Finalmente, outra questão que também surgiu na conversa e acaba por estar ligada ao tema central (da ligação entre "socialismo" - seja lá o que essa palavra quer dizer - e liberdades civis) - fará sentido pôr o regime nacional-socialista alemão no mesmo plano que os outros regimes e movimentos, argumentado-se que a direção estatal da economia (ainda que sem formalmente nacionalizar as empresas privadas) tornava a propriedade apenas uma ilusão?
Para começar, convém notar que a política económica da Alemanha nazi não era muito coerente, nem ao longo dos anos, nem de sector para sector [pdf] - o que aliás até faz sentido se nos lembrarmos que era um movimento em primeiro lugar anti-materialista (e que por isso considerava que o capitalismo e o marxismo eram duas faces da mesma moeda, ambos motivados mais pela busca do conforto material do que por coisas como a coragem, a honra ou o heroísmo), logo é natural que ache o modelo económico uma questão menor (alguns artigos sobre o sistema económico da Alemanha nazi - ."Soviet and Nazi Economic Planning in the 1930s"[pdf], de Peter Temin, enfatizado o controle estatal sobre a economia, e "The Role of Private Property in the Nazi Economy"[pdf], de Christoph Buchheim e Jonas Scherner, desenfatizando-o)
No entanto, penso que, numa versão muito simplificada, a ideia base do nacional-socialismo seria um sistema em que os proprietários privados continuavam a deter a direção técnica e operacional das empresas (será a isto que Mises se referia quando falava nos proprietários serem transformados em "gerentes de loja"?), mas em que os objetivos gerais de produção (como preços e quantidades) eram determinados pelo Estado (aliás, os dois artigos que cito atrás parece-me que acabam por dizer ambos isso, ainda que um concentre-se mais no copo meio cheio e outro no copo meio vazio) - no fundo, o proprietário acabaria por ter um papel similar ao de um diretor de uma fábrica estatal na URSS, ou ao que teria um "comité operário de fábrica" no "verdadeiro socialismo" (versão 3.2.2): decidir como atingir os objetivos determinados a nível central.
Ainda a respeito de os proprietários seem ou não puramente "nominais" - afinal, eu vi "A Lista de Schidler" e também uma série ("Pais e Filhos") que deu na RTP no final dos anos 80 sobre o consórcio da indústria química alemã IG Farben, e vê-se claramente os proprietários nas suas empresas e a tomar decisões (ok, são obras ficcionadas - a primeira - ou de ficção - a segunda - mas claramente feitas com a intenção de serem verosímeis e com alguma pesquisa histórica por detrás); aliás, todo o próprio evento histórico em que se baseia "A Lista de Schindler" teria sido impossível se Oskar Schindler não tivesse qualquer autoridade como proprietário.
Agora, será que há diferença real entre uma empresa estatal num sistema de economia planificada do tipo da URSS, e uma empresa privada, com autonomia para os seus assuntos internos mas sujeita a objetivos determinados pelo Estado?
(o porquê desta imagem em breve se perceberá)
Formalmente, eu diria que há duas grandes diferenças:
a) um diretor de uma fábrica estatal é nomeado e pode ser demitido, substituído, transferido, substituído, etc, pelo órgão estatal responsável; um proprietário privado na Alemanha nazi possuía a sua empresa em permanência, podia deixá-la aos filhos quando morresse e dentro de certos limites podia vende-la
b) um diretor recebe um salário; um proprietário continua (por centralizada que seja a economia) a receber os lucros da empresa (esta diferença não é absoluta - se um diretor receber prémios de produtividade neste ponto começa a assemelhar-se a um proprietário)
Não é difícil imaginar que estas diferenças tem relevância, tanto no que diz respeito à repartição do rendimento e da riqueza, como no que diz respeito aos incentivos:
1) Num sistema de propriedade privada regulada o proprietário tem maior incentivo para tentar maximizar a produtividade do que um gestor nomeado de uma empresa estatal
2) É sabido (até houve uma série de televisão à volta disso) que nas organizações (e isso é provavelmente maximizado nessa mega-organização que é o Estado) os dirigentes intermédios acabam frequentemente (porque têm mais informação) por mandar mais que os decisores de topo; isso amplifica as diferenças entre a propriedade estatal e a propriedade privada regulamentada: se todo funcionasse como era para funcionar na teoria (as autoridades centrais definem os objetivos e os gestores/patrões decidem como atingir esses objetivos), a diferença entre um gestor público e um patrão privado talvez não fosse muita; mas se na prática as autoridades centrais acabarem por ser largamente manipuladas pelos gestores/patrões na elaboração do plano, acho que volta a haver uma diferença significativa entre gestores públicos e patrões privados, que em princípio terão interesse em manipular para atingir diferentes objetivos (acresce ainda que provavelmente um patrão privado, que se calhar está à décadas à frente da empresa, terá ainda mais poder de manipulação - já que a assimetria de informação face aos planificadores centrais é maior - do que um gestor público que vai mudando de cargos ao longo da vida)
3) Num sistema de propriedade privada regulada, os capitalistas continuam a ter lucros e a acumular património (até é possível que os capitalistas existentes acabem por ter maiores lucros - nomeadamente no tal cenário em que consigam manipular os ministros - do que num mercado livre; quem acaba por ser "expropriado" são, não os capitalistas que já eram capitalistas, mas os eventuais futuros capitalistas que nunca o chegam a ser por ser mais difícil entrar numa economia fortemente regulada)
Voltando à "lista de Schindler", é um exemplo da situação 2) - o gestor/proprietário usar a assimetria de informação para conseguir enganar o Estado e levá-lo a fazer o que ele quer (diga-se que a situação concreta - dizer que precisa de de mais trabalhadores dos que efetivamente precisa - é algo que até se esperaria mais facilmente de um gestor público do que de um proprietário).
Agora vou revelar (já toda a gente deve ter percebido, mas enfim) o porquê da referência à questão das PPPs - porque, no fundo, o modelo económico nacional-socialista (objetivos definidos pelo Estado mas implementados por empresas privadas) é similar à uma generalização do sistema das PPPs (outras possíveis analogias seria com empreiteiros, subcontratos ou concessões).
[Agora, vou contar algo que me aconteceu há uns anos - em tempos, estava-se a discutir um assunto qualquer na Assembleia Municipal de Portimão, e, como seria de esperar, o BE e a CDU defendia que o município deveria executar diretamente uma dada atividade, enquanto o PS, o PSD e o CDS defendia que se devia criar uma PPP; a data altura, um autarca do PS disse que o BE e CDU continuavam a ter ideias estalinistas, de se o estado a gerir as coisas diretamente; eu estava a assistir e pensei "Se lá estivesse na assembleia poderia dizer que, por essa argumentação, o PS, o PSD e o CDS tinham ideias nazis, porque as PPP eram mais ou menos o modelo económico da Alemanha nazi; ou se calhar era melhor não dizer nada, porque corria o rico de ninguém me perceber"]
Ora, basta olhar para toda a polémica que há à volta das PPPs para se concluir que uma PPP é substancialmente diferente de uma empresa estatal - se não o fossem, nem PCP e BE se bateriam tanto contra elas, nem PSD e CDS (e normalmente também o PS) a favor.
Outro exemplo - ainda eu era um pré-adolescente no "Liceu" de Portimão, e, porque a fila para o bar (explorado diretamente pela escola) estava a andar muito devagar (com motivos para se poder atribuir parte da culpa à empregada), e um amigo meu (que já na altura tinha ideias muito para a direita nalguns assuntos) comentou "Se isto fosse entregue a uma empresa, isto não acontecia - se a tua mãe ou a minha estivessem a tomar conta disto, não punham a empregada a trabalhar?" (de novo, a consideração que uma empresa privada concessionário de um serviço estatal comportaria-se de forma diferente do Estado).
Ainda quatro coisas que me ocorrem a respeito disto (umas talvez mais consensuais, outras talvez mais delirantes):
- Nos anos 30, houve um debate entre Trotsky e vários dissidentes do trotskismo, como Bruno Rizzo, sobre se os "burocratas" na URSS eram uma nova classe social (alguns desses dissidentes viriam a dar origem ao movimento neoconservador): Trotsky dizia que não (seria apenas uma casta privilegiada, não uma classe privilegiada), porque os burocratas não podiam passar os seus cargos aos filhos; Rizzi dizia que sim, porque os burocratas tinham o mesmo poder sobre a economia que teriam se fossem proprietários, e que haveria de chegar o dia em que os cargos se tornassem hereditários; há uns 10 anos eu falei desse debate, escrevendo que "os casos cubano e norte-coreano lançam uma nova luz sobre este assunto" (com o cargo supremo na Coreia do Norte a passar de pai para filho e para neto e em Cuba de um irmão para o outro) - mas se calhar a Alemanha nazi já seria o exemplo do que seria a URSS com cargos administrativos hereditários: como escrevi uns paragráfos atrás, os proprietários privados na Alemanha acabavam por ser uma espécie de gestores hereditários, mais do que proprietários privados puros.
- Talvez a economia nazi possa também ser vista como uma espécie de feudalismo aplicada a uma sociedade industrial e não agrícola: no sistema feudal, os reis concediam aos nobres (e não só) extensões de terra em troca de estes se comprometeram a desempenhar determinados serviços; o sistema nacional-socialista poderá ser visto como a transposição dos princípios feudais para a industrias, em que os proprietários continuam a possuir as suas empresas, a deixá-las aos filhos, etc (tal como um barão feudal faz com os seus domínios), mas sujeitos aos objetivos definidos pelo Estado. Aliás, entre os "conservadores revolucionários" - que, talvez contra a sua vontade, influenciarem bastante os nazis - essa ligação parece explícita - veja-se, p.ex., Oswald Spengler em "Prussianismo e Socialismo" [pdf, página 77]:
"The Old Prussian method was to legislate the formal structure of the total productive potential while guarding carefully the right to property and inheritance, and to allow so much freedom to personal talent, energy, initiative, and intellect as one might allow a skilled chess player who had mastered all the rules of the game. (...) Socialization means the slow, decades-long transformation of the worker into an economic civil servant, of the employer into a responsible administrative official with extensive powers of authority, and of property into a kind of old-style hereditary fief to which a certain number of rights and privileges are attached. In socialism the economic will remains as free as that of the chess player; only the end effect follows a regulated course."Também Mises, nas secções d'"A Crítica do Intervencionismo" (1929) dedicadas ao socialismo nacionalista anti-marxista (que ele designa por "anti-marxismo" e que me parece, no essencial, equivalente à "revolução conservadora") refere o medievalismo desta tendência.
- Outra maneira de vermos isso é que o que os conservadores-revolucionários e nacional-socialistas criticavam no capitalismo não era (como nas versões "de esquerda" do socialismo) a desigualdade económica e social (muito pelo contrário - os seus textos estão cheios de apelos às elites, aos grandes homens, ao "principio da personalidade", etc.) mas o espírito comercial da busca do lucro (em contraponto ao espírito heroico, da patriotismo, da honra e da glória, etc.) - e por isso criticavam também o socialismo marxista: porque consideravam que também estava dominado pelo ideologia da busca do lucro: já não o capitalista individual a procurar o lucro máxima, mas o proletariado a querer maximizar o seu bem-estar económico. De certa forma, o sistema em que as empresas continuam a ser geridas pelos donos, mas ao serviço de objetivos determinados pelo Estado representa isso - as diferenças económicas, a existência de uma classe de proprietários, a autoridade do patrão sobre os seus empregados, etc. tudo isso se mantêm; o que é fortemente limitado é a capacidade de por a propriedade ao serviço da busca do tal lucro máximo.
- [Agora vem a parte potencialmente mais delirante da minha análise] Um dos gurus da gestão empresarial dos anos 80, Harvey Mackey, autor de "Como Nadar Entre os Tubarões Sem Ser Comido Vivo", tem - ou pelo menos tinha quando escreveu esse livro - a teoria que as empresas - sobretudo as industriais - precisavam normalmente de dois gestores: o Senhor Interior, vocacionado para a atividade operacional da empresa, para a gestão da produção, a parte técnica, e o Senhor Exterior, vocacionado para a parte negocial, os contactos com clientes, potenciais investidores, políticos, etc.. Lawrence Miller, autor de "De Bárbaros a Burocratas", acaba por fazer também uma dicotomia semelhante, com a sua distinção entre "construtores" e "exploradores"[pdf]. E onde é que eu quero chegar? É que talvez o nacional-socialismo possa ser visto como o desejo de um mundo em que os "Senhores Interiores" já não precisem "Senhores Exteriores" - um mundo só de diretores técnicos e não de vendedores e comerciais (pode-se argumentar que isso não é especifico dos nazis e que até alguns posts meus podem ter essa leitura); afinal, se fosse levado ao extremo, o modelo nazi acabaria por ser um sistema em que os donos das empresas só de dedicariam a questões técnicas (como produzir), sendo as questões comerciais (que preços praticar, e a quem vender, etc.) essencialmente determinadas pelo Estado. E nem seria difícil saltar daí para o ângulo racial: de um lado o rigor e a excelência técnica da engenharia alemã/"ariana", do outro o "jeito para o negócio" dos comerciantes judeus (um ideólogo nazi, Peter Schwerber, chegou a escrever, em "Nacional-Socialismo e Técnica", em 1930, exatamente que o objetivo era libertar a tecnologia do materialismo judeu) - aliás, não tenho a certeza do que vou escrever, mas creio ter lido algures que, nos seus tempos de pintor em Viena, Hitler pintava os postais e tinha um amigo (!?) judeu que andava a vendê-los; a ser verdade seria exatamente a tal situação (ainda que numa "empresa" de duas pessoas...) do "ariano" responsável da parte "técnica" (ou, neste caso, artística) e o judeu a tratar da parte comercial.
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