Wednesday, May 04, 2016

A direita portuguesa é peculiar?

No Observador, o Luís Aguiar-Conraria interroga-se sobre "[onde] está a direita liberal em Portugal?".

Mas haverá algo de excecional em Portugal a esse respeito? Afinal, se formos ver a maior parte dos países europeus, pelo menos a nível de representação política, quem domina na direita não são os liberais - em quase todos esses países as maiores forças de direita são, ou os conservadores, ou os democratas-cristão (que tanto uns como os outros têm muito das suas raízes na reação clerical-aristocrática contra o liberalismo oitocentista - e ao principio a "democracia-cristã" tinha pouco a ver com "democracia") , ou a extrema-direita, não os liberais, que frequentemente são representados por partidos relativamente pequenos; claro que se pode argumentar que os Liberais-com-L-grande podem ter pouco influência mas os políticos nominalmente conservadores por vezes defendem posições liberais-com-l-pequeno: veja-se o apoio da Merkel ao acolhimento dos refugiados ou a legalização do casamento homossexual no Reino Unido de David Cameron; mas mesmo essas posições foram largamente contra importantes setores e/ou contra a posição habitual dos respetivos partidos.

Da mesma forma, também nos EUA, há tempos o Paul Krugman escrevia um artigo um pouco parecido com o do LA-C, notando "[[t]here ought in principle, you might think, be people who are pro-gay-marriage and civil rights in general, but opposed to government retirement and health care programs — that is, libertarians — but there are actually very few" (o artigo talvez tenha sido é prematuro no parágrafo seguinte, quando refere a "corresponding empty box on the other side, which is maybe even emptier; (...) I remember the good old days when rampaging union workers — who presumably supported pro-labor policies, unemployment benefits, and Medicare — liked to beat up dirty hippies. But it’s hard to find anyone like that in today’s political scene", já que ontem à noite talvez o Partido Republicano tenha consumado uma viragem nesse sentido).

E, já agora, noto que os partidos da direita parlamentar portuguesa são ambos afiliados ao Partido Popular Europeu (originalmente democrata-cristão, em transição para uma organização genericamente de centro-direita), não a nenhuma das organizações internacionais supostamente liberais, logo não se pode exigir que sejam coerentes a defender uma ideologia que eles não reivindicam como a sua (tanto o PSD como o CDS dizem que lá há espaço para liberais, mas não dizem que são liberais).

Claro que uma coisa são os partidos políticos, outra são os intelectuais - efetivamente nos últimos anos tem surgido um movimento (nomeadamente on-line) de pensadores e autores liberais, e alguns deles por vezes defendem posições que talvez não sejam as mais puristas nalgumas questões (mas não sei se a polémica da escolas será o melhor exemplo; de qualquer forma, admito que um radical de esquerda - como eu - não seja a pessoa mais adequada para definir quem é e quem não é verdadeiramente "liberal"). Suponho que o que se passará também seja que se calhar pessoas que no Reino Unido ou nos EUA se considerariam "conservatives" em Portugal se consideram "liberais", já que em Portugal "conservador" (que muitas vezes é usado pejorativamente) ou "tradicionalista" está mais associado ao miguelismo ou ao salazarismo do que ao conservadorismo de tipo anglo-saxónico.

O LA-C escreve que "que a nossa Direita [é] peculiar e que, na verdade, mais do que reduzir o peso do Estado, o que pretend[e] [é] mesmo substituí-lo pela Igreja"; isso faz lembrar um pouco o que o Krugman dizia de que "conservatism is instead about preserving traditional forms of authority: employers over workers, patriarchs over families". Mas, vendo bem, não há nenhuma peculiaridade nisso, nem nenhum segredo oculto que "a direita" ou os "conservadores" estejam a esconder - os textos teóricos do conservadorismo (tanto do continental como do anglo-saxónico) e da democracia-cristã repetem constantemente o tema da defesa do "corpos intermédios" (família, comunidade local, igreja, profissão, etc.) contra simultaneamente o estatismo e o individualismo, e a ideia que o estatismo e o individualismo se reforçam um ao outro, já que ambos enfraquecem os tais corpos intermédios (e que a defesa dos direitos individuais seria a desculpa favorita do Estado centralizado para invadir a autonomia dos pequenos grupos). O livro que Robert Nisbet escreveu com a intenção de apresentar a ideologia conservadora (Conservatism: Dream and Reality, publicado em português como O Conservadorismo) praticamente quase só fala disso do principio ao fim. Ou seja, a posição de reduzir o tamanho do Estado para assim fortalecer a Igreja não é nenhum segredo oculto nem nenhuma exceção portuguesa - é algo que está escarrapachado nos textos dos autores conservadores, por todo o mundo ocidental (ok, eles referem os corpos intermédios em geral, não apenas a Igreja em particular, mas esta costuma vir incluída).

1 comment:

João Vasco said...

Miguel,

É verdade que a direita portuguesa não é assim tão excepcional em relação ao que se passa no resto do mundo, mas o texto continua a parecer-me muito certeiro.

Certeiro porque mostra a contradição entre uma linha de pensamento que se auto-intitula liberal, e a realidade prática.
Vejamos o caso português. Tanto o "Blasfémias" como o "Insurgente" partem de uma espécie de "mitologia liberal" expressa no próprio nome, e muito escreveram sobre a sua identidade enquanto blogues liberais. O "Insusrgente", logo desde o início me pareceu enormemente conservador, e nunca tive grande paciência para acompanhar. O "Blasfémias" ainda tinha uns pozinhos de liberalismo enquanto os autores que escreviam com mais frequência eram o João Miranda, o CAA, o Gabriel Silva, embora mesmo nessa altura já arranjassem as desculpas mais manhosas para defender posições anti-liberais (lembro-me do João Miranda estar contra a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo alegando que o casamento não devia ser da competência do estado - a tal ideia das instituições intermédias, mas que surgia muito convenientemente a propósito da manutenção da discriminação quanto à orientação sexual, e ainda de alegar que não existia discriminação nenhuma visto que formalmente tanto um homossexual como um heterossexual não podiam casar com alguém do mesmo sexo, um argumento "«"liberal"»" que poderia ser usado para defender a proibição do casamento entre diferentes etnias). No entanto, com o passar do tempo, os autores mais frequentes do "Blasfémias" tornaram-se a Helena Matos e o Vítor Cunha. Estes autores nem sequer tentam arranjar desculpas manhosas para defender ideias conservadoras: não há uma ideia anti-liberal que não adorem e defendam com unhas e dentes.

Ou seja, quando escreves "Claro que uma coisa são os partidos políticos, outra são os intelectuais" estás a apontar a contradição central da direita. As ideias liberais têm um apelo maior que as ideias conservadoras sobre a maioria dos intelectuais, e portanto é essa a face que a direita gosta de apresentar em vários contextos, e é essa a faceta que muitos intelectuais de direita têm orgulho em apresentar. Mas depois a realidade do seu eleitorado, das suas "bases", da sua "história" é diferente, e numa primeira fase eles tentam conciliar essas diferenças com as tais desculpas manhosas, e numa fase mais avançada já nem querem saber. Do ponto de vista intelectual todo o quadro Liberalismo X Distribuição é conceptualmente aceitável, e o espaço direita-liberal tem um apelo intelectual sobre bastantes indivíduos, mas na prática o convívio e a luta política fazem com que muitas ideias se vão agregando ao longo de uma diagonal "esquerda-direita" nesse espaço, e a direita é conservadora.
Então cria-se uma espécie de hipocrisia, uma discrepância entre princípios e valores proclamados e opiniões sobre casos concretos, que o Luís Aguiar Conraria denuncia de forma certeira. Sim, ele falou sobre Portugal (talvez porque conheça melhor a nossa realidade) e este fenómeno é mais geral, mas não é menos real.