Esta conversa já passou um bocado de moda, mas vou escrever alguma coisa sobre a famosa questão dos familiares de membros do governo. Nomeadamente sobre a questão se a situação atual é similar a outras que aconteceram noutros governos.
Eu diria que isso depende muito de uma coisa - de qual o motivo porque se acha que é mau haver parentes próximos no governo ou órgãos similares; é que há vários motivos possíveis:
a) Conflito de interesses: no Conselho de Ministros discute-se as propostas de cada ministro, e portanto estar lá mulher e marido, ou pai e filha pode perverter a conversa, já que podem ter dificuldade em avaliar objetivamente as ideias dos seus familiares próximos; nesse ponto a situação deste governo parece-me realmente diferente de outros casos (p.ex., os irmãos Miguel e Leonor Beleza) em que os familiares não estiveram ao mesmo tempo no governo; penso que será também diferente de situações em que o tio era ministro e sobrinho secretário de estado (como Diamantino Durão e Durão Barroso), já que suponho que não participavam os dois do conselho de ministros (embora sendo Durão Barroso um secretário de estado com muito peso no governo, se calhar até participava).
b) Possível nepotismo: haverem familiares no governo e zonas próximas pode ser um sintoma que as pessoas estão a ser escolhidas via cunhas e não pelo seu mérito pessoal. Curiosamente, nesse ponto, até acho que a situação inverte-se face ao anterior - é mais preocupante quando familiares são nomeados para cargos subalternos, não quando são todos ministros (ou, generalizando, estão no mesmo nível hierárquico); porque digo isto - uma ministra pode ter influência para conseguir nomear o marido para assessor, diretor-geral, talvez secretário de estado, mas dificilmente conseguiria nomear o marido como ministro; afinal, quem nomeia os ministros é o primeiro-ministro, e em principio uma ministra não terá nenhum ascendente sobre o primeiro-ministro que lhe permita meter uma cunha para o marido ser também ministro (regra geral, é difícil meter cunhas para lugares no mesmo nível que o nosso - é para cargos inferiores que normalmente se metem cunhas). Neste ponto, o que é preocupante serão as vagas de nomeações para assessores, gabinetes, etc. que todos os governos têm feito, não os 4 ministros familiares (o problema específico deste governo). Claro que se pode argumentar que as nomeações para ministros surgem na sequência de uma carreira, e que nos níveis inferiores podem ter beneficiado de cunhas, e que sem esse passado prévio nunca ninguém se teria lembrado deles para ministros; mas ai vamos ao ponto seguinte
c) Sinal que a classe política é um grupo fechado, onde só entram familiares e amigos: este ponto tem algumas semelhanças com o anterior, mas não se refere às pessoas terem sido nomeadas para aquele cargo especifico por nepotismo, refere-se aos privilégios que os familiares de políticos têm no processo de entrada na carreira política. Neste ponto, pouca diferença faz que os familiares sejam todos ministros, ou que estejamos a falar de uma ministra casada com um deputado, nem sequer é relevante que tenham sido ministros no mesmo momento ou em momentos diferentes (como os irmãos Beleza) - mais: se alguma coisa, se calhar ainda mais preocupante será vermos, ao longo de anos ou décadas, familiares a revezarem-se em cargos na política ativa (como se desculpava há dias o Marques Mendes, dizendo que nem o pai nem a irmã ocuparam cargos políticos relevantes na mesma altura que ele), já que será indicativo que o sistema é tão fechado que as mesmas famílias permanecem em cargos de topo durante décadas e por várias gerações.
Poderá perguntar-se porque é que eu publico este post agora, num momento em que o assunto já nem está a ser discutido - bem, a ideia era isto ser o primeiro post de uma série de posts sobre a questão da "igualdade de oportunidades" (iria ter uma continuação que provavelmente iria chamar-se "Contributo para uma teoria geral da endogamia e da discrminação"), e iriam ser publicados todos de seguida (ou seja, estava à espera de escrever o/os outro/os post/s para publicar também este). Mas como afinal esse outro post ainda irá demorar muito a ser escrito, e este em breve quase de certeza perderá muito da sua razão de ser quando for anunciado um novo governo, publico-o já agora.
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]
Friday, September 13, 2019
Regressando à questão da endogamia
Publicada por Miguel Madeira em 11:33