Tuesday, March 01, 2016

Liberdade de expressão, estado e sociedade

N'O Insurgente, Helder Ferreira publica dois posts sobre o tema da liberdade de expressão; se os casos a ver com universidades parecem-me ter sobretudo ocorrido em universidades públicas, os relacionados com o Facebook e a tentativa de suprimir o livro do Henrique Raposo sobre o Alentejo (o HR já tinha sido submetido a uma execução virtual há uns tempos) parecem-me fundamentalmente privadas (indivíduos privados a fazerem pedidos e petições a organizações privadas); na verdade mesmo no caso das universidades o facto de muitas serem estatais é capaz de ser mais incidental - as referidas expulsões de alunos (ou pelo menos processos disciplinares) parecem-me ser decididas localmente, e mais em resposta também a pressão social do que política.

O que quero chegar com isto é algo que também é referido num dos textos que o Helder linka:

The First Amendment is nice to have if you find yourself arguing for free expression in a case before the Supreme Court. And that’s no small thing. But the Constitution isn’t the most important guarantor of free speech for the average citizen in ordinary circumstances. More important is a culture of free expression, where people are encouraged to say what they think, where eccentricity of all kinds is tolerated or even appreciated, and where Voltaire’s aphorism is baked into everyday life.

Keep in mind that the Constitution protects freedom of speech only from infringement by the government. It will not help you if someone is offended by some theory you spin after two or three glasses of wine at a dinner party, or if students decide to picket your lectures because they object to what you say about dinosaurs. That second kind of free speech—everyday free speech—is arguably more important than arcane arguments before the Supreme Court. And, until recently, I would have said that this kind of free expression—a willingness to live and let live, an enjoyment of disagreement—was built into the culture in Britain more than it is in the United States.
Não diria que a pressão social seja "igualmente" ou "tão" opressiva como a pressão estatal (afinal entre ser socialmente marginalizado, perder o emprego e ser excluído do acesso aos meios materiais de expor a minha opinião versus ser socialmente marginalizado, perder o emprego, ser excluído do acesso aos meios materiais de expor a minha opinião e preso, a primeira opção sempre é um bocadinho melhor; e face à pressão social muitas vezes sempre há um canto algures onde os dissidentes se podem refugiar, talvez num emprego subalterno e a expor as suas ideias em livros de edição de autor - quiçá com pseudónimo - ou em grupos de discussão via mail), mas penso que também pode ser considerada opressiva, ainda que num grau diferente.

Já agora (e isto já é um aparte meu) tenho também a forte suspeita que é difícil conciliar liberdade estritamente política e pressão social generalizada - que numa sociedade em que haja um atitude persecutória generalizada contra uma dado comportamento (seja ele qual for - isto vale tanto para a homossexualidade como para a homofobia, p.ex.), quase inevitavelmente surgirão leis contra esse comportamento.

Mas acho que, se considerarmos que um ambiente de pressão social esmagadora pode ser restritivo da liberdade, isso pode levantar questões muito complicadas, nomeadamente nas que têm a ver com o chamado "politicamente correto", em que em muitas polémicas ambos os lados podem ver-se a si próprios como os defensores da "liberdade" contra a "cultura da intolerância", e se calhar ambos têm alguma razão; afinal, grande parte do "politicamente correto" consiste em "desaprovar a desaprovação", pelo que não é difícil que nalgumas discussões ambos os lados possam ver o outro como "as pessoas que nos querem obrigar a viver e pensar como eles". Vamos imaginar um exemplo hipotético (com uma situação que no mundo real em que vivemos não é objeto de polémica política ou social, para podermos ver o assunto de forma desapaixonada); vamos supor que alguém escreve um artigo a atacar as pessoas que usam óculos modelo "aviador", dizendo que são uns foleiros, que vivem mentalmente no principio dos anos 80, que são serial killers em potência, e que nos lugares em que é "reservado o direito de admissão" deveriam ser impedidos de entrar para não dar mau ambiente; em resposta, o twitter, o facebook e até algumas colunas de opinião na imprensa escrita levantam-se em peso, acusando o autor do artigo de ser um oculosdeaviadorofóbico e um imagengista, e até promovem petições dirigidas à entidade (revista, plataforma informática, etc.) onde ele publicou o seu artigo para que ele deixe de publicar lá; a respeito disso poderia-se dizer "já não se pode dizer nada" - mas a verdade é que se as opiniões do tal autor fossem dominantes na sociedade, também se poderia dizer que estávamos numa situação em que "já não se pode usar os óculos de que se gosta".

Ainda a respeito disto (esta possivel ambiguidade), recomendo o post de Roderick T. Long, Politics against Politics, onde este pega num texto de Murray Rothbard criticando a "esquerda cultural" e contra-argumenta que exatamente os mesmos argumentos de Rothbard (que escreve que o problema da esquerda não é apenas o recurso à coação, mas sobretudo uma atitude geral de se meterem na vida das pessoas, mesmo quando não são violentos) podem ser usados para defender ideias da "esquerda cultural" (contra a pressão social dos valores tradicionais convencionais, mesmo quando não se impõem pela coação estatal): "this is exactly the sort of thing I’ve been saying too. Restrictive cultural attitudes and practices can be oppressive even if nonviolent, and should be combated (albeit, of course, nonviolently) by libertarians for some of the same sorts of reasons that violent oppression should be combated." (Long; atenção que o facto de eu o estar a citar não implica necessariamente concordância)

3 comments:

Pedro romano said...

Exacto. Desde há algum tempo para cá que estou convencido de que o debate à volta do "politicamente correcto" é sobretudo uma luta de forças em torno daquilo que se deve considerar socialmente aceitável, e portanto aceitável num sentido mais geral do termo (mesmo que por vezes não tenhamos consciência, é nisso que, em termos práticos, a coisa redunda). Aliás, acho estranho que uma parte da esquerda tenha tanta dificuldade em responder ao argumento do "vocês são polícias do pensamento". Basta invocar o adágio liberal "não, estou só a dar a minha opinião, não quero taxar nem subsidiar este comportamento" e continuar em frente.

Miguel Madeira said...

Não é estranho - por norma a esquerda faz menos que a direita (ou pelo menos que os liberais) a distinção entre opressão estatal e opressão social (e frequentemente defende o papel do Estado como protetor do indivíduo face à sociedade), logo temos dificuldade em invocar esse argumento; afinal, se nós achamos que uma sociedade em que (mesmo sem qualquer restrição legal) haja um preconceito social generalizado contra as mulheres trabalharem foram de casa é uma sociedade que reprime a liberdade das mulheres, implicaria uma certa dissonância depois vir dizer "podemos fazer enormes campanhas na comunicação social, na internet, nos clubes de estudantes, etc, contra [X], que desde que não queiramos proibir ou taxar [X] não estamos a violar a liberdade de ninguém".

Quem poderá melhor explorar esse argumento não será a esquerda, mas sim liberais culturalmente esquerdistas (como o anarco-capitalista Long); eventualmente à esquerda quem melhor poderia levantar esse argumento seriam socialistas autogestionários ou anarco-sindicalistas (que, como coletivistas anti-estatistas, também dão importância à diferença entre a sociedade e o estado), mas esses não são lá muito numerosos.

pedro romano said...

Miguel, o seu conhecimento da cladística política deixa-me sempre banzado :)