Ultimamente, grande parte da esquerda tem-se dedicado a "bater" nas agências de rating, insinuando que elas criaram propositadamente a crise da divida dos países europeus.
Em primeiro lugar, vamos lá ver - que interesse teriam as agências de rating nisso? A narrativa habitual é de que as agências de rating estarão ligadas a grupos financeiros que investem na dívida soberana; mas, de novo, a questão mantem-se: que interesse teriam esses grupos numa desvalorização do rating dos países? Imagino um possível cenário: um investidor que daqui a uns dias vai participar num leilão de dívida poderá ter interesse a que o país que emite essa dívida tenha uma avaliação negativa, para baixar o preço; mas um investidor que já tenha divida desse país em carteira preferirá o contrário - uma avaliação positiva, para fazer subir o valor dos seus investimentos. E, atendendo que, por regra, o valor total da dívida é muito maior que o valor da dívida que está a ser emitida num dado momento, podemos concluir que para a maior parte dos investidores o que interessaria seria avaliações artificiais "para cima", não "para baixo". Pode-se contra-argumentar que há formas de ganhar dinheiro com a desvalorização da dívida de um país, através do short-selling ou de "credit default swaps", mas para cada investidor que faz short-selling, tem que haver outro a possuir dívida, pelo que não se percebe porque razão uns haveria de ter mais poder para influenciar as agências de rating do que outros.
Já agora, um parênteses acerca dos juros - quando se diz "hoje os juros de Portugal atingiram um novo máximo", há que comente "isso não devia ser assim; os juros deveriam ser fixos!"; ora, isso é um equivoco acerca de como funcionam os mercados de dívida - na verdade, o juro que o Estado português paga e os credores recebem é fixo; quando se diz que os juros "chegaram aos 9%", isso não quer dizer que o valor dos juros pagos subiu, mas sim que o preços dos títulos da dívida portuguesa desceu (logo a taxa de juro, medida como [juros a pagar / preço da dívida], subiu). Este apontamento pode ter alguma importância para esta discussão - efectivamente, se a subida dos juros significasse que os credores iriam receber mais, isso efectivamente poderia ser um incentivo para baixar o rating; mas a "subida dos juros" na realidade significa apenas a desvalorização dos títulos detidos pelos credores, algo que não os beneficia em nada, muito pelo contrário.
É verdade que existe um fundo por detrás desta desconfiança face as agências de rating - o papel que estas desempenharam antes da crise, dando avaliação de "AAA" a empresas à beira da falência; mas uma fraude "para cima" tem uma dinâmica completamente diferente de uma fraude "para baixo" - a fraude "para cima" beneficia agentes bem definidos (quem está a vender) e prejudica incertos (quem vai comprar); já a fraude "para baixo" prejudica agentes bem definidos (de novo, quem está a vender) e beneficia incertos (quem vai comprar). Ora, o primeiro tipo de fraude faz muito mais sentido, nem que seja porque se sabe a quem se vai cobrar a comissão por aldrabar as contas (já agora, convém notar que o único caso provado de uma instituição financeira internacional ter estado envolvida duma fraude relacionada com a dívida soberana dos PIIGS foi numa fraude "para cima" - a colaboração do Goldman-Sachs na manipulação das contas gregas).
Mas o mais importante aqui nem é isso, mas a dissonância cognitiva em que os criticos das agências de rating caiem - afinal, são mais ou menos as mesmas pessoas que há pelo menos dois anos dizem (provavelmente com razão) que "é impossível uma moeda comum sem um orçamento comum a sério" ou que "a politica que tem sido seguida de baixar os salários só vai criar uma deflação e assim aumentar ainda mais o valor real da dívida, agravando o problema". Mas, se a UE tem uma arquitectura institucional e económica que não funciona, e se os países europeus têm seguido uma política que só está a piorar as coisas, não faz todo o sentido que as agências de rating dêem avaliações cada vez piores?
Já agora, interrogo-me se, quer os críticos, quer os defensores das agência se terão dado ao trabalho de ler os relatórios que elas fazem a justificar a descida dos ratings; eu nunca o fiz (até porque esses relatórios só são para assinantes), mas já li resumos, e pelo menos em dois casos parecia-me praticamente igual ao que a esquerda diz: que os problemas que Portugal tinha eram a contracção da economia provocada pela austeridade e a possibilidade de o Estado ter que ir gastar mais dinheiro em apoios à banca privada.
Então, qual o porquê da raiva contra as agências de rating? A melhor explicação que me ocorre é que muita gente à esquerda se tenha esquecido da máxima "o problema não são as pessoas, é o sistema" e em vez de se concentrar na critica ao sistema politico-económico em vigor na UE tenha decido ir à procura de um grupo de "capitalistas maus" para identificar como os responsáveis da crise.
Tuesday, April 26, 2011
Em defesa das agências de rating
Publicada por Miguel Madeira em 10:37
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3 comments:
Excelente post, que espero ver debatido à esquerda, à direita, em cima e em baixo.
Tenho uma nota a acrescentar: há um conjunto de pessoas de esquerda que diz - embora não encontre nenhuma fonte para citar, porque é mais "conversa de café" ou "teoria da conspiração" do que outra coisa - que as agências de rating são uma arma para os EUA atiçarem "os mercados" contra a UE. Aqui, "atiçar os mercados" significa desviar as atenções da insustentabilidade da economia americana para a impossibilidade de a Europa continuar com o seu estado social, o que poderia ser visto como um conluio USA + China (que lhe compra a dívida pública) vs Europa. (E talvez daí a "necessidade", para alguma esquerda, de criar uma agência de rating europeia?)
Não esquecer também que o Lehman Brothers poderia ter levado ao colapso da economia mundial, transferiu uma dívida gigantesca para os contribuintes americanos e causou danos no mundo inteiro, apresentando no entanto aos olhos das agências de rating contas saudáveis. Daí que a visão de esquerda anti-capitalista possa coincidir em certos aspectos com a da direita liberal (que vê os defeitos capitalismo como fruto do corporativismo) e, por isso, não caia necessariamente nessa tal dissonância cognitiva.
Um outro aspecto a ter em conta é o interesse em criar um bode expiatório internacional que alivie a tensão interna quer contra o governo, quer contra a banca privada. As agências de rating são o ideal para isso. Usa-se o discurso patriótico contra o inimigo externo para unir todos à volta de um consenso alargado. A esquerda não parece estar muito atenta a esta situação, mesmo que esse discurso já esteja a ser difundido por fazedores de opinião como o Mário Soares.
Miguel, como explica as altas cotações com que as agências classificam inúmeras instituições norte-americanas, sabendo das dificuldades que atravessam? O cidadão comum não percebe.
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