Dois posts no Blasfémias a respeito de um artigo recém-publicado defendendo (?) a legitimidade do "aborto pós-parto":
Paradoxos morais, de Carlos Loureiro:
se se permite (ou se se considera moralmente aceitável) o aborto de fetos humanos, não só por razões médicas mas também por razões relacionadas com os interesses dos progenitores (ou, pelo menos, da mãe), não há razões para não aceitar a morte provocada de recém-nascidos pelas mesmas razões, já que nem uns nem outros têm ainda consciência da sua própria existência e, portanto, não têm expectativas que mereçam ser (moralmente) protegidasO infantícidio como corolário do aborto, por José Manuel Fernandes:
O temos que os autores abordam radica num dilema para o qual não existe resposta científica, pelo menos não existe resposta científica à medida da liberalização: onde começa a vida humana. Alberto Giubilini e Francesca Minerva defendem que a vida humana só começa quando o ser vivo tem consciência, o que os faz levar a linha que separa a vida da não-vida até depois do nascimento. Como se escreve no Público, “se o feto e um recém-nascido não têm o mesmo estatuto moral das pessoas”, se “é moralmente irrelevante o facto de feto e recém-nascido serem pessoas em potência” então matar um bebé, acto que designamos por infanticídio, não será mais do que um “aborto pós-nascimento”.Para começar, eu dei uma olhada no artigo, e não me parece que os autores estejam a dizer exactamente o que JMF diz - penso que o que eles dizem não é que o feto e o recém-nascido não têm consciência, mas sim que não têm projectos (logo a sua morte não é condenável, já que não os impede de realizar esses projectos). Mas vou concentrar-me nos posts de Carlos Loureiro (que usa a expressão "consciência de si") e de JMF (que fala só em "consciência"): como é que eles podem dizer que um recém-nascido tem (ou não) "consciência" ou "consciência de si"? Quem é que sabe o que está na cabeça de um recém-nascido (as minhas memória só vão até ao 1 ano e meio; duvido que as de JMF, CL ou dos autores do artigo vão mais longe)? Alías, parece-me impossível provar que um recém-nascido não têm consciência (ou alguém não se lembra, e então nada se pode concluir, ou lembra-se, e então quer dizer que tinha consciência na altura).
Além de que, se pensarmos bem, o que significam exactamente expressões como "consciência", "consciência de si", "pensamento racional", etc (isto interessa não só para a questão do aborto, mas também para o do estatuto dos animais não-humanos)? O que é que quer dizer "ter consciência"? E qual é a diferença entre "consciência" e "senciência"? Afinal, se um ser sente dor ou prazer, isso não implicará que ele "sabe" que está a sentir dor ou prazer? Podemos considerar o Pantufa como "consciente" (se eu agora fosse embora do quarto para a sala, em poucos minutos ele iria também para a sala, o que quer dizer que ele "sabe" onde eu estou, o que poderá ser considerado sinal de "consciência")? Ou ser "consciente" implicará não apenas aperceber-se da realidade, mas também ser capaz de reflectir sobre ela? Mas o que significa exactamente "reflectir"? Ser capaz de representações mentais internas? Mas há grandes razões para supor que os mamíferos sonham (pelo menos, electroencefalograma de cães a dormir mostram ondas cerebrais similares ao dos humanos quando sonham), pelo que podemos considerar que são capazes das tais "representações mentais internas".
E "consciência de sí"? Saber que se existe? Mas há alguma razão para assumir que um recém-nascido não sabe que existe? Até é possível que a única coisa que ele sabe que existe é ele próprio. Pondo de outra maneira - porque razão um recém-nascido não deveria saber que existe? O seu cérebro já está formado; já tem capacidades sensoriais; já tem todas as ferramentas necessárias para saber que existe; o que falta é interacção com outros seres humanos, mas não vejo grande razão porque tenhamos que interagir com outras pessoas para sabermos que existimos (como digo, se há alguém que não precisamos dos outros para saber que existe, somos nós próprios). Num dos comentários a um dos posts no Blasfémias, alguém escrevia que a "consciência de si" só aparecia na puberdade, o que me parece um completo disparate (as crianças respondem à pergunta "o que queres ser quando for grande", o que quer dizer que elas sabem que existem).
Da mesma forma, o que significa ser capaz de "pensamento racional"? O que distingue realmente o "pensamento racional" do "pensamento não-racional"? Para falar a verdade, por vezes muitas definições de "consciência", "consciência de si", "pensamento racional", etc. parecem, bem esmiuçadas, querer dizer apenas "sabe falar ou pelo menos perceber a linguagem" (o que permite o salto de apenas imaginar cenas dentro da nossa cabeça para passar a ter monólogos interiores, o que se calhar é o que muito gente chama "consciência" ou "pensamento") - o que avançaria o aparecimento da "consciência" ainda mais uns meses para frente do nascimento.
Ou então podemos deixar essa conversa de "consciência de sí", "pensamento racional" e considerar que o que interessa para distinguir uma pessoa de uma massa de carne é passar a ter actividade mental e senciênca (ser capaz de sentir coisas), o que acontece algures entre a 12 e as 20 semanas de gestação, creio eu.
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