Nesta entrevista, a comandante sandinista Mónica Baltodano, ministra do governo revolucionário na década de 1980 e expulsa da FSLN pelas suas críticas à transformação da frente num partido burguês ao longo da década de 1997, explica a situação da esquerda nicaraguense nestas eleições. Ela mostra como o candidato vitalício Daniel Ortega estabeleceu pactos com a direita do país, inclusive com somozistas e contra-revolucionários, para articular a sua volta ao poder. "A outrora direcção colegiada que distinguia a FSLN foi enterrada com a derrota de 1990. O caudilhismo substituiu a liderança colectiva", diz Mónica, que participa da Aliança MRS.
Por que a FSLN abandonou os princípios do sandinismo e o que representa o "danielismo"?
É preciso lembrar que a triunfante revolução popular sandinista de 1979 foi submetida a uma guerra de desgaste. Toda uma década em que o presidente Ronald Reagan, dos Estados Unidos, sustentou que, se os EUA não podiam prevalecer na América Central, derrotando os sandinistas, então não prevaleceriam em nenhuma parte do mundo. A guerra de desgaste terminou na derrota política do sandinismo nas eleições de 1990. A partir de então, se iniciou um processo de reversão do processo revolucionário. A profundidade e o alcance dessa reversão, porém, escapam à nossa compreensão. Em poucas palavras, a revolução popular foi derrotada. Já temos 16 anos de restauração acelerada do capitalismo e três derrotas seguidas nos processos eleitorais presidenciais. Neste refluxo prolongado, as mudanças não só alcançaram a sociedade nicaraguense, mas também operaram dentro da Frente Sandinista. A direcção política da revolução involuiu de maneira pacífica para o acomodamento com o capitalismo. A cúpula actual da direcção da FSLN converteu-se numa elite económica e empresarial emergente com colorido sandinista, que disputa o poder económico e político com as oligarquias tradicionais do país. Por outras palavras, os dirigentes da vanguarda transformaram-se em dirigentes empresariais e políticos funcionais do sistema. Os líderes, que no passado não tinham outros interesses que não os do povo, hoje têm os seus interesses particulares. Defender os seus espaços de poder, os privilégios do seu estatuto político e desde logo os seus interesses empresariais.
Daniel Ortega é o líder deste processo de reversão no sandinismo. O "danielismo" representa, do ponto de vista ideológico, a transição do sandinismo ao capitalismo. Daniel, a partir do controlo absoluto das estruturas partidárias, não admite dissensões - administra, dirige e arbitra tudo na Frente Sandinista. A outrora direcção colegiada que distinguia a FSLN foi enterrada com a derrota de 1990. O caudilhismo substituiu a liderança colectiva. Como o próprio Daniel declarou publicamente: "Eu sou a FSLN". De forma que causas populares, interesses nacionais estão subordinados na FSLN à vontade de Daniel Ortega e sua cúpula. Ao melhor estilo autoritário ou, se quiser, ao melhor estilo stalinista.
Daniel Ortega fala em "reconciliação nacional". Isso é possível na Nicarágua?
Daniel tem grandes possibilidades de vencer as eleições. Está comprovado que os povos poucas vezes apoiam a melhor opção. Todas as expressões da sua competição política estão fragmentadas ou divididas. De acordo com as regras estabelecidas por ele e pelo corrupto Arnoldo Alemán, é necessário o apoio da terça parte dos votos válidos para ganhar no primeiro turno. É uma oportunidade - que ele e o seu grupo vêem como a última - e estão dispostos a chegar ao governo sem importar o preço. Neste afã, só faltou fazer pacto com o diabo. A sua tese principal é que já não existem inimigos. O importante é reconciliar os interesses, por mais antagónicos que sejam, com a finalidade de ganhar mais votos. Nesta direcção, estão a sua aliança com o Partido Liberal Somozista, com os ex-guardas do Exército da ditadura, com antigos quadros dos "contras" que executaram crimes contra o povo, com quadros político-ideológicos chaves de Reagan (como o seu candidato a vice-presidente), com a cúpula reaccionária da hierarquia católica, os seus compromissos públicos de se converter num defensor da ALCA. Os seus compromissos com o FMI, o seu compromisso de não permitir ocupações de terra por camponeses, de respeitar o carácter sagrado da propriedade privada, a economia de mercado, a sua condenação ao aborto terapêutico, são, entre outros, parte dos componentes da sua política de "reconciliação nacional". Em outras palavras, compromissos e concessões com todos aqueles que apoiam a sua candidatura.
O que defende o Movimento Renovador Sandinista?
O MRS nasce como movimento político em 1995, quando um numeroso grupo de intelectuais e dirigentes se desliga da FSLN por divergências políticas. Esse movimento, convertido em Partido, manteve-se durante dez anos como uma força sem muito apoio popular. Em meados do ano 2005, um grande número de sandinistas iniciou um movimento político para lançar o então prefeito de Manágua, Herty Lewites, como candidato à presidência pela FSLN. A resposta da direcção oficial foi a eliminação das eleições primárias internas (prévias), estabelecidas no estatuto da FSLN, e a proclamação ilegal e arbitrária de Daniel Ortega como candidato presidencial da FSLN, pela quinta vez e depois de três derrotas consecutivas. A supressão das eleições internas foi acompanhada da expulsão da FSLN de Lewites e de Victor Hugo Tinoco. Toda a espécie de desqualificações foram usadas contra Lewites e contra quem o apoiava: "agentes do imperialismo", "agentes da direita", "inimigos dos interesses populares". Denúncias inconsistentes, pois Lewites tinha sido sempre uma das pessoas de maior confiança do próprio Daniel, até que ousou desafiá-lo na candidatura à presidência. Tinoco tinha sido vice-chanceler do governo sandinista e era membro da direcção nacional da FSLN, ainda que desde o começo se tenha oposto ao pacto com Alemán. Assim, foram se aglutinando em torno de Lewites sandinistas que durante estes anos foram marginalizados por Ortega: comandantes da Revolução, como Victor Tirado, Henry Ruiz e Luis Carrión, intelectuais como a escritora Gioconda Belli, o poeta Ernesto Cardenal e o cantor Carlos Mejía Godoy, comandantes guerrilheiros Mónica Baltodano e Rene Vivas. E um sem-número de líderes e militantes de base, que organizaram o Movimento pelo Resgate do Sandinismo (MPRS), uma força política disposta a resgatar os valores e ideais sandinistas e a apostar num projecto que transforme integralmente a situação do nosso país. Com o objectivo de curto prazo, o MPRS decidiu construir uma alternativa eleitoral para Novembro de 2006. Em Agosto do ano passado, estabelecemos uma aliança com o Movimento Renovador Sandinista, fundado em 1996 pelo escritor Sergio Ramírez e pela comandante Dora Maria Téllez. Em maio, com o Partido Socialista Nicaraguense e o Partido Verde Ecologista, e mais recentemente com o Partido de Acção Cidadã. A Aliança inclui hoje outros movimentos políticos e sociais não-partidários, como o Cambio, Reflexão Ética e Acção (CREA), que aglutina membros da Juventude Sandinista e combatentes da defesa da Revolução na década de 1980, o Movimento Autónomo de Mulheres (MAM) e associações de vítimas de agro tóxicos (Nemagón). Liderada por uma figura tão popular como Herty Lewites, a Aliança MRS conquistou rapidamente a imaginação de muitos sandinistas e de milhares de nicaraguenses sem partido. Em Dezembro de 2005, a Aliança tinha 30% das intenções de voto. A morte repentina de Herty Lewites, em 2 de Julho de 2006, colocou a Aliança MRS numa encruzilhada. A vontade de articular uma força alternativa às políticas neoliberais e à corrupção impôs-se à adversidade e demonstrou que o movimento ia além de uma personalidade e de uma candidatura.
A respeito da posição de Daniel Ortega e da FSLN face a uma dos pontos levantados por Mónica Baltodano, a da proibição do aborto terapêutico, ver também o post do hoje à conquilhas, Daniel Ortega, o aborto e as eleições na Nicarágua (penso que um dos pontos levantados no post scriptum já está respondido).
1 comment:
aqui deve-se ter duas visões:
1- ou usa estes "pactos" como estrategia para vencer.
2- ou defendem essas leis, e isso é lá com eles, embora sejam muito repressivas para meu gosto.
o movimento sandinista não é bem esquerda, mas o que mais se aproxima por aquelas paragens.
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