Monday, March 23, 2009

Re: o outro


Eu podia ir buscar alguns autores anarco-socialistas para refutar este tese, mas poderia ser argumentado que o anarco-socialismo não é bem o socialismo "normal". Assim, vamos pegar em socialistas mais "normais":

Trotsky - "Engels escreveu na célebre polémica contra Duhring «Quando desparecerem, ao mesmo tempo que a dominação de classe e a luta pela existência individual, criadas pela anarquia actual da produção, os choques e os excessos que decorrem dessa luta, mais nada haverá que reprimir, a nessecidade de uma força especial de repressão não mais se fará sentir no Estado». O filisteu crê na eternidade do policia. Na verdade o polícia dominará o homem enquanto o homem não tiver dominado suficientemente a natureza"(A Revolução Traída).

José Afonso - "Mandadores de alta financa/Fazem tudo andar para tras/Dizem que o mundo só anda/Tendo à frente um capataz" (Os Índios da Meia-Praia)

Assim, cada qual à sua maneira, parece-me que nem Trotsky, nem Engels, nem José Afonso (que penso poderem todos ser considerados socialistas "normais") acham que a submissão a uma autoridade superior é condição necessária para os homens poderem colaborar e viver em sociedade. E arrisco-me a dizer que essa é a posição dominante no pensamento socialista: que grande parte (ou toda, nas versões mais extremas) da "maldade humana" é culpa das instituições sociais, e que mudando essas instituições as pessoas serão (mais ou menos) naturalmente harmoniosas.

Ainda a respeito desta passagem ("O socialismo partilha da convicção hobbesiana de que se deixados a si mesmos, os homens propendem para a destruição e para o abuso de posição dominante. A sua crítica ao liberalismo está enfermada deste raciocínio. A sua defesa do estado e da intervenção pública também. No fim de contas, o socialismo desconfia da espécie humana.") - nenhuma das duas principais tradições socialistas (o marxismo e o anarquismo) defende tal coisa (que o estado é necessário para impedir "o abuso de posição dominante"):

- os anarquistas defendem que foi o Estado que criou as classes dominantes

- os marxistas defendem que foram as classes dominantes que criaram o Estado para proteger os seus privilégios

Ou seja, nem anarquistas nem marxistas defendem que o Estado é necessário para limitar o poder das classes dominantes: os primeiros defendem que, abolindo o Estado, acabar-se-ão as classes dominantes; os segundo que a alternativa é entre um Estado que seja a expressão da violência organizada ao serviço das classes dominantes e um Estado que seja a expressão da violência organizada contra as classes dominantes (quanto à social-democracia, penso que, filosoficamente, pode ser considerada como marxismo diluído em água).

Outro ponto: vamos comparar a social-democracia com o liberalismo clássico ("minarquismo"). Os liberais clássicos defendem que se o Estado se concentrar nas sua tarefas de protecção dos direitos de propriedade, dos contratos, da ordem pública, etc. a economia funcionará bem assente na cooperação voluntária entre os individuos.

Os sociais-democratas defendem (ou defendiam) que, se o Estado garantir um sistema de apoio social e reduzir as desigualdades económicas, as pessoas serão melhores, haverá muito menos criminalidade e menos necessidade de repressão policial (o "defendiam" é porque, desde que o Tony Blair veio com a conversa do "though on crime and though on the causes of crime", isso alterou-se um bocado, ou mesmo bastante em certos países)

Ou seja, tanto liberais clássicos como sociais-democratas defendem que, se o Estado fizer bem o seu papel na "área A", a "área B" funcionará por si mesmo sem grande necessidade do Estado intervir - a diferença está no que é a "área A" e a "área B" para cada corrente (embora é verdade que os liberais são mais entusiastas da retirada do Estado da economia do que os sociais-democratas da retirada do Estado das funções de "lei e ordem").

"De facto, todas as filosofias que aceitam a teoria das elites como dinamizador social são profundamente avessas ao género humano. Elas desconfiam dos homens e, por isso, confiam apenas em certos homens. Este vício é antigo, remonta, pelo menos ao governo dos sábios de Platão, às formas de governo aristocráticas dos clássicos, e foi actualizado, no século XX, pelas várias formas de socialismo e de estatismo."

Acho que, se há doutrina famosa por achar que "toda a gente pode governar, não há ciência nenhuma nisso", é exactamente o socialismo - olhe-se para as ideias do Lenin sobre a cozinheira governar o Estado (e as tese de Lenin sobre o partido-vanguarda foram muito criticadas entre os socialistas da época, com o argumento, entre outros, que era uma visão do partido decalcada da de uma empresa capitalista...), ou o poema de Brecht sobre nascer do Sol, ou os hábitos (por vezes até um pouco caricatos) em certas organizações socialistas de as reuniões terem que ser numa mesa redonda sem lugares "cabeça", ou da correspondência da organização ter que ser aberta em reunião geral de militantes (ou, já agora, a tendência para dar nomes "inócuos" às primeiras figuras da organização- "secretário-geral", "coordenador", etc.).

[Note-se que, com esta conversa toda, estou apenas a falar do que o(s) socialismo(s) defende(m) - não estou a entrar no terreno de se isso faz algum sentido ou se funciona na prática]

Finalmente, dá-me a impressão que em vários posts (sobretudo no Portugal Conteporãneo) o RA tem defendido uma espécie de aliança (ou fusão?) entre liberais e conservadores. Por mim, os liberais podem aliar-se com quem quiserem (afinal, eu também sou um defensor do fusionismo anarquismo-marxismo, provavelmente ainda mais difícil), mas parece-me um bocado contraditório criticar o socialismo por "não acreditar no homem", achar que os homens têm que estar submetidos a uma autoridade para poder viver em conjunto, ser elitista e anti-democrático, etc. e depois defender a aliança com uma ideologia que é, aberta e explicitamente, pessimista antropológica, elitista e que defende que a autoridade é a base da sociedade humana.

4 comments:

Anonymous said...

o socialismo nao so acredita no homem, como o coloca no centro de tudo, por isso a longa batalha que o socialismo trava contra a opressão do homem pelo homem (sobre as suas varias vertentes). desta forma o socialismo luta pela maior autonomia possivel dos individuos, sendo contra formas hierarquicas e desde logo contra a dicotomia de poderes entre individuos.
o centro das preocupaçoes nao é a interacção individuo-inividuo ( algumas pessoas chamam, mercado), mas a forma e a natureza dessas interacções.

a canção diz: "sejamos todos produtores"

Anonymous said...

Acredito que o texto d'O Insurgente refere-se não ao socialismo utópico mas sim ao experimentado pela ex-URSS. Analisando-se é possível perceber um discurso ora pendente para as idéias teóricas ora diferente.

Acho que é um pouco simplista a definição de sociais-democratas. É um pouco mais complexo que isto.

Quanto a idéia socialista de todos podem governar. Sim, de certa forma é verdadeira, mas o socialismo define bem a função de cada um. Apesar de não fazer a distinção entre "nascidos sem berço" e a capacidade de governança, estabelece bem a função de cada um. Um será responsável por tal tarefa, outra pela outra, de tal maneira que alguns exercerão algumas áreas e isto se refletirá também nos que governam.

Abraço,
Búfalo
http://naoserouser.wordpress.com/

Anonymous said...

o que é engraçado, é que cada vez mais o mercado e alguns dos seus agentes, usam metodos que nos passariam pela cabeça como sendo "socialistas", devido à sua centralização e planeamento super estruturado.
se formos analisar o que, por exemplo, a zara faz é um pouco isso.e faz lembrar a ex urss.

CS said...

Caro Miguel Madeira,

Embora a minha reflexão seja mais de natureza partidária, eu penso que verdadeiramente incompatíveis são as ideias de liberalismo e social democracia, e não tanto as de conservadorismo em algumas formas e liberalismo. Em todo o caso subscrevo a sua tese sobre o pessimismo antropológico ser essencialmente de Direita. Estas reflexões levaram-me a citá-lo em post que o convido a comentar da forma que achar mais adequada. O link é: http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/04/sociais-democratas-liberais-o-psd.html

Carlos Santos