N' A Destreza das Dúvidas, José Carlos Alexandre escreve sobre as chamadas "políticas da identidade"; alguns comentários meus (pegando nos que fiz no post e desenvolvendo nalguns pontos):
“No ocidente,durante quase todo o século XX, os partidos situaram-se num espectro daesquerda à direita – comunistas, socialistas, social-democratas,democratas-cristão, liberais, conservadores. O desejado grau de intervenção do Estado e o empenho na igualdade ou na liberdade individual serviam para situar os partidos (e as pessoas) mais à esquerda ou mais à direita.”
O próprio facto de os conservadores estarem à direita dos liberais [e mesmo os democratas-cristãos por vezes são considerados como estando à direita dos liberais – no PE o grupo Liberal e o grupo do PPE foram trocando de lugares ao longo dos anos], apesar dos primeiros serem mais estatistas e (sobretudo) menos individualistas de que os segundos parece demonstrar que não era o “desejado grau de intervenção do Estado e o empenho na igualdade ou na liberdade individual” que distinguia a direita da esquerda, mas sim outra coisa qualquer (se quisermos um critério em que consigamos pôr anarquistas, comunistas e socialistas de um lado e democratas-cristãos, conservadores e fascistas do outro, com liberais no meio, para mim o mais certeiro será mesmo “a culpa é da sociedade” versus “a vida - pelo menos nesta existência terrena - é dura”; Rousseau contra Hobbes; já essa tal conversa de “igualdade versus liberdade” , e sobretudo a parte da “liberdade” não faz grande sentido porque só é válida no sub-intervalo que vai de comunistas a liberais, mas não nem à esquerda desse intervalo – os anarquistas são mais libertários que os comunistas – nem à direita – democratas-cristãos, conservadores e fascistas são menos libertários que os liberais).
Poderá se dizer que a conversa da igualdade versus liberdade é uma "simplificação", mas a mim parece-me uma "simplificação" que complica mais do que simplifica: numa cultura anglo-saxónica, talvez passe como simplificação (e dá-me a ideia que há realmente uma fração desproporcionada de pessoas com uma formação anglo-saxónica entre quem vem com essa ideia), mas numa cultura latina só gera uma enorme confusão, porque na tradição política dos países latinos (e/ou de dominação cultural francesa) a palavra "direita" evoca sobretudo Salazar, Franco (e o "campo nacional" da Guerra de Espanha), os "absolutistas" do século XIX, a Action Française, o catolicismo ultramontano, os fascismos e autoritarismos do período entre guerras, as juntas militares da América Latina do tempo da Guerra Fria, a defesa da "Argélia Francesa" ou do "Portugal do Minho a Timor", etc. ou na melhor das hipóteses alguns políticos democráticos que apresentavam como principal cartão de visita serem "líderes fortes acima de partidos e ideologias" e que eram frequentemente acusados pela oposição de serem "autoritários" (como De Gaulle ou mesmo o nosso Cavaco Silva). Basicamente, se formos pegar na tipologia que divide a direita entre "legitimista" (tradicionalista, monárquica, católica...), "bonapartista" (populista, culto do líder carismático...) e "orleanista" (liberal), eu diria que as tradições dominantes no mundo latino são (ou pelo menos eram até há muito pouco tempo) a "legitimista" e a "bonapartista", enquanto a "orleanista" era secundária; logo, uma definição de "direita" que usa como referência a menos relevante das direitas (a liberal) acaba por gerar é confusão (definir direita de uma certa maneira e depois dizer que quase todas as direitas que existiram são exceções é tudo menos simplificar).
“A credibilidade do socialismo marxista caiu nas ruas da amargura quando deixou de ser possívelignorar ou disfarçar o que se passava em regimes grotescos como a UniãoSoviética. Há muito que a própria social-democracia começou a ser questionada. (…)A esquerda começou então a voltar-se para as reivindicações identitárias.”
Se alguma coisa, acho que foi ao contrário – quanto questões como os direitos das mulheres, dos jovens ou das minorias étnicas ou sexuais começaram a entrar na moda foi naquele período que vai basicamente do assassinato de Kennedy à queda de Saígão (e que é muitas vezes chamado de “anos 60”, embora seja mais 63-75) , um período em que o “estado social” parecia estar de pedra e cal e mesmo o comunismo soviético, apesar de Praga, estava a ganhar terreno pelo mundo inteiro, com os “dominós” a caírem sucessivamente, e mesmo os esquerdistas dissidentes andavam embeiçados por Cuba, China ou Vietname em vez de rejeitarem mesmo o “socialismo realmente existente”; suspeito que até foi a força (e não a crise) do estado social nessa altura que levou a esquerda mais radical a se virar para as “políticas identitárias”/”causas fraturantes”: como a classe operária* estava aparentemente contente, e de qualquer maneira até De Gaulle e Nixon eram uma espécie de “social-democratas”, tiveram que ir à procura de outros nichos de mercado.
“A identidade é um conceito moderno.”
As dúvidas sobre a identidade serão um conceito moderno; mas “identidade” no sentido de pertença a grupos específicos (que é o sentido usado em “políticas de identidade”) até me parece do mais pré-moderno que há, em que as pessoas viam-se largamente em função de coisas como a aldeia, a família alargada, o clã, a tribo, a profissão, etc; em larga medida, as revoluções industrial e francesa o que fizeram foi quebrar essas micro-comunidades para deixar só o individuo (ou quando muito a família nuclear) e a humanidade (ou quando muito o Estado-Nação).
“Martin Luther King lutava por uma sociedade que tratasse os negros exactamente da mesma forma que tratava os brancos, em que a cor da pele não contasse. Não foi essa a corrente que prevaleceu.”
Não sei se nessa suposta diferença entre correntes não haverá uma certa confusão entre juízos de valor e juízos de facto. Basicamente, há quatro opiniões possíveis sobre esses assuntos relacionados com discriminação de grupos:
a) As pessoas X [mulheres, negros, LGBT, neurodiversos, etc] não são tratadas como as outras e deviam ser
b) As pessoas X não são tratadas como as outras nem devem ser
c) As pessoas X são tratadas como as outras e devem ser
d) As pessoas X são tratadas como as outras e não deviam ser
(a + b) e (c + d) concordam nos juízos de facto e (a + c) e (b + d) concordam nos juízos de valor.
Um problema aqui é que os “c” tendem a achar que os “a” são “d” disfarçados (“Só eles é que ligam alguma coisa a raças; dizem que são anti-racistas mas eles é que estão a querer dividir as pessoas em raças”) e os “a” acharão que os “c” são “b” disfarçados (“Vêm com essa conversa que são colorblind para terem uma desculpa para fingir que não vêm o racismo que domina a nossa sociedade”). Ora, muita dessa conversa de que o MLK queria uma coisa e os atuais anti-racistas, feministas, etc. querem outra não será uma ilusão? Isto é, se forem todos “a” mas um observador externo achar que havia muito racismo há umas décadas mas não tanto hoje em dia (ou seja, esse observador se se considerar “a” em respeito a 1965 mas “c” no mundo atual), ele achará que os anti-racistas de 1965 eram “a” e os atuais são “d”, vendo uma diferença ideológica onde ela não existe realmente.
E parece-me que grande parte dos movimentos anti-racistas, feministas, atuais, mesmo os mais radicais, não apresentam as diferenças entre raças, sexos, etc. como algo normativamente desejável (veja-se a popularidade recente nesses meios da expressão “pessoas racializadas”, que me parece ter implícito reforçar a ideia que a raça é algo que é imposto pela sociedade e não algo de natural), mas sim como algo que existe, e que para ser combatido implica mobilizar o lado oprimido contra o opressor (tal e qual como no marxismo tradicional se defende a “consciência de classe”, apela-se à mobilização dos trabalhadores e se criam organizações com “Operário/Proletário/dos Trabalhadores” no nome, não porque se queira perpetuar a divisão da sociedade em classes, mas como um meio para acabar com ela*).
“a esquerda deixou de pensar em políticas sociais ambiciosas que pudessem ajudar os pobres, pobres que incluem milhões de “homens brancos”, a antiga “classe trabalhadora”, gente considerada agora “deplorável” e que, muitas vezes em desespero, vota em Trump e quejandos. O Affordable Care Act de Obama – susceptível de muitas críticas, é certo - foi uma excepção neste cenário.”
E (ficando nos EUA) o Medicare 4 All, o aumento do salário mínimo, a universidade gratuita, as propostas de co-gestão e de reforço dos sindicatos, a job gurantee, etc, etc, etc, mesmo o Green New Deal, pelo que tenho lido, é mais um programa de “subornos” destinado a obter clientela eleitoral para as políticas ambientais do que um programa ambiental em sentido estrito. Indo para a Europa, quais são as principais bandeiras da esquerda? A principal é o “combate à austeridade”, e outra quem tem vindo a ganhar tração é o Rendimento Básico Incondicional.
Eu até diria que hoje em dia a esquerda internacional quase que só fala de duas coisas: economia e ambiente (nem que seja porque nas chamadas “políticas da identidade” se calhar já foi atingido quase tudo o que era para se atingir); já a direita é que vive obcecada pelas guerras culturais; eu vejo isso na internet – os sites de esquerda que eu costumo ler falam principalmente de economia ou da luta de classes tradicional; os de direita vivem quase completamente obcecados por assuntos como “revista académica feminista publicou artigo sobre a masculinidade dos icebergs”, casas de banho, “boas festas” vs. “feliz natal”, “ideologia do género”, etc. (claro que isso racionalmente faz sentido: o programa económico da esquerda é popular, o cultural nem tanto – logo é natural que a esquerda tenda a enfatizar a economia e a direita a cultura).
Mas admito que pode haver aqui um problema cronológico – talvez o Fukuyama tenha escrito o seu livro largamente antes da projeção atual de Bernie Sanders, Corbyin, Elizabeth Warren, Alejandra Ocasio-Cortez, e já agora da “geringonça” em Portugal (e, mesmo que na prática tenha sido só por 9 meses, da vitória do Syriza na Grécia), que, cada qual à sua maneira, representaram um regresso de uma esquerda socialista ou quase na economia e não apenas progressista nos costumes (mas de qualquer maneira dá-me a ideia que desde a crise de 2008 que houve um regresso à infra-estrutura na esquerda, ou até antes disso)
E também pode ser idiossincrasia da minha parte - como as minhas leituras de esquerda na internet são largamente uma combinação de economistas de centro-esquerda (Krugman, Chris Dillow, Noah Smith, Simon Wren-Lewis, etc.) e de organizações ou sites de extrema-esquerda (International Viewpoint / IV Internacional, Libcom, Corrente Comunista Internacional, etc.) que (por mais importância que dêem às "causas fraturantes") acham que em última instância será sempre a luta do proletariado que vai derrubar o capitalismo, é natural que tanto uns como os outros (ainda que por razões completamente diferentes) falem bastante de economia e/ou de luta de classes. Se eu costumasse ler regularmente o Everyday Feminism ou o Bully Bloggers se calhar poderia ter uma opinião diferente (nota - de qualquer maneira, dando uma volta pelo Everyday Feminism, encontro logo um artigo dizendo "Because race shouldn’t matter, but it does matter", que era exatamente o que disse ali atrás sobre o que me parece ser a posição dominante nos meios anti-racistas, feministas, etc. mais radicais).
[Um aparte acerca dos “deploráveis” – achar que não se deve considerar machistas, racistas e homofóbicos como “deploráveis” porque alguns podem pertencer à classe trabalhadora parece-me não fazer grande sentido; por essa ordem de ideias não se podia qualificar negativamente nada, porque corríamos sempre o risco de apanhar alguém da classe trabalhadora nessa qualificação negativa; p.ex., aposto que na Europa os pais que mandam mutilar genitalmente as filhas também pertencem largamente à classe trabalhadora]
* Um dia alguém há de me explicar porque é que o “obreirismo” da esquerda tradicional também não conta como “política de identidade”
Friday, August 02, 2019
Re: Identidade: uma palavra incontornável e perigosa
Publicada por Miguel Madeira em 09:47
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