[Regressando e aprofundando este tema]
No Relatório [pdf] do Orçamento de Estado proposto, o alargamento dos cortes salariais é justificado com o seguinte argumento (página 32)..
Refira-se que a redução do limite inferior, a partir do qual as medidas são aplicáveis, teve o único propósito de, mantendo embora a isenção absoluta dos rendimentos ilíquidos inferiores a 600 euros, dirimir uma inadequada política de rendimentos na Administração Pública. Com efeito, o estudo solicitado pelo Governo a uma consultora internacional demonstra que as práticas salariais da Administração Pública diferem substancialmente do padrão que é observado no sector privado, sugerindo um padrão de iniquidade entre o público e o privado. Depreende-se que no sector público existe um prémio salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações associadas a funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado. Também recentemente a OCDE reconheceu a existência de um elevado diferencial entre salários no sector privado e salários no sector público.O estudo deve ser este, "Análise Comparativa das Remunerações Praticadas no Sector Público e no Sector Privado" [pdf], da consultora Mercer, publicado em fevereiro de 2013.
[Via Pedro Romano]
E, realmente, lá há uma passagem (página 3), em que pode ser lido:
Em termos gerais, conclui-se que as práticas salariais da Administração Pública diferem do padrão que é observado no sector privado, podendo assumir-se que, no sector público, existe uma prática salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações pagas para funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado.Mas creio que esta passagem ganha um outro significado se for lida no contexto geral:
Em termos gerais, conclui-se que as práticas salariais da Administração Pública diferem do padrão que é observado no sector privado, podendo assumir-se que, no sector público, existe uma prática salarial superior para funções de menor exigência e/ou responsabilidade e que as remunerações pagas para funções de maior complexidade e exigência tenderão a ser inferiores às do sector privado. Todavia, esta análise macro não dispensa uma apreciação mais analítica por tipo de função/profissão, que este relatório apresenta.Isto é, quem leio, não só a proposta do Orçamento, mas sobretudo muitos artigos de jornal que se têm publicado nos últimos tempos sobre os salários da função pública, fica com a ideia que profissionais mais qualificados são mal pagos na administração pública e os pouco qualificados bem pagos; quando na verdade os profissionais menos qualificados ganham na AP largamente o mesmo que no privado, sendo as grandes diferenças dentro do grupo dos "mais qualificados” - com os “dirigentes” a ganharem mal em comparação com o privado e os “especialistas” a ganharem aparentemente bem (deixando de lado a tal questão das remunerações variáveis...).
Para funções de topo (direcção superior de 1.º e 2.º nível) verifica-se que as remunerações (ganho) praticadas no sector privado poderão exceder, em média, cerca de 30% as praticadas no sector público. Ao nível das funções de direcção intermédia, constata-se que o sector privado tende ainda a ser mais competitivo em termos remuneratórios que o sector público, embora com um diferencial menor e que se tende a esbater (ou mesmo a reverter) quando se desce na hierarquia e nos níveis de responsabilidade atribuídos.
Ao nível das funções técnicas (v.g. Técnico Superior e Informático) constata-se que a média salarial praticada na Administração Pública excede, ainda que de forma moderada, a que é praticada no sector privado, identificando-se um diferencial salarial que poderá chegar, em média, aos 14%. Importa, todavia, ter presente que este estudo não entrou em consideração com componentes remuneratórias de natureza variável, que tendem a assumir alguma expressão no sector privado.
O factor antiguidade de serviço será também relevante para justificar as diferenças encontradas ao nível da carreira técnica superior, porquanto no sector público esta variável é muito determinante para a construção da remuneração mensal auferida, o que não acontece de forma tão vincada no sector privado.
Relativamente ao grupo dos assistentes técnicos e demais pessoal administrativo, que é extremamente heterogéneo no sector público, verifica-se que a diferença em termos salariais face ao sector privado é reduzida, embora ainda ligeiramente favorável ao primeiro.
Para as funções de assistentes operacionais e auxiliares, que assumem uma grande dimensão no conjunto da Administração Pública ao contrário do que, em geral, se verifica no sector privado observado, constata-se que as remunerações praticadas no sector público tendem a ser ligeiramente inferiores às do sector privado. Importa, contudo, ter em consideração que a utilização deste tipo de trabalhadores no sector privado tende a estar associada a funções de carácter produtivo e/ou operacional, sobretudo em empresas de pendor industrial, e no sector público está maioritariamente associado a tarefas administrativas e/ou auxiliares, normalmente não inseridas na cadeia de valor produtiva da organização, sem prejuízo do papel relevante que possam desempenhar.
Ora, creio que isto muda muito os termos com que a questão é geralmente posta.
P.ex., o programa de rescisões "voluntárias", destinado a Assistentes Técnicos (empregados administrativos) e Assistentes Operacionais (operários) - creio que nenhum membro do governo, ao lançar esse programa, veio com a conversa de que esses grupos eram comparativamente bem pagos na função pública; mas muitos jornais disseram isso (lembro-me perfeitamente de o artigo no Expresso sobre o programa de rescisões dizer isso), deixando implicito que era um dos motivos para as rescisões serem dirigidas a esses grupos.
Mas o ponto mais importante é que se dá uma imagem distorcida da "luta de classes" em causa - a conversa habitual dá a ideia que é uma questão de distribuição de rendimento entre trabalhadores com menos e com mais qualificações. E, infelizmente, a ideia de que é expectável (e se calhar até desejável...) uma grande desigualdade de rendimentos entre as pessoas conforme o seu nível de qualificações parece ter assentado arraiais na nossa sociedade (frequentemente as mudanças tecnológicas costumam ser apresentadas como a causa disso, mas acho essa tese muito fraquinha), pelo que a conversa de que é desejável aumentar a desigualdade salarial na função pública até consegue passar sem grande resistência. Já dizer abertamente de que é preciso baixar os vencimentos aos "especialistas" e subir aos "dirigentes" seria mostrar demasiado o jogo e assumir que a luta pela repartição do rendimento não é entre menos e mais qualificados, mas sim entre os "dirigentes" e o resto; e atendendo à indignação que no mundo ocidental tem vindo a crescer contra as elevadas remuneração dos gestores, se calhar um discurso dizendo "temos que subir os salários dos dirigentes e baixar os dos técnicos para estarmos em linha com o privado" talvez provocasse uma resposta "não será o privado que está mal?" (e, já agora, haveria também a resistência motivada pela convicção dominante - seja ela fundada ou infundada - de que grande parte dos dirigentes na administração pública são-no mais por ligações políticas do que por competência profissional).
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]