Ainda a respeito da minha ideia de que o "liberalismo" norte-americano talvez possa ser considerado, apesar de tudo, como uma derivação do liberalismo "histórico", há um aspeto (à primeira vista secundário, ou até folclórico) que acho interessante analisar: o cinema norte-americano, frequentemente apresentado pelos conservadores como sendo um bastião "liberal".
E o que é de notar é que o cinema "liberal" até não é particularmente coletivista, ou é mesmo bastante individualista (num certo sentido de "individualismo") - há umas semanas, na revista do Expresso, numa critica a um filme, alguém até referia que o típico filme "liberal" girava à volta do conflito entre um individuo e uma instituição poderosa. E dá-me a ideia que os enredos típicos de filmes com mensagem "liberal" andavam num destes tipos:
- O jornalista que investiga algo que o Estado e/ou uma organização importante - uma grande empresa, p.ex. - não quer que se descubra, e que tem que enfrentar os obstáculos que os poderosos põem no seu caminho (o conspiracy thriller dos anos 70 é largamente uma derivação deste género de filmes)
- O advogado solitário a processar uma grande empresa, normalmente numa questão de negligência médica ou poluição
- Inocentes injustamente condenados, eventualmente envolvendo um advogado ou um jornalista desvendando uma conspiração da polícia para o condenar
- Alguém de uma minoria étnica ou com um comportamento sexual desviante é vítima de um crime (normalmente assassínio) numa pequena cidade, que é abafado pelas pessoas "respeitáveis"; depois chega um forasteiro à cidade (normalmente um conhecido da vítima, mas também pode ser um polícia transferido, ou coisa assim) e vai pouco a pouco desmontando a conspiração do silêncio
- Alguma coisa sobre o McCarthismo, envolvendo alguém acusado injustamente de ser comunista (comunistas a sério não costumam aparecer nesses filmes)
- Qualquer coisa envolvendo alguém ser perseguido ou marginalizado por pertencer a uma minoria étnica ou ter um comportamento sexual desviante (sim, o tipo de filmes que refiro dois pontos atrás está contido neste ponto, mas achei que merecia uma menção especial)
- Maus tratos na prisão (independentemente do protagonista ser culpado ou inocente)
- Qualquer coisa contra a pena de morte, de preferência envolvendo inocentes condenados
- Alguém que vai para um cargo, cheio de vontade de fazer reformas, mas que é bloqueado pela "máquina" e pressionado a manter tudo como estava (há dois filmes com o Robert Redford que seguem mais ou menos este esquema - O Candidato e As Grades do Inferno)
- Qualquer coisa anti-guerra ou anti-exército, eventualmente com um soldado em choque com a instituição militar
[Estes temas, claro, podem ser combinados uns com os outros - e alguns deles já são eles próprios combinações]
Ou seja, de uma maneira geral, em múltiplas variantes o tema é um individuo em choque com a sociedade/com o sistema/com o Estado, até diria que com um toque rosseauniano (o individuo é bom, as instituições e/ou as convenções sociais são más) - por norma neste género de filmes não há grande lugar para movimentações de massas (como seria de esperar em trabalhos que fossem inspirados pelo socialismo europeu).
Filmes envolvendo greves, sindicatos e afins, (como Norma Rae ou O Sal da Terra) costumam ser realizados por autores muito mais à esquerda que o "liberalismo" usual, como o ex-comunista Martin Ritt (que também realizou um dos poucos filmes sobre o McCarthismo em que os perseguidos são mesmo militantes do PC); ou então veja-se filmes como As Vinhas da Ira ou A Estrada do Tabaco, adaptações ao cinema do que mais parecido houve nos EUA com literatura neo-realista, feitas, não por um "liberal", mas pelo conservador John Ford (que - apesar de Democrata - era fundamentalmente um conservador social, cujos filmes normalmente enalteciam a pequena localidade, a família, a religião, o regimento da cavalaria, etc.) - já agora, John Steinbeck, o autor do livro As Vinhas da Ira, nos últimos anos da sua vida passou para a direita, sendo um defensor entusiástico da guerra do Vietname (isto pode ser simplesmente a clássica passagem para a direita com a idade, mas também poderá ser visto como o símbolo da diferença entre duas tradições distintas - uma coisa era a Velha Esquerda ligada às lutas laborais, e outra a Nova Esquerda anti-guerra: enquanto a primeira seria uma corrente claramente distinta do "liberalismo", a segunda seria sobretudo uma ala radical do "liberalismo").
Agora, também é verdade que os filmes conservadores também recorrem muitas vezes ao tema de um individuo em choque com o sistema - os filmes do tipo polícia durão que não cumpre as regras (estilo Dirty Harry) também seguem esse esquema, p.ex. (e até poderiam ser juntados aos filmes do tipo "jornalista/advogado a investigar conspiração poderosa" numa categoria geral "herói solitário que defende o bem comum enfrentado as instituições"), mas apesar de tudo aí o "sistema" tende a ser apresentado sobretudo como atrapalhando o herói (enquanto nos filmes "liberais" o "sistema" é mesmo o mau da fita).
Uma coisa que talvez tenham notado é que neste post usei muitas vezes tempos verbais no passado - a razão é porque acho que tudo isto que falo aplicava-se mais aos filmes feitos nos anos 50,60, 70 ou até 80 do que nos dias de hoje: por um lado, acho que nessa altura a diferença entre os "liberais" e a "esquerda" era muito mais clara que hoje em dia (havia uma diferença clara ente pessoas próximas - e que sempre tinha estado próximas - do Partido Democrata, e pessoas que vinham do PC ou dos anarco-sindicalistas IWW); e, por outro lado, felizmente, no mundo moderno se calhar já não se justifica fazer filmes à volta de alguns dos temas que identifiquei acima.
Já agora, há tempos (já este post estava em desenvolvimento) li um post (Joy and Bad Laws) do "libertarian" (isto, liberal de direita) John Stossel que me fez lembrar exatamente o que estava a pensar escrever:
Writer/director David O. Russell, like many in Hollywood, has made movies critical of capitalism and businesspeople, so I'm glad he saw a spark in Joy Mangano, the driven businesswoman.Mas talvez eu esteja a overthinking, e estes supostos padrões que julgo que estou a identificar sejam simplesmente o resultado de que é mais fácil fazer um filme (atrativo para as pessoas normais) com os tais temas "individualistas" (que são mais fáceis de relacionar com a vida do dia a dia) que referi do que sobre movimentos de massas (que facilmente degeneram em coisas hiper-politizadas que quase ninguém quer ver).
Hollywood may not understand economics or government regulation, but there are things Hollywood often gets right. Hollywood celebrates heroic individuals who fight injustice and corrupt establishments. Hollywood also has a healthy suspicion of the power of covert government activities.
Sure, the Mission Impossible crew and plenty of other Hollywood heroes are secret agents—and Hollywood consults with real cops, secret agents and military advisers to capture details more accurately. That helps the government shape messages to its liking. But plenty of Hollywood government agents end up being villains anyway.
Uma nota final - em tempos li qualquer coisa no sentido de que hoje em dia era difícil (nos EUA) fazer políticas "progressistas", porque a cultura tinha evoluindo no sentido de um ceticismo face ao governo; uma coisa que me ocorre é se décadas de filmes de realizadores e atores "liberais" falando de conspirações da CIA ou do Pentágono, policias a incriminarem inocentes, diretores de prisões prepotentes e mayores locais tirânicos ou corruptos (frequentemente pagos por empresas poderosas) não terão contribuído mais para esse alegado ceticismo face ao governo do que os papers dos economistas "libertarians" e conservadores sobre as ineficiências da intervenção estatal.
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