Normalmente, a esquerda costuma rejeitar a ideia de um país entrar com as suas tropas adentro de outro pais com um "mau governo" para colocar no poder um "bom governo" (um argumento clássico é "eu não achava bem que os americanos viesse cá derrubar o Salazar"). Mesmo os comunistas pró-soviéticos, quando a URSS fazia coisas dessas no Bloco de Leste, tentavam arranjar sempre alguma desculpa para demonstrar que a "soberania nacional" não estava sendo violada (p.ex., quando a URSS invadiu o Afeganistão - recorde-se, com o objectivo inicial de substituir um regime comunista de "linha dura" por um que fosse mais "brando" - durante os primeiros dias disseram que estavam lá a pedido do governo afegão, até se tornar público que o líder comunista local havia sido morto pelos invasores).
Mas, por outro lado, a esquerda não tem normalmente nada (muito pelo contrário) contra George Orwell ou Christopher Caudwell lutando ao lado dos republicanos espanhóis ou Jaroslav Dombrowsky ao lado da Comuna de Paris, isto para não falarmos nas t-shirts mais populares entre os jovens esquerdistas (Byron e Garibaldi e as causas porque lutaram já saíram de moda há muito, mas creio que também eram populares entre os "radicais" do seu tempo).
Mas haverá uma grande diferença entre um exército estrangeiro entrar num país para mudar o seu regime politico-social e um estrangeiro alistar-se como voluntário num movimento rebelde? Ou será apenas uma diferença de grau? Note-se que isto não é uma crítica - porque, grosso modo, também é essa a minha posição: o meu "gut feeling" é exactamente esse, de que um Estado ir mudar o regime de outro é "imperialismo", mas um simples individuo juntar-se a movimento revolucionário no estrangeiro é "solidariedade internacionalista"; mas confesso que sinto alguma dificuldade em racionalizar esta posição.
Uma possivel maneira de justificar essa aparente contradição seria argumentar que os indivíduos têm direitos que os Estados não têm (posição que, p.ex., um anarquista poderá defender sem dificuldade, mas que me parece mais complicada para, digamos, um comunista ortodoxo).
No entanto, ocorrem-me algumas razões para voluntários internacionalistas serem diferentes de exércitos estrangeiros:
a) Voluntários estrangeiros, mesmo quando organizados em unidades próprias (como as Brigadas Internacionais em Espanha) estão integrados na "cadeia de comando" dos revolucionários locais, pelo que continuam a ser estes a dirigir o processo; pelo contrário, exércitos estrangeiros estão sob a autoridades dos seus governos, dando a estes poder sob o desenrolar do processo
b) Uma brigada internacionalista normalmente é mais fraca militarmente (sobretudo em meios humanos) que a parte "nativa" das forças rebeldes (possivel excepção - a guerrilha que o Che tentou fazer na Bolívia); pelo contrário, numa intervenção estatal, o exército estrangeiros costuma ser a parte mais forte do conflito (as intervenções do Ruanda no Congo/Zaire, primeiro para colocar Kabila no poder e depois para o tentar derrubar, teriam todas as condições para ser excepções, não fosse o estado de degradação do Estado zairense/congolês). O resultado disso é que, no primeiro caso, a vitória dos rebeldes não colocará os voluntários internacionais como os novos governantes, enquanto no segundo o exército "invasor"/"libertador" (devido a ser a mais forte força militar) têm condições para decidir quem vai governar o país (é verdade que em Cuba o argentino Che chegou a governante, mas não pelo seu poderio militar, mas sim porque os líderes rebeldes locais engraçaram com ele).
c) aceitar as intervenções de estados estrangeiros abre caminho a aceitar uma ordem internacional imperialista, em que alguns estados (os com poder militar para derrubar governos alheios) acabam por ter de facto o poder de decidir que tipo de regime politico os outros países devem ter (ou seja, mesmo que em nome da democracia dentro de fronteiras, está-se na prática a instituir a oligarquia nas relações entre Estados); pelo contrário, as "brigadas voluntárias internacionais" não levam a nenhuma desigualdade entre países "fracos" e "poderosos", já que temos pessoas de qualquer país do mundo a se poderem juntar a um movimento revolucionário de qualquer outro país (podemos ter franceses a "intervirem" ao lado de bolivianos, mas também palestinianos a "intervirem" ao lado de alemães).
d) o pensamento de esquerda anda muito à volta do tema "o povo unido nunca mais será vencido" (ou, para quem preferir poesia oriental, "todos os reaccionários são tigres de papel; o povo é quem é verdadeiramente poderoso"): de que o poder das classes dominantes só se mantém porque o povo não se revolta, e que quando as massas ganharem "consciência" e "coragem" para se revoltarem, o domínio dos "poderosos" cairá como um castelo de cartas. Ora, o intervencionismo é frequentemente defendido com o argumento "sem a intervenção da comunidade internacional, aquele tirano vai continuar a massacrar o seu povo", mas aceitar tal argumento implicaria aceitar que as massas populares não têm capacidade para, sozinhas, destruir/neutralizar o aparelho repressivo do Estado. Pelo contrário, o papel de voluntários estrangeiros é mais fácil de compatibilizar com o modelo "quando o povo se revoltar, o poder cai" - os voluntários podem ser vistos, simplesmente, como elementos que vão ajudar a revolta a atingir a massa crítica acima da qual o povo perde o medo e sai à rua e a revolução triunfa
Todos estes argumentos (para ser contra as "invasões humanitárias" mas a favor das "brigadas internacionais") parecem-me fazer sentido, mas admito que talvez esteja a cair naquilo a que alguém chamou "a arte de procurar motivos racionais para aquilo em que se acredita instintivamente".
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]
Sunday, August 21, 2011
A esquerda, o anti-imperialismo e a "solidariedade internacionalista"
Publicada por Miguel Madeira em 03:01