Monday, June 15, 2020

Liberalismo "thin" e "thick" e o "politicamente correto"

Uma coisa que tenho notado, nestes anos todos em que tenho seguido com alguma regularidade blogues liberais e páginas liberais nas redes sociais, é que grande parte (a maioria? quase todos?), nas questões chamadas de "politicamente corretas" tendem a oscilar entre o liberalismo "estreito" ("O que interessa é apenas que não haja coação, nomeadamente intervenção do Estado") e o liberalismo "espesso" ("Mesmo em assuntos que não envolvem diretamente a intervenção do Estado, há certos valores, hábitos sociais, mais de acordo com uma sociedade livre do que outros"), conforme dá mais jeito.

Mais exatamente, quando se fala de discriminação salarial entre homens e mulheres, dificuldade de minorias étnicas arranjarem emprego, etc. etc. normalmente são liberais "estreitos" ("Ninguém tem nada a ver com a forma como cada um gere a sua empresa; a liberdade de associação é também a liberdade de não-associação"); quando se fala de alguém ser despedido por ter opiniões "politicamente incorretas", ou bloqueado numa rede social, ou um canal de aluguer de vídeos deixar de disponibilizar algum filme (ou simplesmente pôr um "disclaimer" antes do filme), transformam-se em liberais "espessos", e já acham que isso (a tal liberdade de não-associação a funcionar) é "a tirania do politicamente correto".

Uma situação caricata ocorreu há uns anos, numa discussão num grupo do Facebook, sobre um artigo ou uma entrevista da Sofia Afonso Ferreira, da Democracia 21, em que esta dizia que era contra as quotas para mulheres, e que a solução para as mulheres terem mais representação não eram leis mas começar-se a comprar coisas sobretudo às empresas que têm mais mulheres em cargos de gestão; no grupo estava tudo em polvorosa, dizendo "Isso é comunismo!" - a dada altura eu perguntei a um dos indignados se tinha algo contra uma empresa não contratar mulheres ou não contratar homossexuais, e ele respondeu que era completamente a favor das empresas contratarem quem quiserem. Eu acho que ainda hoje o pobre coitado não deve ter percebido a contradição lógica em que caiu: as empresas contratam quem quiserem e discriminam se quiserem, mas os consumidores comprarem produtos das empresas com muitas mulheres na gestão em vez das com poucas ou sem mulheres na gestão (ou seja, os consumidores discriminarem entre empresas) já é "comunismo".

E atenção que eu estou a falar de juízos morais, não estou a falar de política  - uma pessoa pode perfeitamente achar a discriminação racial em empregos ou a censura no twitter imorais mas não querer nenhuma lei a proibi-las.

Um aparte: na questão das redes sociais, parece-me que grande parte dos liberais portugueses foi ainda mais longe que o "liberalismo espesso" - que seria provavelmente ser tanto contra a intervenção do estado nas redes sociais, como contra a censura praticada por esses redes (eventualmente tentando combater essa censura com boicotes, "guerra cultural", lançamento de redes alternativas, etc.) - para defender mesmo as medidas intervencionistas de Trump.

Já há algum tempo que estava a pensar escrever algo sobre isto, mas o motivo imediato foi mesmo este tweet do João Miranda:


E este post do João Miranda de 2005:
A visão liberal que Pedro Mexia tem da sociedade não é a visão de uma sociedade meramente tolerante em relação à homossexualidade. O que Pedro Mexia pretende é uma sociedade amigável em relação à homossexualidade, uma em que as críticas à homossexualidade como as de João César das Neves não se ouçam, ou pelo menos não sejam maioritárias. Acontece que o liberalismo só pode garantir uma sociedade tolerante em relação às tendências minoritárias, mas nunca poderá garantir uma sociedade amigável em relação a todas as liberdades porque cada um é livre de não gostar de determinados comportamentos.

Do ponto de vista liberal, a sociedade não é um assunto político e não deve resultar da acção política. Uma sociedade liberal não deve ser o resultado de uma visão que os liberais possam ter porque a liberdade individual é incompatível com visões prévias sobre como essa liberdade deve ser usada. Do ponto de vista liberal, a sociedade deve resultar da acção livre dos seus membros, e o resultado final é totalmente imprevisível. Pode muito bem acontecer que da liberdade, que inclui a liberdade de se gostar ou não se gostar de determinados comportamentos sexuais, não resulte uma sociedade particularmente amigável para os homossexuais.
Não digo que estas duas opiniões sejam necessariamente contraditórias (e de qualquer maneira têm 15 anos de intervalo), mas parece-me haver um grande tensão entre elas.

1 comment:

ATAV said...

Há uma explicação perfeitamente lógica para essa aparente contradição: basta partir do principio que os liberais como o João Miranda são fascistas envergonhados.

Isso explica porque há tanta gente na IL que não gosta nada de liberalismo social (os gays, as drogas leves, o aborto, etc) e só fala de liberalismo económico (baixar/ acabar como os impostos directos, cortar no estado social, mais empregos precários, etc)

Explica também porque o CHEGA! e a IL têm tantas posições politicas coincidentes e um programa politico igual na parte económica. O comportamento dos seguidores de ambos os partidos nas redes sociais é semelhante sendo muito difícil distinguir entre uns e outros. Vê-se também na maneira como os liberais como o João Miranda nunca denunciam o comportamento de lideres autoritários como Trump ou Bolsonaro mas criticam os oponentes deles como se não houvesse amanhã e como adoptam imediatamente os "talking points" do Trump. Claro que quando a coisa corre muito mal ainda vão fazendo umas criticas muito tépidas mas isso só acontece porque não dá para evitar (aquilo da lixivia por exemplo).

E assim chegamos à parte do Thin/thick. Quando algo é favorável à posição da extrema-direita são liberais thin (não intervir, deixar andar), quando é contra o interesse da extrema-direita é thick (arranjar um pretexto para intervir).

Ensinar nas escolas que o gays devem ser respeitados? Engenharia social que deve ser travada (thick). Legislação que obriga as empresas a corrigirem o pay gap? É uma ameaça à liberdade de contratação dos acionistas e gestores devendo-se deixar o mercado atuar (thin).

É por isso que os centristas e a direita apoioaram a ascensão do Hitler a Chanceler e que este quando chegou ao poder fez um programa de privatizações maciço e cortou os direitos laborais, que o Mussolini liberalizou uma parte significativa da economia italiana (antes da Grande Depressão) e que o Guedes não tem problemas nenhuns em ser ministro do Bolsonaro. Explica também as simpatias de Hayek para com o regime de Salazar.

E é por isso que avanço esta previsão: o CHEGA vai comer o eleitorado do CDS e da IL
e se chegar ao poder, estes liberais todos vão converter-se em apoiantes indefetíveis. E se o CHEGA converter Portugal numa ditadura, os liberais de hoje serão os estatistas de amanhã (um estado que apoia os poderosos e deixa os pobres à mercê do mercado).

O Noah Smith é que os topou há quase uma década:
http://noahpinionblog.blogspot.com/2011/12/liberty-of-local-bullies.html