Os países ocidentais têm alegado a que secessão crimeia e a sua posterior anexação pela Rússia vão contra o "direito internacional".
O "direito internacional" é como a "constituição inglesa" - parte não está escrita e é uma coleção de precedentes, tradições, etc., e a parte que está escrita não está toda escrita no mesmo sítio, mas sim dispersa por vários documentos, actos, tratados, protocolos, etc.
Creio que o que está em dúvida na questão da Crimeia é mesmo a sua secessão da Ucrânia (penso que ninguém contesta que dois estados soberanos se podem integrar se assim o decidirem; a integração da Crimeia na Rússia só é contestada porque a independência da Crimeia é contestada); ora, não me parece que seja liquido que vá contra o "direito internacional" que um território proclame a sua independência, ainda mais na sequência de um referendo. Desde pelo menos o século XIX (ou talvez sobretudo desde o fim da I Guerra Mundial e os 14 pontos de Wilson) que me parece haver duas tendências potencialmente contraditórias no pensamento (e na retórica) dominante: por um lado, há o principio da soberania dos estados; por outra, há o principio do direito dos povos à auto-determinação (esses dois principios contraditórios são frequentemente englobados na designação "soberania nacional", o que ainda aumenta a confusão).
Muita gente (exemplo) tem escrito que o "precedente do Kosovo" abriu as portas ao referendo da Crimeia e impediu o Ocidente de ter uma posição coerente na questão. O que eu venho disputar é que exista verdadeiramente um "precedente do Kosovo", isto é, que haja alguma diferença significativa entre a independência do Kosovo e muitas outras independências que houve por aí. Também podemos ter:
-O precedente de Portugal (I): em 1139, o conde D. Afonso Henriques proclama-se rei de Portugal
-O precedente dos Paises Baixos: em julho de 1581, os Estados-Gerais dos Países Baixos recusam a autoridade do rei Filipe II de Espanha, dando origem às Provincias Unidas e à Guerra dos 80 anos contra Espanha
-O precedente de Portugal (II): em 1640, uma conspiração de nobres destitui Filipe III (IV de Espanha) do trono português, substituindo-o por D. João IV, acabando assim com a união real entre Portugal e Espanha; a restauração da independência portuguesa só viria a ser reconhecida por Espanha em 1668
-O precedente dos EUA: a 2 de julho de 1776, o Congresso Continental, reunindo representantes das 13 provincias que estavam em choque com o goerno britânico, proclamam a independência; dois dias depois, essa proclamação é formalizada num documento dizendo que os governos derivam o seu poder do consentimento dos governados, dando início à Revolução Americana
-O precedente do Haiti: em janeiro de 1804, as forças rebeldes de Jean-Jacques Dessalines, após derrotarem os exércitos de Napoleão, proclamaram a independência da República do Haiti (que só viria a ser reconhecida pela França umas década depois)
-O precedente da Argentina: em 1816, as Provincias Unidas da América do Sul proclamam a independência de Espanha; Espanha viria a reconhecer a independência em 1857
-O precedente do Peru: após derrotar os espanhóis e entrar com as suas tropas em Lima, Antonio de San Martin proclamou a independência do Peru, em 1821
-O precedente do México: em 1821, o general Iturbide (apoiado pela aristocracia local, assustada com a revolução liberal espanhola) proclama a independência do México (com ele como imperador)
-O precedente da Grécia: no decurso da rebelião contra o Império Otomano, em 1822 a "Assembleia Nacional" aprova a primeira Constituição grega, fucionando para todos os efeitos como a proclamação de um estado grego independente
-O precedente do Brasil: a 2 de setembro de 1822, o principe D. Pedro recusa as ordem das Cortes portuguesas para regressar a Portugal, e proclama a independência do Brasil (com ele como imperador)
-O precedente da Bolivia: a 6 de agosto de 1825, a Bolivia proclamou a independência de Espanha
-O precedente do Uruguai: com o apoio da Argentina, o Uruguai proclama-se independente do Brasil a 25 de agosto de 1825; a independência viria a ser reconhecida em 1828
-O precedente da Bélgica: em outubro de 1830, no contexto das revoluções desse ano, a Bélgica proclama-se independente dos Países Baixos, que foi reconhecida por grande parte da "comunidade internacional" da época em dezembro; no entanto, só será reconhecida pelos holandeses em 1839
-O precedente do Panamá: em 1903, com o apoio politico e militar dos EUA, o Panamá proclamou-se independente da Colômbia (que reconheceu a independência em 1921)
-O precedente da Noruega: a 7 de junho de 1905, o parlamento norueguês (que então funcionava numa união real com a Suécia, como Portugal e Espanha entre 1580 e 1640) depõe o rei sueco e convoca um referendo sobre a independência (onde 99,95% dos eleitores votam a favor); o governo sueco inicialmente considera isso uma revolta e ainda pondera recorrer à repressão, mas a oposição social-democrata e os sindicatos adoptam a linha "Tirem as mãos da Noruega" e ameaçam com greves contra uma eventual guerra. Face à atitude da sua própria população, a Suécia reconhece a independência norueguesa
-O precedente da Mongólia: em 1911, a Mongólia proclama-se independente da China; creio que, ainda hoje em dia, Taiwan continua a não reconhecer oficialmente a independência da Mongólia
-O precedente da Checoslováquia: em outubro de 1918, um governo provisório proclama a independência da Checoslováquia, com o apoio dos aliados contra o império austro-húngaro
-O precedente da Indonésia: em 1945, a Indonésia proclama a independência, dando origem a uma guerra com os Países Baixos que só terminaria em 1949
-O precedente de Israel: em 1948, Israel proclama a sua independência uma hora antes de momento que havia sido definido pela ONU (ok, este exemplo - uma hora de independência unilateral - parece ridiculo, mas mais à frante vou explicar porque acho que não é)
-O precedente do Bangladesh: em 1971, na sequência da violenta repressão do exército paquistanês contra os autonomistas bengaleses, é proclamada a independência da República Popular do Bangladesh (Bengala Livre); perante a invasão de refugiados do então Paquistão Oriental (e, segundo alguns, também com receio de ter uma revolução mesmo ao pé da porta), o exército indiano invade o Paquistão Oriental/Bangladesh ao lado dos independentistas, derrotando os paquistaneses e permitindo o estabelecimento de facto do Bangladesh como um país independente. No entanto o Paquistão só reconhecerá o Bangladesh um ano depois.
-O precedente da Guiné-Bissau: proclamou a independência a 24 de setembro de 1973, num congresso do PAIGC em Madina do Boé; veio a ser reconhecida por Portugal a 10 de setembro de 1974
Alguns leitores podem estar a pensar "tantos exemplos obscuros, e nenhuma referência às dissoluções da Checoslováquia, da Jugoslávia e da URSS?"; mas no caso da Checoslováquia foi o próprio parlamento nacional que tomou a decisão de partir o país em dois; não foram as regiões que tomaram a iniciativa de proclamar a independência. Quanto à URSS e à Jugoslávia, as suas constituições (ou pelo menos a soviética, mas penso que também a jugoslava) garantiam às repúblicas o direito a saír se quisessem (atenção que o Kosovo não era uma república da Jugoslávia, era uma província da Sérvia) - em teoria, a URSS e a Jugoslávia eram "federações (ou, mais exactamente, confederações) livres de povos soberanos", pelo que se pode argumentar que essas independências não foram unilaterais, já que era algo previsto na própria lei do país original (note-se que a guerra civil jugoslava não foi fundamentalmente - tirando talvez nos primeiros dias - sobre se a Eslovénia, a Croácia e a Bósnia-Herzegovina podiam sair da Jugoslávia, mas sobretudo sobre se os territórios de maioria sérvia da Croácia e da Bósnia-Herzegovina poderiam, eles também, proclamar a independência e associarem-se à Sérvia).
Poderá-se argumentar que todas estas declarações unilaterais de independência que citei acabaram por ser reconhecidas pelo estado soberano original (mesmo o não reconhecimento da Mongólia por Taiwan é puramente formal - provavelmente Taiwan adoraria reconhecer a independência da Mongólia, e nos últimos anos tem feito tudo para ter uma relação com a Mongólia idêntica à que tem com a maior parto dos países no mundo, mas há um artigo qualquer na constituição que é díficil de mudar e que os impede de reconhecer a Mongólia); no entanto não acho que isso seja muito relevante, por três motivos:
Em primeiro lugar, a maior parte desses países consideram que a sua independência começou com a declaração de independência (ou, pelo menos, quando adquiriram o controle de facto sobre o seu território), não com o reconhecimento dessa independência pelo anterior soberano - veja-se que Paulo Portas disse que a saída da troika iria ser um 1640 financeiro, não um 1668 financeiro, e nos nossos jardins há gravuras evocativas do 1º de dezembro, mas nunca vi nenhuma evocando o Tratado de Lisboa. Da mesma maneira, os EUA comemoraram o bi-centenário em 1975/76, não em 1983. Penso que o motivo que levou Israel a declarar a independência uma hora antes do previsto também terá sido esse - mostrar que eram um estado a sério, que proclama a sua própria independência, em vez de a receber como um presente da comunidade internacional (uma curiosa excepção a essa regra: na escola primária aprendemos que Portugal se tornou independente em 1143 - quando o rei de Leão reconheceu D. Afonso Henriques como rei de Portugal - e não em 1139, quando ele se proclamou rei).
Em segundo lugar, grande parte (se não todos) destes estados começaram a ser reconhecidos pela "comunidade internacional" (isto é, por outros estados) antes de serem reconhecidos pelo estado soberano original (alguns, como o Panamá e o Bangladesh, só se tornaram realmente independentes graças à intervenção externa); ora, grande parte da polémica acerca do suposto "precedente do Kosovo" tem a ver com a "comunidade internacional" ter reconhecido uma independência unilateral; mas, pelos vistos, desde sempre que a "comunidade internacional" anda a reconhecer independências unilaterais.
Em terceiro lugar (que se calhar até poderia ser o primeiro), grande parte desses reconhecimentos pelo estado soberano original ocorreram na sequência de uma guerra (na minha lista de 21 exemplos, só vejo umas 5 ou 6 excepções). Confesso que me parece díficil perceber o raciocínio que diz que um país proclamar a sua independência sem o reconhecimento do estado soberano não pode ser, mas já pode ser obrigar a tiro o estado soberano a conceder a independência - é um pouco como ser contra o roubo por esticão (agarrar a mala de alguém e desatar a fugir) mas já não ser contra o roubo à mão armada (apontar uma pistola a alguém e dizer "a mala ou levas um tiro").
Tuesday, March 25, 2014
O "precedente do Kosovo"
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