Monday, June 06, 2016

Marxismo, socialismo e fascismo

José Rodrigues dos Santos argumentou que o fascismo tem origem no marxismo; na sequência da polémica que se gerou, André Azevedo Alves apresenta o que considera serem várias semelhanças entra as duas ideologias; também JRS apresentou de forma mais desenvolvida a sua tese das origens marxistas do fascismo.

O que eu vou escrever foi sobretudo pensado antes de ler o artigo de JRS, pelo que vou primeiro escrever o que pensei inicialmente e depois comentarei o artigo de JRS.


Em primeiro lugar, vamos dar a palavra a Mussolini (Doutrina do Fascismo):

Quando, no agora distante Março de 1919, falando através das colunas do Popolo d’Italia, eu convoquei à Milão os os intervencionistas sobreviventes, que haviam intervido, e me seguido desde a fundação da ação revolucionário do Fascismo em janeiro de 1915, eu não tinha em mente nenhum programa doutrinário específico. A única doutrina que eu tinha experiência prática era aquela do socialismo, até o inverno de 1914, aproximadamente uma década. Minha experiência era tanto de um seguidor quanto de um líder, mas não era uma experiência doutrinária. Minha doutrina durante este período, era a doutrina da ação. Um doutrina uniforme, universalmente aceita do socialismo não havia existido até 1905, quando o movimento revisionista, encabeçado por Bernstein, surgiu na Alemanha, combatida pela formação, na gangorra das tendências, de um movimento revolucionário que, na Itália, nunca saiu das frases, enquanto que, no caso do socialismo russo, ele se tornou o prelúdio para o Bolchevismo.

Reformismo, revolucionismo, centrismo, o próprio eco desta terminologia está morto, enquanto que no grande rio do Fascismo, pode-se traçar correntes que tiveram a sua fonte em Sorel, Peguy, Lagardelle dos movimentos socialistas, e no grupo de sindicalistas italiano que, de 1904 até 1914, trouxeram novos tons no ambiente socialista italiano, previamente emasculado e intoxicado pela fornicação com o partido de Giolitti, um tom auscultado na Pagine Libere de Olivetti, Lupa de Orano, Divenirs Socials de Enrico Leone.

Quando a Guerra acabou em 1919, o Socialismo como doutrina já havia morrido; ele continuo existir apenas como um grunhido, especialmente na Italia, onde sua única chance residia na incitação de represálias contra os homens que haviam querido a guerra e que estavam para ser obrigados a pagar por ela. (...)
Tal concepção da vida faz do Fascismo a firme negação das doutrinas basilares do tais Marxismos científicos e socialistas, a doutrina do materialismo histórico que explicaria a história da humanidade em termos da luta de classe e por mudanças nos processos e instrumentos de produção, para excluir todo o resto.

Que a mudança da vida econômica – descoberta de materiais brutos, novos processos tecnicos, e invenções científicas – têm a sua importância, ninguém nega; mas que elas são suficientes para explicar a história humana, a ponto de excluir outros fatores, é absurdo. O Fascismo acredita, agora e sempre, na santidade e no heroísmo, isso é, em atos que nenhuma motivação econômica – remota ou imediata – existe. Tendo negado o materialismo histórico, que vê os homens como meros fantoches na superfície da história, aparecendo e desaparecendo na crista das ondas, enquanto que nas profundezas as verdadeiras forças diretivas se movem e trabalham, o Fascismo também nega o caráter imutavel e irreparável da luta de classes, que é o produto natural desta concepção econômica da história; acima de tudo, ele nega que a luta de classes seja o agente preponderante das transformações sociais.
Tendo então desferido um golpe nos dois pontos principais da sua doutrina, tudo o que resta é uma aspiração sentimental – velha como a própria humanidade – em direção às relações sociais, em que os sofrimentos e aflições dos populares mais humildes, serão aliviados. Mas aqui de novo o Fascismo rejeita a interpretação econômica da felicidade como algo a ser assegurado socialisticamente, quase automaticamente, num dado estágio da evolução econômica, onde a todos será assegurado o máximo conforto material. O Fascismo rejeita a concepção materialista de felicidade como uma possibilidade e a abandona para aqueles economistas de meados do Século XVIII. Isso significa que o Fascismo nega a equação: bem-estar = felicidade, que vê os homens como meros animais, contentes em serem alimentados e engordados, então os reduzindo a uma pura e simples existência vegetativa. 
Depois do socialismo, o Fascismo testa as suas armas em todo o bloco das ideologias democráticas, e rejeito tanto as suas premissas, quanto suas aplicações práticas e implementos. O Fascismo nega que números, como tais, possam ser um fator determinante na sociedade humana; ele nega o direito dos números governarem por meios de consultas periódicas; ele afirma a irremediável, fértil e beneficiente diferença entre os homens, que não pode ser nivelada por nenhum aparato mecânico e extrínseco como o sufrágio universal. (...)

Em rejeitar a democracia, o Fascismo rejeita a absurda mentira convencional do igualitarismo político, o hábito da irresponsabilidade coletiva, o mito de felicidade e do progresso indefinidos. Mas se a democracia for entendida como um regime em que as massas não são empurradas de volta para as margens do Estado, então o autor dessas páginas já definiu o Fascismo como uma democracia organizada, centralizada e autoritária. 
O Fascismo é definitiva e absolutamente contrário às doutrinas do liberalismo, tanto na esfera política quanto na econômica. A importância do liberalismo do Século XIX não deveria ser exagerada por propósitos polemicos hodiernos, nem devemos fazer de alguma das muitas doutrinas que floresceram naquele século, uma religião para a humanidade no presente e por todo o tempo por vir. O liberalismo verdadeiramente floresceu por apenas quinze anos. (...)
A negação Fascista do socialismo, democracia e liberalismo não deveria, no entanto, ser interpretada como se implicasse um desejo retroceder o mundo para as posições ocupadas antes de 1789, um ano comumente referido como o que abriu o Século demo-liberal. A história não anda para trás. A doutrina Fascista não tomou De Maistre como seu profeta. O absolutismo monárquico está no passado, assim como a eclesiolatria. Mortos e enterrados estão os privilégios feudais e a divisão da sociedade em castas fechadas e incomunicáveis. Também nada tem a ver com a concepção Fascista de autoridade, aquela de um Estado policial eminente. (...)

Do fundo das ruínas das doutrinas liberais, socialistas e democráticas, o Fascismo extrai aqueles elementos que ainda são vitais. Ele preserva o que deve ser chamado de “fatos adquiridos” da história; ele rejeita todos os outros. Ou seja, ele rejeita a idéia de uma doutrina cabível a todos os tempos e a todos os povos. Sabendo que o Século XIX foi o século do socialismo, liberalismo e democracia, isso não quer dizer que o Século XX também tenha que ser o século do socialismo, liberalismo e democracia. Doutrinas políticas passam, nações se mantêm. Nós estamos livres para acreditar que este é o século da autoridade, um século que tende para a “direita”, um século Fascista. Se o Século XIX foi o século do indivíduo (liberalismo significa individualismo), nós estamos livres para acreditar que este é o século do “coletivo”, e portanto, o século do Estado. É bastante lógico para uma nova doutrina, usar aqueles elementos que ainda são vitais de outras doutrinas. Nenhum doutrina nunca nasceu totalmente nova, brilhante e inédita. Nenhuma doutrina pode vangloriar-se de uma originalidade absoluta. Ela está sempre conectada, mesmo que apenas historicamente, com aquelas que a precederam e com aquelas que virão depois. Então o socialismo científico de Marx se liga com os socialistas utópicos dos Fouriers, dos Owens, dos Saint-Simons; então o liberalismo do Século XIX pode traçar a sua origem até o movimento iluminista do Século XVIII, e as doutrinas da democracia para os enciclopedistas. Todas as doutrinas visam direcionar as atividades humanas em direção a um certo objetivo; mas essas atividades, por sua vez, reagem à doutrina, modificando-se e ajustando-se para as novas necessidades, ou ultrapassando-se.(...)
Neste texto, Mussolini rejeita explicitamente o socialismo (nomeadamente o marxista), a democracia, o liberalismo e o tradicionalismo, ao mesmo tempo que admite que aproveitou as influências ideológicas que achou válidas (incluindo a de alguns socialistas - embora ele não o refira especificamente, os da fação conhecida como "sindicalismo revolucionário").

Se formos para o nacional-socialismo alemão (e é sempre aí que estas discussões sobre o fascismo vão parar - aliás, o extremo conteúdo pejorativo à volta do "fascismo" provavelmente tem mais a ver com o nacional-socialismo alemão - e a II Guerra Mundial e o Holocausto - do que com o fascismo italiano, que, por si só, teria sido pouco mais que um curiosidade histórica, como o regime sidonista em Portugal), aí eu diria que, apesar de ter "socialismo" no nome, as ligações às correntes socialistas tradicionais serão ainda mais ténues de que no fascismo italiano - enquanto os "fáscios italianos de combate" tinham, na origem, uma grande proporção de ex-socialistas, o Partido dos Trabalhadores Alemães (mais tarde o NSDAP) tem as suas origens como uma espécie de "departamento para a classe operária" da Sociedade de Thule, um grupo composto que combinava o ultra-conservadorismo político com misticismo pseudo-oriental; em termos de influência ideológica mais próxima para o nacional-socialismo, o movimento mais relevante terá sido a "revolução conservadora", de autores como Oswald Spengler, Moeller van den Bruck (o criador da expressão "3º Reich") e outros, cuja genealogia intelectual provavelmente deveria mais ao conservadorismo alemão clássico do que ao socialismo clássico (em larga medida, creio que se pode considerar que a ideologia da "revolução conservadora" era basicamente levar ao extremo a combinação de conservadorismo político - elitista e autoritário -, intervencionismo económico e dinamismo industrial da Alemanha imperial).

Agora, entre a "revolução conservadora" era frequente fazer a apologia de um certo "socialismo" - o que Spengler chamaria de "socialismo prussiano", um socialismo assente na colaboração entre as classes sociais e em valores "espirituais" (patriotismo, honra, coragem, etc) por oposição ao marxismo, assente na luta de classes e no materialismo, que seria o socialismo dos judeus e/ou dos ingleses (para Spengler, o marxismo era o "capitalismo da classe operária", no sentido de se basear também na ideia de procurar o ganho material), e que era apresentado pelos "conservadores revolucionários" como sendo inspirado na sociedade medieval, com as suas guildas profissionais, os deveres mútuos entre aristocratas e camponeses, etc.. Se formos procurar influencias mais remotas para esse "socialismo prussiano" na história do socialismo na Alemanha, talvez pudéssemos incluir Ferdinand Lassalle que defendia uma aliança  dos socialistas com o regime imperial-bismarkiano contra os liberais; ou os "socialistas de cátedra", académicos muitas vezes conservadores no conjunto das suas opiniões, mas que defendiam o papel do Estado para mitigar os problemas sociais (em ambos podemos ver o principio da tal síntese entre socialismo e nacionalismo, e da rejeição da luta de classes).  A respeito desses "socialismos anti-marxistas", recomendo duas leituras: o capítulo Anti-Marxism de A Critique of Interventionism, de Ludwing von Mises, e o artigo German Socialism as an Alternative to Marxism, de Alexander Jacob, publicado na revista The Scorpion (a segunda sugestão é, fundamentalmente, um artigo fascista publicado por uma revista fascista, mas é o género de coisa que convém ler para perceber uma ideologia por dentro).

Curiosamente, na Áustria o nacional-socialismo veio largamente do liberalismo (pan-germanista desde os tempos das revoluções de 1848), com o partido liberal a perder grande parte dos seus apoiantes para o partido nazi, e finalmente a integrar-se nele nos anos 30; durante as décadas a seguir a II Guerra Mundial, liberais e antigos nazis continuar a estar juntos no Partido da Liberdade, até à ala liberal cindir e criar o Forum Liberal, já nos anos 90.

Já agora, em França (que se calhar é o berço intelectual do fascismo, mais do que Itália) os primeiros movimentos fascistas (incluindo o primeiro partido fora de Itália a dizer-se fascista, o Faisceau) tiveram origem nas tentativas (nomeadamente as de Georges Valois e do "Círculo Proudhon") de fazer a síntese entre o sindicalismo revolucionário e o nacionalismo monárquico de Charles Maurras (essa "síntese" pode parecer contra-natura numa lógica esquerda-direita, mas poderá haver algo em comum entre a defesa dos sindicatos pelos primeiros e a defesa das corporações profissionais, comunidades locais, universidades, etc. pelos segundos; junte-se uma oposição ao parlamentarismo, e talvez um sindicalista revolucionário que abandone o igualitarismo e um monárquico tradicionalista que queira partir para a luta de massas nas ruas possam sentir algo em comum - a esse respeito, e de acordo com a tradição de nesta discussão recomendar os textos do próprio como fonte, recomendo o meu post sobre a Branca de Neve e os Sete Anões).

Em compensação, em Portugal e Espanha, creio que praticamente não há influências socialistas diretas nos movimentos fascistas locais, como o Movimento Nacional-Sindicalista em Portugal ou a Falange e as Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista em Espanha, sendo os seus fundadores oriundos sobretudo dos meios monárquicos tradicionalista, como o Integralismo Lusitano ou a Ação Espanhola (penso que Ramiro Ledesma Ramos, o ideólogo das JONS e depois um dos da Falange, chegou a ter esperanças que os anarco-sindicalistas da CNT se convertessem às suas ideias, mas não teve qualquer sucesso).

Ou seja: a) há efetivamente "ADN" socialista (os sindicalistas revolucionários em França e Itália, o "socialismo de cátedra" e, antes, Lassalle na Alemanha) no fascismo; b) essas origens socialistas misturam-se com muitas outras origens, nomeadamente o do conservadorismo nacionalista anti-República de Weimar na Alemanha e o tradicionalismo francês.

Mas a tese de JRS, pelo que sei, não é que fascismo tem origens socialistas - aparentemente disse que a origem do fascismo está no marxismo; isso tem dois problemas: um é que, como vimos, o fascismo resulta da síntese de várias ideologias (logo não fará grande sentido indicar uma como sendo "a origem" - mas é um ponto em que admito que as manchetes dos jornais possam facilmente ter deturpado o que o JRS queria dizer); o outro é que os socialismos que influenciaram o fascismo foram sobretudo os socialismos não-marxistas, como o sindicalismo revolucionário (que provavelmente deve mais ao anarco-sindicalismo, e às suas ideias de associação profissional, ação direta extra-parlamentar e oposição aos políticos, do que ao marxismo) ou os socialismos pró-Bismark ou pró-Império na Alemanha (bastante criticados por Marx e pelos marxistas, na altura).

Na verdade, eu suspeito que nesta discussão muitas vezes se confunde "marxismo" com "socialismo" - veja-se como por vezes se  levanta o ponto do nome oficial do partido de Hitler ser Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (o que não me parece muito relevante para a questão das hipotéticas origens marxistas, embora pudesse ser se estivéssemos a falar de origens socialistas); aliás, não é só nesta discussão que essa confusão surge - há um opinador anarquista português que, sempre que diz não é marxista, os blogues e o facebook enchem-se de comentários espantados a dizer "Afinal Fulano abandonou o marxismo?" (também suspeito que, se não tivesse sido a Revolução Russa, o marxismo também seria lembrado como uma curiosidade histórica, entre as várias escolas "socialistas" nascidas nos séculos XIX e XX; em 1917, até me dá a ideia que o marxismo só tinha influência intelectual séria entre alguns partidos que tinham  "social-democrata" no nome - como na Alemanha, na Áustria e na Rússia - enquanto os partidos que tinham "socialista" no nome - como em Portugal  - tendiam a ser menos sistemáticos e doutrinários; e em muitos países - como Portugal, Espanha, Argentina, Brasil ou a parte francófona da Suíça - provavelmente o anarquismo teria mais força que o socialismo partidário, marxista ou não: por alguma razão tanto o PCP como o PC brasileiro nasceram de cisões no anarquismo, e não de partidos "socialistas"/"social-democratas").

Já agora, no caso dos fascismos italiano e francês, note-se que o socialismo que mais os influenciou (o "sindicalismo revolucionário") até nem era particularmente estatista, logo não será daí (como por vezes é dado a entender) que vem a devoção dos fascistas pelo Estado; já é diferente no caso da Alemanha, já que o "socialismo de cátedra" (que, por via indireta, teve alguma influência no nacional-socialismo) até seria filosoficamente mais "estatista" que o marxismo (enquanto o marxismo, pelo menos em teoria, preconiza o desaparecimento gradual do Estado, e no século XIX opunha-se aos Estados realmente existentes, o "socialismo de cátedra" defendia desde o principio o papel do Estado - incluindo do Estado bismarkiano).

De qualquer maneira, eu até diria que, apesar de práticas políticas largamente opostas, há mais em comum (na sua filosofia mais profunda) entre o marxismo e o demo-liberalismo do que qualquer deles com o fascismo (o que, aliás, será provavelmente um dos motivos porque o extremismo de esquerda tende a ser muito mais socialmente aceite que o de direita: está mais dentro dos parâmetros do mundo do século XVIII) - tanto o marxismo como a democracia liberal são muito influenciados (não digo que a 100%, mas são-no em larga medida) pela mentalidade iluminista-materialista-humanista-progressista-otimista, pela ideia da razão humana como motor do progresso em direção a níveis cada vez mais elevados de civilização e bem-estar (note-se que mesmo que a aplicação prática de algumas dessas ideologias não tenha conduzido aos tais níveis mais elevados de civilização e bem-estar, isso é irrelevante - isso apenas demonstrará que a ideologia estaria errada e não deu os resultados pretendidos, não que o objetivo não fosse esse); o fascismo e o nacional-socialismo são muito diferentes disso - neles encontramos frequentemente a apologia aberta do mito em detrimento da "razão"; em vez da ideia de "progresso", a ideia que a história é cíclica, em que à grandeza frequentemente se sucede a decadência (tanto o fascismo ou o nacional-socialismo tinham muito a retórica de contrapor um passado glorioso - como o Império Romano ou a Ordem Teutónica - ao presente decadente, e querer fazer a Itália ou a Alemanha grandes de novo); e um culto do heroísmo e do sacrifício (vistos não como apenas meios para atingir fins, mas largamente como um fim em si mesmo, como sendo nesses momentos que o homem se eleva da mediocridade e da vida banal) contra o materialismo (a respeito desta parte do heroísmo, outra leitura que recomendo é a palestra de Leo Strauss sobre aquilo a que ele chama de «nihilismo alemão»[pdf], sobretudo as primeiras páginas).

No fundo, eu diria que o fascismo acabou por ter a base social típica dos liberais (a classe média, sobretudo os pequenos e micro-empresários - a esse respeito ver Fascism - Left, Right and Center, de Seymour Martin Lipset: ir aqui e procurar por "The return of De Gaulle to power in France in 1958", sem aspas), meios típicos dos socialistas (mobilização de massas, agitação revolucionária) e objetivos típicos dos conservadores, ou pelo menos dos conservadores continentais tradicionais (ordem, autoridade, hierarquia, cooperação entre as classes).

A respeito do artigo do André Azevedo Alves: ao que me parece, acaba por não ser exatamente sobre o que se está a discutir - creio que o ponto dele são mais as semelhanças entre o fascismo e o marxismo do que propriamente raízes comuns entre os dois (movimentos podem ter raízes comuns e práticas bastante diferentes - compare-se, p.ex., os maoístas com os partidos da Internacional Socialista - e o inverso provavelmente também será possível); inclusive algumas das semelhanças que o AAA apresenta entre o marxismo e o fascismo (como o partido único e o culto do líder) nem eram uma característica do marxismo quando Mussolini deixou o Partido Socialista (imagino que para um marxismo mais ortodoxo - que ache que a história é determinada pela forças económicas e sociais e não pelos indivíduos - o culto do líder seja uma heresia; por outro lado, reconheço que também é verdade que os marxistas se chamam marxistas, o que poderá indiciar já um embrião de culto da personalidade...), só aparecendo após a Revolução Russa, logo não terá sido ao seu passado ideológico que Mussolini os teria ido buscar.

A respeito do artigo de José Rodrigues dos Santos (ele entretanto publicou mais outro artigo, mas se estiver constantemente a refazer o post de acordo com os novos artigos que vão sendo escritos sobre o assunto nunca mais saio daqui - eventualmente talvez faça mais tarde outro post): eu diria que as maiores discordâncias face ao que ele escreve será a sua caracterização de Sorel e dos sindicalistas revolucionários como "marxistas"; o sindicalismo revolucionário era um movimento influenciado em parte pelo marxismo, em parte pelo anarco-sindicalismo (que na altura creio que anda nem tinha esse nome), e penso que no geral com uma certa aversão à sistematização ideológica (aliás, também é por vezes chamado "sindicalismo apolítico"); o mesmo pode ser dito acerca de George Sorel, que é descrito, por Jean Touchard na sua História das Ideias Políticas como "um eclético que se nutre por igual de Hegel e de Marx, de Bergson e de Proudhon, e sofre também a influência dos anarquistas, assim como das fontes do «sindicalismo revolucionário», do qual se virá a tornar, e quase sem o querer, o doutrinador" (uma mistura de referências ideológicas que, aliás, não é caso único).

JRS:

Numa obra tremendamente influente, Refléxions sur la violence, Sorel concluiu que a revolução não era inevitável nem seria espontânea. Teria de ser provocada. Como? Usando uma elite para guiar o proletariado e recorrendo à violência. Seria a violência que desencadearia a revolução.

Foi o marxismo soreliano que conduziu ao bolchevismo e ao fascismo.
JRS fala como se a diferença essencial de Sorel face a Marx fosse a ideia da necessidade da elite revolucionária (posição partilhada com Lenin). Mas penso que a diferença vai muito mais longe que isso; pegando na introdução que Jeremy Jennings fez a Reflections on Violence[pdf] (a tradução para inglês do livro de Sorel) :
Sorel’s retirement from government service in 1892 and move to the suburbs of Paris coincided with his first interest in Marxism. Upon the basis of a limited acquaintance with the texts of Marx, Sorel initially saw Marxism as a science. This, however, was quickly to change as he perceived the inadequacies of the economic determinism associated with Marxist orthodoxy. Accordingly, Sorel undertook a fundamental reinterpretation of Marxism, calling for a return to what he described as ‘the Marxism of Marx’. Denying the veracity of the so-called ‘laws of capitalist development’, he deprived Marxism of the certitude of ultimate victory, replacing the idea of an economic catastrophe facing capitalism with that of a moral catastrophe facing bourgeois society. ‘Socialism’, Sorel wrote, ‘is a moral question, in the sense that it brings to the world a new way of judging human actions and, to use a celebrated expression of Nietzsche, a new evaluation of all values.’
Ou seja, o "marxismo" de Sorel é um marxismo sem a parte do determinismo económico e das "leis do desenvolvimento capitalista" (compare-se com Lenin, que continuava a ser, no essencial, um determinista económico - mesmo a sua ideia de que os operários só conseguem chegar por si à "consciência sindical" e precisam de ser guiados pelos intelectuais das classes médias e altas para adotarem as ideologias socialistas não deixa de ser uma forma de determinismo económico; ah, e já agora, não, Lenin não achava que fosse possivel passar diretamente do feudalismo para o comunismo - isso seriam mais os "populistas"); mas atendendo a que o que distingue o marxismo das outras correntes socialista é exatamente a pretensão científica, de ter explicado as "leis dos desenvolvimento histórico" (é por isso que o marxismo se auto-designa por "socialismo científico") fará sentido considerar Sorel como "marxista", independentemente de como ele se considerasse?

JRS refere "que Mussolini esclareceu que o fascismo objetava ao marxismo não por este ser socialista, mas por ser anti-nacional.".

Vamos lá recordar o que Mussolini escreveu sobre o socialismo:
Tal concepção da vida faz do Fascismo a firme negação das doutrinas basilares do tais Marxismos científicos e socialistas, a doutrina do materialismo histórico que explicaria a história da humanidade em termos da luta de classe e por mudanças nos processos e instrumentos de produção, para excluir todo o resto.

Que a mudança da vida econômica – descoberta de materiais brutos, novos processos tecnicos, e invenções científicas – têm a sua importância, ninguém nega; mas que elas são suficientes para explicar a história humana, a ponto de excluir outros fatores, é absurdo. O Fascismo acredita, agora e sempre, na santidade e no heroísmo, isso é, em atos que nenhuma motivação econômica – remota ou imediata – existe. Tendo negado o materialismo histórico, que vê os homens como meros fantoches na superfície da história, aparecendo e desaparecendo na crista das ondas, enquanto que nas profundezas as verdadeiras forças diretivas se movem e trabalham, o Fascismo também nega o caráter imutavel e irreparável da luta de classes, que é o produto natural desta concepção econômica da história; acima de tudo, ele nega que a luta de classes seja o agente preponderante das transformações sociais.
Tendo então desferido um golpe nos dois pontos principais da sua doutrina, tudo o que resta é uma aspiração sentimental – velha como a própria humanidade – em direção às relações sociais, em que os sofrimentos e aflições dos populares mais humildes, serão aliviados. Mas aqui de novo o Fascismo rejeita a interpretação econômica da felicidade como algo a ser assegurado socialisticamente, quase automaticamente, num dado estágio da evolução econômica, onde a todos será assegurado o máximo conforto material. O Fascismo rejeita a concepção materialista de felicidade como uma possibilidade e a abandona para aqueles economistas de meados do Século XVIII. Isso significa que o Fascismo nega a equação: bem-estar = felicidade, que vê os homens como meros animais, contentes em serem alimentados e engordados, então os reduzindo a uma pura e simples existência vegetativa.
 Ou seja, a principal objeção de Mussolini ao marxismo (e provavelmente ao socialismo em geral) era este ser materialista e acreditar na luta de classes, não propriamente o este ser anti-nacional (o facto de por vezes neo-fascistas terem fantasias pan-europeias indicia que o nacionalismo não é tão importante assim como tudo para eles, ou então que qualquer "nação" - seja ela a Itália ou a Europa - lhes serve).

Claro que no final podemos interrogar-nos se isto (as origens ideológicas do fascismo) interessa para alguma coisa - afinal, também podemos considerar que as origens do marxismo estão, ou no autoritarismo prussiano (via Hegel) ou no liberalismo inglês (via Ricardo); e o partido único de facto de Singapura tem sem dúvida raízes marxistas mas governa um país no topo dos rankings de "liberdade económica" - será que as "origens" interessam tanto assim?

Na verdade, suspeito que esta polémica anda muito ligada ao uso da falácia da "superfície escorregadia" - "provar" que o fascismo está ligado à ideologia X permite, quer usar essa falácia contra a ideologia X ("o que vocês defendem vai dar ao mesmo que os fascistas defendiam"), quer defender-se do uso dessa falácia ("Vocês dizem que somos fascistas? Mas os fascistas inspiraram-se nos mesmos princípios que vocês"). Além disso, para os marxistas tem uma importância adicional - os marxistas consideram que o fascismo deriva do capitalismo (seja na versão estalinista - o fascismo como a ditadura aberta da burguesia - seja na trotskista - o fascismo como um movimento de revolta dos pequenos capitalistas ameaçados pela crise económica que depois são cooptados pelos grande capital para atacar a classe operária), logo dizer-lhes que afinal deriva do marxismo (ou, no geral, procurar explicações para o fascismo que se baseiem mais em ideologia do que nas forças económicas) é refutar a sua visão do fascismo.

3 comments:

João Vasco said...

«há um opinador anarquista português que, sempre que diz não é marxista, os blogues e o facebook enchem-se de comentários espantados a dizer "Afinal Fulano abandonou o marxismo?" »
Porque não nomeá-lo?
Estou 99% certo de que estás a falar do Rui Tavares, mas faltam aqueles 1%.

De resto, excelente texto, aprendi imenso sobre as origens de várias ideologias/movimentos.
Já alguma vez tinhas escrito um post tão extenso?

Miguel Madeira said...

Era mesmo do Rui Tavares (o não nomeá-lo foi capaz de ter sido por uma espécie de "private joke" com alguém com que tinha estado a discutir os dois assuntos no Facebook).

"Já alguma vez tinhas escrito um post tão extenso?"

Se calhar não - fui comparar com este (que também era muito extenso, e a partir do qual, por sugestão dos leitores, comecei a partir os posts em I, II, III...), mas o que fiz agora é muito maior. Mas o eu ter copiado 11 parágrafos de Mussolini (e voltado a repetir 3) também fez crescer o post (na verdade, a partir de certa altura comecei a pensar em partí-lo, mas depois achei que iria dar mais trabalho, já que não é só uma questão de simplesmente distribuir os vários parágrafos por posts distintos).

Carlos Duarte said...

Muito bom, Miguel Madeira.

Eu diria que a principal semelhança entre o nacional-socialismo (e mesmo o fascismo) e o marxismo é o seu pendor revolucionário. Ambos se colocam como oposição ao status quo, sendo, no entanto, que a interpretação deste diferencia (o marxismo é ultra-progressista e vê o momento actual como um passo no caminha a um futuro "cientificamente determinado" enquanto o NS e o fascismo são reaccionários - ou ultra-conservador - e vê o momento actual como uma degenerescência de um passado). Ambos, no fundo, querem um mundo novo (como nunca existiu, no marxismo, ou como existiu no passado, no fascismo).