Tuesday, January 24, 2012

Re: A crítica de Rui Albuquerque ao anarquismo

Para referenciar o assunto, o Miguem Madeira escreveu dois posts tendo começado assim: "Rui Albuquerque, no Ordem Livre, publicou (ou está publicando, foi só a primeira parte) mais um artigo sobre a relação entre o liberalismo clássico e o anarco-capitalismo - Só se ilude quem têm ilusões. "


Eu passado algum tempo coloquei a minha resposta no Ordem Livre e só agora me lembrei de aqui colocar:

Há muito a dizer e sobre muitas perspectivas. Uma delas é, a bem de não termos as tais ilusões, relativizar a esperança nesse “Estado de Direito” e o “Constitucionalismo”. É que fica-se com a impressão de que antes de tal coisa existir com o Estado Moderno não existia Direito e era a penumbra civilizacional. Ora há argumentos que se podem evocar para defender que o direito de propriedade e contratual (os direitos naturais por excelência) eram muito mais sagrados do que nestes Estados de Direito pondo em causa a afirmação:

“há pouco mais de duzentos anos a vida, a liberdade, a opinião e a propriedade privada eram permanentemente questionadas e postas em causa por poderes políticos discricionários e sem quaisquer limitações ou regras de exercício”

O absolutismo procurou destruir liberdades antigas, isso pode referir-se. Mas o absolutismo foi o primeiro passo na consolidação do estado moderno que reclama legitimidade absoluta e uniforme sobre o direito, a sua interpretação, a sua formação e a sua aplicação coerciva.

O direito natural precede a noção de estado, e seguramente precede um meio de decisão colectivo como a democracia. É o estado e a democracia que têm de se compatibilizar com o direito. Tudo o que um jusnaturalista deseja é que o direito na sua noção civil (natural?) regule a ordem social e não que seja a ordem política (em sentido restrito do funcionamento do aparelho político) – por natureza, estranho ao direito civil – a regular o direito.

Assim sendo, não pára numa barreira mental em nenhum ponto. Se lhe perguntam sobre o litígio, responderá que os tribunais arbitrais podem tomar conta do assunto e existem exemplos abundantes da formação espontânea de novos direitos (o direito mercantil). Se lhe perguntam sobre a segurança pública, responderá com a realidade da N agências de segurança privadas sem as quais nos dias de hoje, se fossem proibidas, a ordem pública, seria gravemente afectada.E assim por diante.

A pergunta que se faz é? existem liberais que não querem que o direito civil regule ao máximo a ordem social, ou é por acharem impossível?

Seja como for, tenho de insistir que essa visão da inevitabilidade e maior eficácia de uma autoridade única (com o monopólio territorial da violência) é posta em causa pela realidade da anarquia internacional (N direitos, N agências de violência, relações contratuais entre N ordens jurídicas).

A realidade de soberanias cruzadas (feudal, da cidade, canónico, mercantil,) e direitos que fez parte da história europeia e que incluiu a soberania autónoma da Igreja fecundou o civilização moderna, dizer que o fim da história é um enorme monopólio territorial, um direito civil, e um código penal, é deslocado.

Esta afirmação:

“Uma segunda, de natureza histórica, que é a inexistência de qualquer precedente societário onde não se tenha manifestado um poder político potencialmente aspirante ao monopólio, isto é, à soberania, o mesmo é dizer, um poder que aspira à exclusão de todos os outros.”

…pode ser posta em causa desta forma: claro que toda a forma de poder persegue o absolutismo – os homens não são anjos, e no poder procuram sempre estender esse poder em vez de tentar o método cooperativo e contratual – e os crimes em massa para o conseguir é o que forma grande parte da história.

Ou seja, o Rui A. dá o exemplo da história, o mesmo exemplo que prova que um poder formado fora da esfera do direito civil procura por todos os meios violentos (com crimes civis e penais em massa) tornar-se único. Isso é argumento?

Rothbard e Hoppe referem que a história,ao contrário do marxismo, não é a da luta de classes, mas a da oposição entre o poder e as relações de cooperação civis. Ambas caminham pela historia, com avanços e recuos, por vezes o poder consegue ser mais benigno outras vezes a coisa mais destrutiva da civilização através precisamente da violência para defender o seu monopólio territorial da violência – as guerras (por definição, a mais completa ausência de direito civil e penal, ou seja, anomia selvagem que obteve a sua sua expressão máxima no advento do estado moderno no século 20).

Aos nossos olhos estamos a presenciar o estado moderno a soçobrar, não que caia tão cedo (se bem, que não estou seguro disso, já começam a ser habituais mudanças repentinas). Está já economicamente e funcionalmente desadequado. É uma estrutura pesada e lenta, já o era, mas hoje, com o poder da comunicação e capacidade dos indivíduos formarem comunidades e relações, de inclusão e exclusão, da já visível decaída de identificação das pessoas com o nacionalismo estatal (o que não quer dizer que não queriam reter os seus valores e diferenciações étnico-culturais que formam as nações)…está a ser posto em causa pelo seu calcanhar de Aquiles – a (i)racionalidade económica, o facto de depender do monopólio da moeda, etc.

E era preciso provar que estado moderno não tem de inevitavelmente de ser progressista-social-democrata procurando crescentemente impor direitos positivos e destruindo todo e qualquer conservadorismo social (que para um liberal, deve poder conviver pelo exercício de direitos de ostracismo / inclusão). Mas é difícil, a partir do momento que se cria a ideia de um “texto sagrado” que legitima a sua acção, por muitas boas intenções que estejam na sua génese, esse “texto sagrado” passa a conceder um poder (“The Ring”) nas mãos da vontade geral.

E não há maior exemplo do que a Constituição Americana, essa grande experiência. Podemos passar pela “guerra para impedir a legítima secessão” e acabar no domínio interpretativo; o Estado Federal assenta boa parte da sua acção na Commerce Clause (The Congress shall have Power To regulate Commerce with foreign Nations, and among the several States, and with the Indian tribes;) que pretendia impedir os Estados de restringir o comércio entre si. Um exemplo conhecido e anedótico é o argumento usado pela administração de Roosevelt para regular (determinar, etc) a quantidade de auto-produção para consumo de batatas: na medida em que produz para auto-consumo afecta o comércio entre Estados e por isso cai no âmbito da Commerce Clause para regulação pelo Estado Federal.

«O que o homem escolhe está determinado pelas ideias que adopta»

E onde está escrito no universo a inevitabilidade de relações não civis (onde vive a ordem política)? Só as ideias o considerarem inevitáveis como já consideraram a escravatura, as castas, etc.

“Rothbard, por exemplo, ainda que consiga demonstrar logicamente a superioridade moral do anarquismo sobre o estatismo, é incapaz de nos explicar como conseguiremos eventualmente sair da soberania para um outro mundo onde o direito de propriedade fosse absoluto e a liberdade individual determinasse toda a complexidade das relações sociais e políticas.”

Porquê incapaz? a classificação da realidade como anárquica,para já,é uma afirmação objectiva. Não existem poderes absolutos no absoluto termo do termo. Não falo só do estado de anarquia internacional, falo da realidade social. Não existem comandos absolutos a não ser os de Deus, as pessoas escolhem e agem, podem obedecer a comandos do seu Estado por concordância ou por medo, como podem simplesmente deixar de lhe ligar (o grande exemplo da queda do muro).

Existe um poder que pode evocar ser como Deus e esmagar a tentativa do indivíduo/comunidade se afastar dele e formar o seu próprio? A razão do Estado, mesmo que fundada na suposta legitimidade constitucional, pode e pergunto – deve – esmagar quem se quer afastar dele?

É evidente que o anarquismo persegue uma noção universal de direito e que só pode realizar-se pelo direito natural descoberto pela filosofia (melhor palavra que a “razão”). Mais uma vez, corresponde à noção universalista que formava a Europa pulverizada da Idade Média (se a virmos no seu melhor), onde os nacionalismos não existiam na noção moderna, o latim era língua comum das elites, e o direito de propriedade era levado a sério (e sendo a relação feudal uma de protecção mútua contratual).

A história repete-se, e nessa diversidade e relações sociais complexas que se fala, o estado moderno na sua configuração grande-estado-constitucional deverá ser posto em causa. O direito natural assegura uma forma de governo e uma ética, uma estabilidade e previsibilidade do direito. O direito legislativo inerente a um monopólio do direito assegura imprevisibilidade e instabilidade. É por isso altamente ineficiente e põe em causa a própria noção de direito.

Existe aqui também uma questão de grau: podemos por hipótese chamar a uma cidade-estado governada por parâmetros similares a relações de condomínios (que regula taxas, partes comuns e partes individuais, etc) um Estado ou um “poder anárquico” (dado ser instituído por relações contratuais civis)? Faz sentido chamar-lhe anárquico?

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