No Diário de Noticias, Nuno Garoupa refere o facto de os partidos de direita portugueses não se assumirem como tal:
Ninguém imagina os partidos DA esquerda jurarem que não são partidos DE esquerda. Mas os partidos DA direita insistem todos os dias que não são partidos DE direita. Assunção Cristas já confessou o seu centrismo, Passos Coelho afirmou recentemente que o PSD nunca foi um partido de direita. Quarenta anos depois do 25 de Abril, a fazer fé no que nos dizem as lideranças do PSD e do CDS, não há partidos de direita na Assembleia da República.O que questiono é se isso será uma excentricidade portuguesa, ou se será uma tendência geral, pelo menos na Europa ocidental - veja-se que o partido conservador sueco se autodenomina “os Moderados”, p.ex, e em francês até há a palavra “sinistrisme” (para designar o hábito dos partidos de direita terem nomes como “Rassemblement des Gauches Républicaines”). O politólogo René Remond até referiu que nas eleições presidenciais francesas de 74 o único candidato se se dizer de direita foi o Le Pen, e que em 81 nenhum se dizia de direita. Tenho também a ideia que no Parlamento Europeu o PPE e o Grupo Liberal chegaram a ter disputas para ver qual dos dois se sentava no centro (o que dá a entender que nenhum queria estar na direita).
E sobretudo ter "direita" no nome quase só acontece com movimentos considerados por toda a gente como de extrema-direita, como o Movimento Social Italiano - Direita Nacional (neofascista) ou o Grupo das Direitas Europeias no Parlamento Europeu (que agrupava os deputados da Frente Nacional francesa, do MSI-DN e da União Nacional grega, do ex-ditador Papadopoulos) - embora nesse aspeto talvez o uso de "esquerda" em nomes de organização não seja muito diferente.
De qualquer forma, atendendo à história política nos últimos 200 e tal anos, não é assim tão estranho que os movimentos considerados de direita recusem eles próprios a etiqueta.
Imagine-se que um rei absoluto, na sequência de agitação liberal, decide outorgar uma carta constitucional, com um parlamento com poderes reduzidos (estilo Jordânia ou Koweit), gerando a oposição por um lado de absolutistas (talvez agrupados em volta de um irmão do rei) e por outro de parlamentaristas, defendendo um parlamento com vastos poderes. É de esperar que neste cenário os defensores da "Carta" se assumam abertamente como pertencendo ao mesmo campo que os absolutistas? Provavelmente não (os parlamentaristas, esses sim, é que irão dizer que cartistas e absolutistas é tudo a mesma coisa e que a Carta foi só atirar areia para os olhos) - irão enfatizar que a Carta representou um grande avanço face ao regime absolutista (se antes fossem conselheiros do rei irão dizer "aceitamos quase todas as vossa exigências", e se fossem oposicionistas dirão "temos quase tudo o que queríamos") e que os parlamentaristas não passam de exaltados (alguns até tentarão colar os parlamentaristas aos absolutistas, num argumento do género "só nos defendemos o equilibrio dos poderes, contra os absolutistas que defendem o poder total do rei e os parlamentaristas que defendem o poder total do parlamento; estão a ver como os extremos se tocam?").
Uns anos mais tarde, via reforma ou revolução, o parlamento, eleito por sufrágio restrito, passa a ser o centro do poder (se o rei foi corrido ou foi posto a animar bailes de gala pouca diferença faz para aqui) e começa a emergir um movimento oposicionista defendendo o sufrágio universal; de novo a questão - os defensores do parlamento eleito por sufrágio restrito vão se assumir como sendo o mesmo lado dos seus antigos adversários, os defensores do poder real? E de novo claro que não (os democratas é que vão dizer que é tudo o mesmo, que são diferentes formas de uma elite controlar o poder nas costas do povo) - vão dizer que o sistema parlamentar, mesmo com sufrágio limitado, é completamente diferente do poder estar nas mão do rei, e que só extremistas exaltados vão comparar as duas coisas (alguns até tentarão colar os democratas aos monárquicos, num argumento do género "toda a gente votar, sem qualquer filtro de propriedade e qualificações, é abrir caminho ao poder de demagogos que vão acabar por destruir as instituições parlamentares e voltar a governar sozinhos como os reis de antigamente; estão a ver como os extremos se tocam?").
Mas finalmente é instituído o sufrágio universal e aí, com as pessoas de baixos rendimentos a poder votar, vão aparecer movimentos mais ou menos socialistas, defendendo a repartição das riquezas. Nessa altura os democratas liberais vão se considerar como estando sendo o mesmo lado que os adversários do sufrágio universal? De novo, provavelmente não (os socialistas, eles sim, irão fazer a analogia, dizendo que durante décadas se lutou pela democracia política e agora a luta é pela democracia económica) - os democratas liberais vão é tentar negar que haja algo em comum entre a defesa do liberalismo económico e o conservadorismo anti-democrático, e que as tentativas dos socialistas para misturar as duas coisas não passam de demagogia (alguns até tentarão colar os socialistas aos defensores da ordem hierárquica, num argumento do género "Foram séculos para deixamos de ser peças de uma sociedade rigidamente hierarquizada, definidos pelo nosso lugar numa ordem de classes, para passarmos a ser indivíduos independentes, colaborando voluntariamente no mercado, com liberdades civis e igualdade perante a lei, sem o Estado dar privilégios a alguém em especial; e agora, em nome da igualdade, querem de novo por o individuo submetido à sociedade e ao Estado, como antigamente; estão a ver como os extremos se tocam?").
Pondo as coisas de outra maneira - ao longo dos últimos 200 e tal anos, "direita" significou coisas que são aberrações perante os valores atualmente em vigor no mundo ocidental: reis absolutos, ou pelo menos a mandar mais que os parlamentos; privilégios para a nobreza; sufrágio censitário; escravatura; religiões oficiais (sim, alguns países, incluindo os progressistas escandinavos, ainda a têm, mas fazem tudo para não se lembrarem que têm); desigualdade legal entre homens e mulheres (é verdade que a questão do sufrágio feminino é mais complicada - muita vezes era a direita católica que defendia a extensão do direito de voto às mulheres); ausência de ajuda estatal aos mais pobres; colonialismo... Basicamente o mundo ocidental como o conhecemos foi obra de correntes que na altura era consideradas "esquerda" com a oposição do que então se chamava "direita" (mesmo que muitas vezes tenha sido a direita a finalmente tomar a decisão - como Bismark a criar a segurança social, Disreali o sufrágio universal, De Gaulle a dar a independência à Argélia - foi ao fim de anos em que a "esquerda" era a favor e a "direita" contra); assim, a "esquerda" gosta de enfatizar que é "esquerda", para se afirmar como a herdeira de todos os movimentos "progressistas" da história (talvez a começar pelas revoltas de escravos na Antiguidade, ou pelos movimentos dos "plebeus" em Roma antiga), e muita "direita" prefere evitar o nome, exatamente porque acha que não faz sentido juntar no mesmo saco quem defende um aumento mais gradual do salário mínimo e, digamos, o rei Fernando I das Duas Sicílias.
Note-se que o mesmo fenómeno não funciona para a "esquerda" - coisas como o comunismo ou mesmo o Terror jacobino não foram tão associadas à "esquerda" como, p.ex., o "Ancién Regime" à "direita". Nunca houve uma altura em que ser de "esquerda" fosse visto quase como sinónimo de defender o comunismo soviético - afinal, os bolcheviques subiram ao poder derrubando o socialista Kerensky, pouco depois já estavam em guerra com os anarquistas, e acabaram nos anos 20/30 a perseguir-se uns aos outros, com as fações vencidas a dizer que aquilo não era "o verdadeiro socialismo". Da mesma maneira, nunca se estabeleceu uma equivalência entre o Terror e a Revolução Francesa (como poderia ser, se os Girondinos, tão influentes nos princípios da Revolução, também foram guilhotinados?), tendo sido durante muito tempo usual (nomeadamente entre os defensores da Revolução) fazer a distinção entre o "89" e o "92". Pelo contrário, durante muito tempo "direita" significava, praticamente por definição, os defensores do poder monárquico; depois os defensores do sufrágio censitário, etc.
O resultado é que por regra a direita moderada tem quase sempre o cuidado de por um "centro-" ou pura e simplesmente dizer-se só de "centro" (ou usar a ambígua expressão "o centro e a direita") para não se confundir com a radical; já a extrema-direita, sobretudo a mais abertamente anti-democrática e/ou anti-parlamentar, não raro cultiva o estilo "não somos de direita nem de esquerda; rejeitamos ideologias falsas que só servem para dividir a nação".
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