, be said that Robert E Howard’s original stories were devoid of racism. However, in the films, equality of the races was as little a question as equality of the sexes was.

Conan was trained in combat by Asians, and educated in the philosophy of various other cultures. He had friends of multiple ethnicities (...)

Religion


Even more groundbreaking is Conan’s take on organized religion. Leftist politics have been associated with atheism since Jean Meslier, a French proto-communist, wished that the nobility would be strangled with the entrails of the priests (a quote which Diderot borrowed). Conan is as much of an atheist as one can be in a time when gods walk the earth, and the script goes out of its way to make theistic religion look foolish.
Confesso que tive uma certa dificuldade em arranjar um título para o post - "o liberal" não fazia sentido na Europa; mas "o esquerdista" (ou "o socialista") também não, porque os tópicos em questão (essencialmente "social issues") não têm muito a ver com os temas típicos do debate esquerda/direita na Europa.

Monday, March 05, 2012

Efeitos de um default grego

Implications of a Disorderly Greek Default and Euro Exit, segundo o  Institute of Internation Finance (via Business Insider):

There are some very important and damaging ramifications that would result from adisorderly default on Greek government debt. Most directly, it would impose significantfurther damage on an already beleaguered Greek economy, raising serious social costs.

The most obvious immediate spillover it that it would put a major question mark againstthe quality of a sizeable amount of Greek private sector liabilities.

For the official sector in the rest of the Euro Area, however, the contingent liabilities thatcould result would seem to be: 
  • Direct losses on Greek debt holdings (€73 billion) that would probably result froma generalized default on Greek debt (owed to both private and public sectorcreditors); 
  • Sizeable potential losses by the ECB: we estimate that ECB exposure to Greece(€177 billion) is over 200% of the ECB’s capital base; '
  •  The likely need to provide substantial additional support to both Portugal andIreland (government and well as banks) to convince market participants that thesecountries were indeed fully insulated from Greece (possibly a combined €380billion over a 5 year horizon); 
  •  The likely need to provide substantial support to Spain and Italy to stemcontagion there (possibly another €350 billion of combined support from theEFSF/ESM and IMF); 
  • The ECB would be directly damaged by a Greek default, but would come underpressure to significantly expand its SMP (currently €219 billion) to supportsovereign debt markets; 
  • There would be sizeable bank recapitalization costs, which could easily be €160billion. Private investors would be very leery to provide additional equity, thusleaving governments with the choice of either funding the equity themselves, orseeing banks achieve improved ratios through even sharper deleveraging; 
  • There would be lost tax revenues from weaker Euro Area growth and higherinterest payments from higher debt levels implied in providing additional lending; 
  • There would be lower tax revenues resulting from lower global growth. Theglobal growth implications of a disorderly default are, ex ante, hard to quantify.Lehman Brothers was far smaller than Greece and its demise was supposedly wellanticipated. It is very hard to be confident about how producers and consumers inthe Euro Area and beyond will respond when such an extreme event as adisorderly sovereign default occurs

REPORT: Eastern Libya Is About To Declare Itself An Autonomous State Read more: http://www.businessinsider.com/report-eastern-libya-is-about-to-decla

(via BusinessInsider) A report from British intelligence company Exclusive Analysis states:

• Eastern Libya is about to declare itself a self-governing state within a federal Libya. The new state will extend beyond historical Cyrenaica to include part of oil-rich Fazzan in the Gulf of Sirte. Eastern Libya has 66% of Libya’s oil production but only 25% of its population.

(...)
• The Tripoli government is likely to use force to contest the eastern Libya's declaration of autonomy. It does not have the capability to reverse the declaration but is likely to contest control of key towns in the Gulf of Sirte and the Waha and Raquba oil fields


modern day libya

Was World War I the error of modern history?

As comissões de serviços bancários

Roderick T. Long: "bank deposits are loans to the bank – which means that deposits themselves already include payments for the bank’s services. In what other industry does the lender have to pay interest to the borrower?"

O sucesso do cap-and-trade na Europa

Low Carbon Credit Prices Are a Sign of Success, Not Failure, por Tim Worstall (Forbes):

Sadly we’ve another piece bemoaning the fact that carbon credits, under the European Union’s cap and trade plan, are low. The point that low prices are a sign of the success of the plan, not a failure of it, seems to have escaped the people advancing this argument.

The piece is here at Der Spiegel.
Emissions trading, the European Union hoped, would limit the release of harmful greenhouse gases. But it isn’t working. The price for emissions certificates has plunged, a development that is actually making coal more attractive than renewable energy.
This is an unfortunate but not uncommon problem: people failing to distinguish the effects of price under a carbon tax plan and a cap and trade plan. (...)

However, my point here is about the complaint that carbon permit prices are low thus cap and trade isn’t working. This is to woefully misunderstand the role of prices in the two different systems.

Yes, of course, in a carbon tax system the higher the tax the greater the incentive to minimise emissions. So higher prices should reduce emissions more. However, prices in a cap and trade system are not the incentive themselves. It’s the permits that are the incentives and the price of those permits isn’t telling us how good an incentive they are. Rather, the price of those permits is telling us how expensive it is to reduce emissions.

Thus low permit prices are a good thing because they show us that reducing emissions is cheaper than we had thought it would be. The limitation on how many permits are available is what limits emissions, not the price of those permits.

Imagine, just as a simple example, that climate science tells us that we can only allow 100 tonnes of CO2-e to be emitted. So we create 100 one tonne permits and allow companies to bid for them. Also assume that current emissions are 150 tonnes, so some companies somewhere must reduce their emissions to get under the permit cap.

So, what would a high price for the permits tell us? That it was proving difficult and expensive to reduce emissions to under the cap. So a high price for permits would be telling us that limiting emissions was a difficult and expensive thing to do.

So what would a low price for the permits tell us? That actually, getting rid of those 50 tonnes of emissions was quite simple. We can do it with a few tweaks to the system here and there and a minimal disruption to business and the lifestyles of the consumers. That last being the thing we are really interested in of course.

So a low price for permits is actually a signal that dealing with the reductions in emissions to get them under the cap is cheaper than we thought it was going to be. Which is excellent news.

Sunday, March 04, 2012

"Consciente de si"

Dois posts no Blasfémias a respeito de um artigo recém-publicado defendendo (?) a legitimidade do "aborto pós-parto":

Paradoxos morais, de Carlos Loureiro:

se se permite (ou se se considera moralmente aceitável) o aborto de fetos humanos, não só por razões médicas mas também por razões relacionadas com os interesses dos progenitores (ou, pelo menos, da mãe), não há razões para não aceitar a morte provocada de recém-nascidos pelas mesmas razões, já que nem uns nem outros têm ainda consciência da sua própria existência e, portanto, não têm expectativas que mereçam ser (moralmente) protegidas
O infantícidio como corolário do aborto, por José Manuel Fernandes:
O temos que os autores abordam radica num dilema para o qual não existe resposta científica, pelo menos não existe resposta científica à medida da liberalização: onde começa a vida humana. Alberto Giubilini e Francesca Minerva defendem que a vida humana só começa quando o ser vivo tem consciência, o que os faz levar a linha que separa a vida da não-vida até depois do nascimento. Como se escreve no Público, “se o feto e um recém-nascido não têm o mesmo estatuto moral das pessoas”, se “é moralmente irrelevante o facto de feto e recém-nascido serem pessoas em potência” então matar um bebé, acto que designamos por infanticídio, não será mais do que um “aborto pós-nascimento”.
Para começar, eu dei uma olhada no artigo, e não me parece que os autores estejam a dizer exactamente o que JMF diz - penso que o que eles dizem não é que o feto e o recém-nascido não têm consciência, mas sim que não têm projectos (logo a sua morte não é condenável, já que não os impede de realizar esses projectos). Mas vou concentrar-me nos posts de Carlos Loureiro (que usa a expressão "consciência de si") e de JMF (que fala só em "consciência"): como é que eles podem dizer que um recém-nascido tem (ou não) "consciência" ou "consciência de si"? Quem é que sabe o que está na cabeça de um recém-nascido (as minhas memória só vão até ao 1 ano e meio; duvido que as de JMF, CL ou dos autores do artigo vão mais longe)? Alías, parece-me impossível provar que um recém-nascido não têm consciência (ou alguém não se lembra, e então nada se pode concluir, ou lembra-se, e então quer dizer que tinha consciência na altura).

Além de que, se pensarmos bem, o que significam exactamente expressões como "consciência", "consciência de si", "pensamento racional", etc (isto interessa não só para a questão do aborto, mas também para o do estatuto dos animais não-humanos)? O que é que quer dizer "ter consciência"? E qual é a diferença entre "consciência" e "senciência"? Afinal, se um ser sente dor ou prazer, isso não implicará que ele "sabe" que está a sentir dor ou prazer? Podemos considerar o Pantufa como "consciente" (se eu agora fosse embora do quarto para a sala, em poucos minutos ele iria também para a sala, o que quer dizer que ele "sabe" onde eu estou, o que poderá ser considerado sinal de "consciência")? Ou ser "consciente" implicará não apenas aperceber-se da realidade, mas também ser capaz de reflectir sobre ela? Mas o que significa exactamente "reflectir"? Ser capaz de representações mentais internas? Mas há grandes razões para supor que os mamíferos sonham (pelo menos, electroencefalograma de cães a dormir mostram ondas cerebrais similares ao dos humanos quando sonham), pelo que podemos considerar que são capazes das tais "representações mentais internas".

E "consciência de sí"? Saber que se existe? Mas há alguma razão para assumir que um recém-nascido não sabe que existe? Até é possível que a única coisa que ele sabe que existe é ele próprio. Pondo de outra maneira - porque razão um recém-nascido não deveria saber que existe? O seu cérebro já está formado; já tem capacidades sensoriais; já tem todas as ferramentas necessárias para saber que existe; o que falta é interacção com outros seres humanos, mas não vejo grande razão porque tenhamos que interagir com outras pessoas para sabermos que existimos (como digo, se há alguém que não precisamos dos outros para saber que existe, somos nós próprios). Num dos comentários a um dos posts no Blasfémias, alguém escrevia que a "consciência de si" só aparecia na puberdade, o que me parece um completo disparate (as crianças respondem à pergunta "o que queres ser quando for grande", o que quer dizer que elas sabem que existem).

Da mesma forma, o que significa ser capaz de "pensamento racional"? O que distingue realmente o "pensamento racional" do "pensamento não-racional"? Para falar a verdade, por vezes muitas definições de "consciência", "consciência de si", "pensamento racional", etc. parecem, bem esmiuçadas, querer dizer apenas "sabe falar ou pelo menos perceber a linguagem" (o que permite o salto de apenas imaginar cenas dentro da nossa cabeça para passar a ter monólogos interiores, o que se calhar é o que muito gente chama "consciência" ou "pensamento") - o que avançaria o aparecimento da "consciência" ainda mais uns meses para frente do nascimento.

Ou então podemos deixar essa conversa de "consciência de sí", "pensamento racional" e considerar que o que interessa para distinguir uma pessoa de uma massa de carne é passar a ter actividade mental e senciênca (ser capaz de sentir coisas), o que acontece algures entre a 12 e as 20 semanas de gestação, creio eu.

Saturday, March 03, 2012

Sugestão de leitura

Communal Property: A Libertarian Analysis [PDF], por Kevin Carson (Center for a Stateless Society).

Problemas terminológicos

O Valupi (via Ana Matos Pires) chama a atenção para o uso da palavra "esquizofrénico" no discurso político (já agora, embora seja raro, às vezes já há quem use o "esquizóide").

Diga-se que em tempos (creio que por protestos de pais de autistas, ou coisa assim), a expressão "autismo" deixou de ser usada no parlamento em sentido figurado; porque será que, pelos vistos, nunca ouve uma preocupação similar com a esquizofrenia? Será por, na imaginação popular, "autismo" estar associado a crianças, e por isso gerar mais sentimentos de benevolência paternalista? [Adenda: nos comentários, o Rui Tavares apresenta uma boa razão]

Ainda por cima, penso que "esquizofrénico", "esquizóide" e afins são usados, no discurso figurado, de forma totalmente incorrecta - normalmente são usados com a intenção de dizer que alguém tem ideias ou posições contraditórias, que diz uma coisa num dia e no outro defende outra em sentido contrário. Ora, eu sou economista, não sou psicólogo nem psiquiatra, mas penso que esquizofrenia (ou, pelo menos, certas variantes) tem mais a ver com confundir a fantasia e a realidade (ironicamente, acho que, muitas vezes, quando no discurso político se usa - ou usava - a palavra "autista", até é isso que querem dizer), não propriamente com ter ideias contraditórias. Já agora, um esquizóide será alguém com (a um nível patológico) "alheamento face aos contactos sociais e afectivos, com preferência pela fantasia, introspecção e actividades solitárias e com capacidade limitada para expressar sentimentos e experimentar prazer" (algo parecido com uma espécie de introversão em esteróides).

Parece-me o grande problema aqui é que, por alguma razão, toda a gente confunde a esquizofrenia (ou as "esquiz-" em geral) com o transtorno das personalidades múltiplas (são duas coisas diferentes).

Friday, March 02, 2012

What War Does

Sponsored by Furman Conservative Students for a Better Tomorrow, 25 February 2012 at Furman University; Greenville, SC. [48:23]
From: War: Big Government's Best Friend , Monday, February 27, 2012 by Thomas E. Woods, Jr.

Thursday, March 01, 2012

A bolha chinesa

Keynesianismo, salários reais e nominais (II)

Ali em baixo, escrevo que "a macro-economia keynesiana [pode ser] abordada de duas formas micro-económicas diferentes". O que quero dizer com isso?

O que quero dizer é que há dois possíveis mecanismo micro-económicos pelo qual a combinação de um aumento da procura agregada com preços e/ou salários rígidos pode originar um aumento da produção; não digo que esses dois mecanismos sejam totalmente diferentes (provavelmente até poderão ser dois "casos notáveis" de um mecanismo geral), mas creio que podem ter implicações distintas.

Uma perspectiva é assumindo uma situação de concorrência perfeita, em que as empresas são "price takers", isto é, aceitam os preços (incluindo salários) estabelecidos no mercado como um dado, e em função desses preços decidem quanto vão produzir (pela famosa regra de produzir até ao custo marginal ficar igual ao preço). Nesse caso, como é que um aumento da procura agregada faz aumentar a produção? O mecanismo será que o aumento da procura (nomeadamente da procura nominal) faz aumentar os preços; mas como os salários tendem a ser rígidos, sobem (pelo menos a curto prazo) menos que os outros preços, fazendo baixar os salários reais e tornando viáveis negócios que de outra maneira não o seriam e permitindo empregar trabalhadores pouco produtivos (mas que com a baixa de salários reais tornam-se produtivos o suficiente para dar lucro empregá-los); e assim diminui o desemprego e aumenta a produção.

Para esta primeira visão, acaba por ser mais ou menos fundamental que os salários sejam mais rígidos que o conjuntos dos preços, e a baixa dos salários reais é um mecanismo fundamental do sistema (no fundo, é a ideia de tudo)  - na verdade, as políticas keynesianas não passarão de uma forma de (via inflação) transferir o rendimento dos assalariados para os patrões sem os primeiros darem muito por isso.

Outra perspectiva é assumir uma situação de concorrência imperfeita (nomeadamente de concorrência monopolística), em que (falando de forma super-simplificada) cada empresa estabelece o preço do seu produto e (dentro dos limites da sua capacidade de produção) produz e vende de acordo com as encomendas que recebe. Aí, um aumento da procura agregada fará aumentar a produção simplesmente porque, se a procura nominal aumenta e os preços se mantêm constantes, os clientes vão comprar maior quantidade de produtos, logo as empresas vão produzir mais e contratar mais gente.

Nesta segunda visão, o facto dos salários serem especialmente rígidos (em comparação com os outros preços) é largamente irrelevante - a rigidez dos salários será importante porque contribui para a rigidez geral dos preços (sobretudo, a dificuldade em descer salários originará uma dificuldade em descer preços), mais nada.

Acerca de diferentes implicações destas duas visões - uma poderá ser exactamente a que atitude ter face aos salários reais. De acordo com a primeira visão, fazer baixar os salários reais é o objectivo final disto tudo, logo qualquer coisa que os faça subir em principio será prejudicial à economia; pela segunda visão (em que o aumento da procura leva por si mesmo a um aumento da produção, e não por intermédio de uma redução dos salários reais), um aumento dos salários reais até poderá estimular a economia, se se concluir que os assalariados gastam uma maior proporção do seu rendimento do que os capitalistas (penso que a maior parte dos estudos indica o oposto - que, contrariamente à ideia geral, a taxa de poupança é a mesma nas várias classes sociais).