Num comentário nos Ladrões de Bicicletas, Luis Gaspar, argumentando não se pode ser verdadeiramente de esquerda e aceitar a metodologia neo-clássica, escreve "existe uma ideia central na esquerda (na esquerda europeia, vá) que é a existência de classe. A metodologia em causa é o individualismo metodológico, ou a enunciação de postulados básicos sobre o indivíduo e a consideração da sociedade como uma soma (ou agregação) destes indivíduos. É fácil de ver que esta metodologia encerra a possibilidade de haver factores sistéticos de sociedade, quanto mais de classe. Esta metodologia na verdade impede qualquer consideração de poder ou classe."
Os neo-clássicos talvez não usem o termo "classe", mas é perfeitamente possivel meter lá as classes sociais. Basicamente, em qualquer modelo neo-clássico, o que é que temos? Os indivíduos (ou "agentes"), as suas preferências, as suas dotações iniciais, as funções de produção e mais uma coisinha ou outra. Ora, as "dotações iniciais" e as "classes", no fundo, vão dar ao mesmo: uma "classe social" mais não é do que um conjunto de indivíduos com dotações iniciais semelhantes.
E, em termos de análise do processo politico, não me parece haver grande oposição entre a economia neo-clássica e uma abordagem de classe - a teoria da "escolha pública" (que, não sendo forçosamente neo-clássica, penso pode ser considerada parte da familia) gira exactamente à volta do processo de como os vários grupos de interesses afectam as decisões politicas - de novo, não lhe chamam "classes", mas, no fundo, é disso que se trata.
E, em termos de análise do processo politico, não me parece haver grande oposição entre a economia neo-clássica e uma abordagem de classe - a teoria da "escolha pública" (que, não sendo forçosamente neo-clássica, penso pode ser considerada parte da familia) gira exactamente à volta do processo de como os vários grupos de interesses afectam as decisões politicas - de novo, não lhe chamam "classes", mas, no fundo, é disso que se trata.
A metodologia neo-clássica também não é forçosamente alheia à questão sobre como uma dada estrutura social surge e se mantêm; veja-se o estudo de Evsey Domar (penso que pode ser considerado uma espécie de neo-clássico) sobre as origens da escravatura e da servidão .
Acerca da questão da metodologia neo-clássica encerrar a "possibilidade de haver factores sistémicos de sociedade", penso que não, e por duas razões:
a) É perfeitamente possivel imaginar modelos neo-clássicos em que diferentes distribuições das dotações iniciais conduzam a resultados bastante diferentes no funcionamento da economia (penso que a distribuição da riqueza pode ser considerada um factor sistémico da sociedade)
b) Se tivermos um modelo neo-clássico com funções não lineares, podemos ter um sistema com uma carrada se soluções de equilibrio possiveis (recorde-se que uma equação que não seja de 1º grau pode ter várias soluções). Nesses casos, termos um equilibrio ou outro acaba por depender muito de uma espécie de circulo vicioso, em que, se se estabelecer um dado equilibrio, esse equilibrio (e não um dos outros possíveis) acaba por se manter por si - isto costuma ser usado para explicar coisas um bocado triviais, como teclados de computador e localização industrial, mas suspeito que também pode ajudar a explicar coisas mais relevantes (de qualquer forma, penso que um equilibrio que se mantêm pela sua própria inércia pode ser considerado "um factor sistémico da sociedade" - pensado bem, tudo aquilo a que chamamos "facores sistémicos da sociedade" mais não são do que equilibrios que se mantêm pela sua inércia)
É verdade que são raros os economistas neo-clássicos de esquerda (e praticamente inexistentes os da "esquerda dura") mas suspeito que isso deriva mais de uma atracção/repulsão afectiva do que de uma verdadeira incompatibilidade metodólogica.
1 comment:
Wow. Mas que grande post, Miguel. Excelente.
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