Imagine-se que um cientista maluco concluía que a Fóia, na serra de Monchique, não tem uma altitude de 902 m mas sim de 11.936 m. O motivo - a medida de 902 m é feita contando apenas a partir do nivel médio do mar, ignorando todo o que está por baixo do mar. Tomando como referência a Fossa das Marianas, que está a 11.034 m abaixo do nível médio do mar, temos que adicionar 11.034 m ocultos à altitude da Fóia (e a todas as altitudes existentes...).
Isso faz sentido? Claro que não. É um disparate, digno de um Prémio IgNobil. Poderíamos eventualmente fazer isso, mas não teria qualquer utilidade, e no final as montanhas mais altas continuariam a ser as mais altas.
No entanto, muita gente (incluindo gente a que me habituei a respeitar, como os bloggers do Arrastão ou dos Ladrões de Bicicletas) está a citar entusiasticamente um estudo parecido sobre a dívida alemã. Um gajo qualquer decidiu medir a dívida pública usando um método inovador - somar, não apenas as dívidas contraídas, mas também todo o dinheiro que se espera que o Estado alemão vá gastar nos próximos anos com com pensões, subsídios de doença, etc. Há primeira vista, até parece fazer algum sentido, até nos sentarmos para pensar e concluirmos que é uma parvoíce - se vamos contar as estimativas de despesa futura como dívida, também deveríamos abater à divida as estimativas de impostos futuros (já agora, quando se calcula o endividamento das famílias apenas se conta com as dívidas já contraídas, não se conta como "dívida" as despesas que essas famílias ainda vão ter com os filhos até eles saírem de casa; e no balanço das empresas não se conta como "dívida" os salários que os trabalhadores vão receber nos próximos anos).
E, mais importante, esse estudo é irrelevante para comparações entre países - se esse autor contou a dívida alemã por um método que só ele usa e que não é utilizado para medir a divida de nenhum país no mundo, não se pode comparar a dívida alemã medida pela maneira "criativa" com a dívida portuguesa medida pela maneira tecnicamente ortodoxa. Voltando ao exemplo inicial, era como dizer que a Fóia, com os seus 11.936 metros, afinal era mais alta que a Serra da Estrela e que o Everest (não era, porque com o novo método a Serra da Estrela e o Everest também seria mais altos do que actualmente).
E também é absurdo dizer coisas como "a dívida alemã atingiria 185% do seu produto interno bruto (...) O limitar crítico a partir do qual a dívida esmaga o crescimento é de 90%. " - esse cálculo de que a dívida esmaga o crescimento a partir dos 90% foi feito a partir de observações medindo a dívida pelos métodos cientificamente consagrados, não pelo método usado nesse estudo (ou seja, se fossemos usar a fórmula de cálculo usada para esse estudo, concluiríamos que os tais países com crescimento "esmagados" têm uma dívida pública muito superior a 90%). Voltando ainda ao exemplo, era como dizer que os habitantes de Monchique tinham que começar a usar garrafas de oxigénio, porque afinal a serra estava acima da altitude a partir do qual o oxigénio começa a ficar raro.
Talvez ainda mais grave são as consequências politicas que esse estudo implicaria - o Daniel Oliveira, o Sérgio Lavos ou o Nuno Serra querem mesmo concluir que a Alemanha tem uma dívida pública insustentável, e por isso se calhar é altura de fazer mais uns cortes orçamentais? É que isso só iria prejudicar ainda mais a economia europeia e mundial.
Na verdade, neste momento, se há algo a criticar à Alemanha é serem demasiado restritivos nas despesas (se o Estado alemão tivesse um deficit maior, isso iria aumentar a "procura interna pan-europeia", o que talvez contrabalançasse a redução da procura interna nacional de países como Portugal, a Irlanda ou a Grécia), não terem "dívidas" imaginárias.
O que leva então tanta gente a ter dado ouvidos a essa asneira, que ainda por cima tem consequências políticas largamente opostas às que defendem? Suspeito que é um pouco da deriva nacionalista que o Zé Neves fala aqui: neste caso, responder ao nacionalismo alemão ("vocês do sul são uns preguiçosos e parasitas") não com o internacionalismo ("o aprofundamento da crise global vai prejudicar os trabalhadores de todo o mundo, incluído os da Alemanha") mas com uma espécie de nacionalismo anti-alemão pseudo-internacionalista ("vocês alemães também são umas grandes peças; afinal também têm uma dívida monstra").
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]
Tuesday, October 04, 2011
O anti-germanismo e o disparate
Publicada por Miguel Madeira em 00:31
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