N'O Insurgente, Rui Albuquerque apresenta uma espécie de dicionário expondo a forma como várias correntes políticas vêem cada conceito. Em "Estado", RA considera que este é visto pelos anarquistas de esquerda como:
o estado é um instrumento de opressão, que é necessário extinguir pela violência. A propriedade privada é a origem de todas as desigualdades humanas e é para a preservar que o estado existe. Logo, o caminho da extinção do estado é o da abolição da propriedade privadaParece-me que aqui o RA mistura um pouco a visão anarquista (social) do Estado com a marxista - tudo o que vem a seguir de "violência." é a visão marxista do Estado, não a anarquista. A esse respeito, recomendo a RA a leitura de "Resposta de um anarquista aos últimos moicanos do marxismo e do leninismo, assim como aos inúmeros pintainhos da democracia", de Júlio Carrapato. As primeiras páginas do livro são exactamente a desmontar a tese marxista (que RA atribui aqui ao anarquismo) de que o principal é a distribuição da propriedade, contra-argumentado Carrapato que a questão fundamental é a da autoridade, nomeadamente citando Daherendorf (que argumentava que a propriedade implica autoridade, mas que há outras autoridades além das derivadas da propriedade) e também referindo que as listas de "mais ricos do mundo" estão cheios de reis, rainhas, xeques, sultões, etc (o que demonstraria que muitas vezes é a partir do controlo do Estado que se geram os privilégios económicos, em vez de - como sustentam os marxistas - serem os privilegiados a criar o Estado para defender uma riqueza previamente existente). Aliás, toda a critica anarquista ao socialismo de Estado marxista gira à volta da ideia de que não adianta suprimir a propriedade privada se se mantiver a distinção entre dirigentes e dirigidos, o que penso demonstrar que os anarquistas de esquerda não acham que "propriedade privada é a origem de todas as desigualdades humanas".
Há mais uns detalhes, mas admito que não são muito relevantes - nem todos os anarquistas de esquerda advogam o derrube do Estado "pela violência": provavelmente o anarquismo até será a área política onde há mais defensores do pacifismo radical, recusando todas as formas de violência (e, nesse caso, pretendendo derrubar o poder do Estado pelo método da desobediência civil não violenta: as pessoas simplesmente recusarem-se a obedecer às ordem do Estado, e este cair por si ao se tornar incapaz de governar); também nem toda a esquerda anarquista é contra a propriedade privada - algumas facções defendem uma sociedade de pequenos proprietários em que cada um seja uma espécie de micro-empresário (mas, como escrevi atrás, esta parte já são detalhes - de facto o anarquista de esquerda típico é provavelmente contra a propriedade privada e está disposto a usar a violência contra o Estado e o Capital).
Diga-se que a sua defnição da visão anarco-capitalista do Estado também me parece muito discutível (ou ainda pior):
Para os anarquistas de direita, o estado existe? Não, não existe. Ele é apenas um sonho mau saído de cabeças minarquistas, que, quando acordarmos, não existirá mais. Entretanto, se recairmos no pesadelo, bastará fechar os olhos com força e invocar o princípio da não agressão para que tudo se componha.Não sei o Carlos Novais, o Rui Botelho Rodrigues ou o Pedro Bandeira se identificarão com esta descrição de como supostamente eles verão o Estado (embora o CN nos comentários até pareça ter simpatizado com essa descrição de definição do estado).
Já agora, até face à sua definição da visão conservadora do Estado eu tenho reservas. Porquê? Porque, pelo menos segundo o Robert Nisbet a essência do conservadorismo é a defesa dos agrupamentos sociais intermédios (família, comunidade local, etc.) contra os excessos tanto do "estatismo" como do "individualismo" (pelo menos o seu livro sobre o conservadorismo anda todo à volta disso); ora, como na sua descrição da visão conservadora do Estado, RA consegue só usar as palavras "Estado" e "indivíduos" e em momento algum "corpos intermédios", "poderes intermédios", "famílias", "grupos sociais", "estamentos", "comunidades" ou algo com um significado parecido, não me parece que pelo menos a sua forma de descrever a visão conservadora do Estado seja a forma que um conservador tradicional usaria (mas admito que seja apenas uma diferença semântica e que, usando palavras diferentes, o conteúdo talvez seja o mesmo).
Ainda sobre este assunto, em tempo o American Conservative tinha um interessante artigo de Daniel McCarthy explicando a forma como as várias correntes políticas viam a relação entre o Estado e a Sociedade; o artigo (penso que de Fevereiro de 2010) já não está disponível, mas pelo que me lembro a ideia era a seguinte:
Em primeiro lugar, haveria uma discórdia entre os que acham que a sociedade a) é dominada por uma luta entre "privilegiados" e "explorados" ; b) é um lugar fundamentalmente pacifico, com alguns conflitos ocasionais; ou c) é um lugar de luta potencial de todos contra todos.
Dentro do primeiro grupo, haverá um subdivisão entre os que acham que o Estado é sempre o instrumento dos privilegiados (devendo por isso ser abolido) e os que acham que o Estado tanto pode ser o instrumento dos privilegiados como dos explorados (devendo os representantes dos explorados twntar conquistar o poder político); a primeira posição corresponderá ao anarquismo tradicional, a segundo à esquerda moderada e ao "liberalismo" americano (eu dã-me a ideia que haveria um terceiro sub-grupo, correspondente ao marxismo, mas já não me lembro como McCarthy o definia).
O segundo grupo corresponderá ao liberalismo clássico, considerando que o Estado não é necessário para muita coisa - na maior parte dos assuntos a cooperação voluntária funciona.
Dentro do terceiro grupo, haverá 3 sub-grupos: os que defendem que é necessário um Estado todo-poderoso para manter a ordem social (os fascistas); os que defendem um Estado autoritário, em que as decisão do governante não são para ser discutidas ou postas em causa, mas em que os grupos sociais (províncias, municípios, associações profissionais, universidades, etc.) têm autonomia para gerir os seus assuntos internos (o tradicionalismo europeu, sendo apresentado o exemplo de Charles Maurras); e os defensores de um Estado constitucional liberal em que o conflitos entre os vários indivíduos e grupos seja contido/regulado através do equilíbrio dos poderes e do pluralismo político (a versão liberal do conservadorismo, de que Nisbet é apresentado como exemplo) - ao que me lembro, uma das conclusões de McCarthy era de que os liberais tradicionais e os conservadores-liberais, apesar de terem uma visão diferente do funcionamento da sociedade, acabam por defender modelos políticos parecidos.
1 comment:
"algumas facções defendem uma sociedade de pequenos proprietários em que cada um seja uma espécie de micro-empresário". Isto por si já é impossível, visto que nem todas as pessoas têm a capacidade de gerir bens de produção, e além disso, este arranjo impossibilitaria vendas de propriedade. Se eu quiser vender a minha propriedade, será que posso? Mas assim, ao longo do tempo, uns iriam ficar com mais propriedade e outros até sem propriedade de produção (bens de produção). Seria proibido vender a propriedade? Mas isso não é iniciação de violência?..
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