Saturday, March 23, 2013

"Neoliberalismo"?

Nos Ladrões de Bicicletas, Alexandre Abreu escreve acerca do que considera ser o "neoliberalismo"?

Quando apodamos de "neoliberais" políticas como as deste governo, volta e meia lá surge quem invoque a etimologia da coisa para argumentar que medidas como o aumento da carga fiscal ou as sui generis nacionalizações da banca em que o Estado rói o osso e deixa a carne têm pouco ou nada de liberais e muito de intervencionistas, pelo que o epíteto "neoliberal" seria automaticamente descabido. Entendamo-nos de uma vez, portanto: independentemente da etimologia, o laissez-faire económico é, quando muito, uma característica apenas secundária e amiúde dispensável do neoliberalismo. O que é absolutamente central é a predação do capital sobre o trabalho e a natureza, a expansão do privado à custa do comum, a prioridade ao lucro relativamente às necessidades humanas. O Estado e as suas possibilidades coercivas constituem, não um alvo a abater, mas um instrumento indispensável a mobilizar. Com extraordinário sucesso nas últimas décadas, acrescente-se.
A mim, parece-me que essa "definição" (ou lá o que é) de "neoliberalismo" não faz sentido nenhum. Vamos lá pensar um pouco - porque é que, ao espaço politico-ideológico em questão, haveremos de chamar "neoliberal" em vez de, sei lá, "neo-socialista", "neo-social-democrata", "neo-democrata-cristão", "neo-conservador" ou "neo-seja-o-que-for"? Afinal, se admitimos que "o laissez-faire económico é, uma característica (...) amiúde dispensável do neoliberalismo", então que razão há para termos lá o "liberal" (ainda que prefixado)? Pelo mesmo raciocínio, facilmente poderíamos, a seguir ao "neo", pôr outra ideologia qualquer e dizer que "o [principio fundamental da ideologia X] é uma característica dispensável do neo-X".

4 comments:

João Vasco said...

Há palavras que evito a todo o custo usar nas discussões políticas, tais como "neoliberal", "capitalismo", além de uma série de outras.

Há várias palavras que têm significados diferentes para diferentes pessoas (como "esquerda" ou "direita") e isso já é algo inconveniente para uma comunicação eficaz, mas ao menos esses diferentes significados que a palavra tem são tão discutidos que poucos as usarão sem estarem conscientes dos diferentes significados que os outros lhes atribuem.

Mas outros termos, como "capitalismo" são absolutamente horríveis. São definidas de formas radicalmente diferentes, mas poucos se apercebem da diferença na definição. Pessoas de esquerda e direita acreditam discordar dos méritos e potencialidades de um sistema que é descrito por essa palavra, alheios ao facto de que a palavra serve para descrever coisas diferentes.

Se o estado usa a polícia para bater nos trabalhadores que querem fazer uma greve, ou usa o exército para matar os líderes sindicais, isto é um exemplo acabado daquilo que é o capitalismo, ou um exemplo acabado de uma tremenda violação do capitalismo? Pela minha experiência, pessoas diferentes dão diferentes respostas, mas acreditam que a sua definição está inequivocamente certa, sem se aperceberem de que existem outras definições e nenhum "árbitro" que possa dizer qual delas está certa.

O problema de "neoliberalismo" é diferente. Noto que o significado que é dado à palavra é "radical de direita imbecil". Não há qualquer tipo de rigor ou consistência na forma como é usada, a não ser a conotação pejorativa que tem, o referir-se sempre a alguém de direita com uma posição algo "extrema" (mesmo que seja uma posição conservadora).
A palavra está tão carregada, que ninguém (que eu saiba) se auto-intitula neo-liberal em Portugal.
Na prática é um insulto inútil. Prefiro evitá-la.

Uso "liberal de direita" para me referir aos que geralmente se auto-intitulam "liberais" (acrescento o "de direita" porque não creio que as suas posições abranjam todo o espectro de possibilidades "liberais"), desde que não sejam conservadores que por alguma razão misteriosa gostam de se auto-intitular "liberais" (Pedro Arroja, José Manuel Fernandes, Helena Matos - pessoas que fazem o possível por tornar o termo "liberal" completamente vazio).

Anonymous said...

"Mas outros termos, como "capitalismo" são absolutamente horríveis. São definidas de formas radicalmente diferentes, mas poucos se apercebem da diferença na definição."

Pelo contrário, é muito mais fácil estar-se de acordo sobre o que é o capitalismo do que sobre o que é o neoliberalismo, já que o que está em causa no "capitalismo" é unicamente o processo de reprodução do capital. O "neoliberalismo" é terreno pantanoso e na minha opinião vivemos mais em tempos de "crony capitalism" como se diz à direita, do que de "neoliberalismo" como se diz à esquerda. Basta ver a maior inconsistência de todas, que é o facto de os Estados estarem a assumir as perdas da banca.

Quanto ao neoliberalismo, é palavra que não me entra na cabeça. Penso que é um termo inventado por uma razão simples e absurda: cada homem vê o seu tempo como "importante", e como tal tenta criar uma linguagem própria para interpretar a realidade do presente. Um historiador que admita que o capitalismo continua o seu processo de evolução de há 50 anos atrás, com apenas algumas diferenças, é um historiador que não tem um grande desafio intelectual pela frente. Eu sou adepto do "more is less", se as pessoas passassem mais tempo a ler a literatura socialista fundamental, do que a tentar criar uma nova, talvez estivéssemos melhor do que estamos.

É evidente que alguém com 18 anos não se vai sentir automaticamente atraído por textos políticos que contenham uma crítica ao capitalismo com vocabulário antiquado, na senda do que se fez ao longo dos últimos dois séculos. No fundo, a necessidade e criar o conceito de "neoliberalismo" é mais um reflexo da sociedade de mercado que vivemos, na qual os produtos têm de ser todos muito actuais, inovadores e etc., caso contrário não há compradores.

João Vasco said...

«Pelo contrário, é muito mais fácil estar-se de acordo sobre o que é o capitalismo do que sobre o que é o neoliberalismo, já que o que está em causa no "capitalismo" é unicamente o processo de reprodução do capital.»

Não é apenas isso que está em causa.

Para um marxista, os regimes fascistas eram claramente capitalistas.

Para Friedman, Hayek, ou outras pessoas nessas áreas ideológicas, o capitalismo opõe-se à planificação da economia, e o intervencionismo estatal que (frequentemente) existe nos regimes fascistas faz com que esses regimes não sejam verdadeiramente capitalistas, no seu ver.

Os marxistas acreditam que é próprio do capitalismo que a burguesia use o estado como ferramenta de opressão do proletariado; mas muitos liberais de direita acreditam que no capitalismo o estado não intervém na economia (a não ser para proteger a propriedade privada, fazer cumprir os contratos, etc..).

Num caso, o estado cobrar muito mais impostos para reforçar o aparelho repressivo (exército, polícia, etc..) é perfeitamente compatível com o capitalismo - é o que a burguesia com capital quer para manter as relações de poder desiguais.
No outro caso, é uma intervenção excessiva do estado na economia. O Ron Paul clama por severas diminuições no orçamento de defesa dos EUA, alegando que "capitalismo" também é isso: libertar recursos para a economia privada.

Outro exemplo é a expressão "crony capitalism": distorção daquilo que devia ser o capitalismo; ou consequência natural e inevitável da detenção de poder por parte da burguesia, e portanto o capitalismo "é isso"?

A resposta a estas perguntas irá variar.
Sei disso porque já falei com várias pessoas que darão uma ou outra, mas todas elas estão confiantes de que quando usam o termo "capitalismo" os outros sabem aquilo a que elas se estão a referir.

PR said...

João Vasco, exelentes comentários. Eu já defendi isso mesmo vezes sem conta, mas constato que a maior parte dos meus interlocutores têm alguma dificuldade em perceber que os nomes são o que quisermos fazer deles. Aparentemente, a intuição de Saussure, de que o signo é arbitrário, não é uma descoberta tão trivial quanto isso.

Acerca do caso concreto: exactamente no ponto - ninguém se considera um neoliberal. O termo parece ter-se tornado uma espécie de cavalo de batalha que a esquerda usa para apodar a direita, e que basicamente se define como "direita casmurra". E que depois obriga ao tipo de contorcionismos argumentativos que o Miguel Madeira denuncia no post.