Saturday, August 27, 2011

Não tenho titulo para esta réplica (I)

[Este post é algo bizarro, já que pretende ser uma resposta a um post escrito há mais de dois anos - ! -, por um blogger que já nem sequer escreve nos blogues onde escrevia na altura, e que até já pode ter mudado de ideias sobre o que escreveu; no momento, eu decidi fazer uma série de posts sobre o assunto, e eles estão mais ou menos alinhavados nos arquivos do Vento Sueste, à espera que eu me decida a voltar a pegar neles - talvez trabalhos de grande envergadura não sejam para mim?; de qualquer forma, vou publicar já o que pretendia ser o post inicial da série, por uma razão de datas - o tema da discussão entre Esquerda e Direita, dicotomia que foi inventada a 27 de Agosto de 1789]


Rui Passos Rocha, no cama de casal, escreve sobre a diferença entre Esquerda e Direita (algo sobre o qual também já escrevi há algum tempo).

Algumas observações:

"Na primeira sessão dessas reuniões, que serviriam para delinear a futura Constituição do país, deu-se isto: o rei sentou-se ao centro, numa plataforma elevada em relação aos restantes elementos; à sua direita ficaram as altas figuras do clero e da nobreza, bem como alguns – poucos – burgueses mais tradicionalistas; à esquerda os revolucionários (socialistas e liberais), muitos burgueses e alguns nobres. Em frente ao rei, ou seja, em posição mais moderada e central, ficaram o grosso dos burgueses, boa parte da nobreza e membros da base hierárquica do clero."

Isto é apenas um detalhe sem grande importância, mas penso que nas primeiras sessões dos Estados Gerais, a nobreza sentava-se na esquerda, o clero na direita e o "terceiro estado" (na prática, os burgueses) em frente (creio que isto era uma disposição que já vinha da Idade Média). Depois os Estados Gerais transformaram-se em "Assembleia Nacional Constituinte" e essa organização por "estados" desapareceu.

Em 27 de Agosto de 1789, a Constituinte discutiu o poder de veto do rei: uma facção defendia que o rei devia poder vetar de forma definitiva as leis aprovadas pelo parlamento; outra facção defendia que o veto real devia ser apenas suspensivo (se após novas eleições, o novo parlamento voltasse a aprovar uma lei que tivesse sido vetada pelo rei, este tinha que a promulgar de qualquer maneira, ou coisa assim). Foi nesse dia que nasceram a esquerda e a direita: os defensores do veto absoluto sentaram-se à direita e os do veto suspensivo à esquerda.

Como escrevi atrás, este pormenor é apenas uma curiosidade sem grande relevância. Já tenho mais objecções à referencia a "socialistas" durante a revolução francesa - houve os enragés e a "Conspiração dos Iguais", é verdade, mas os segundos foram apenas uma nota de rodapé na história, e os primeiros talvez possam ser considerados como socialistas "práticos" mas sem teoria (Jean Touchard, na sua "Histórias das Ideias Politicas", refere que os enragés parecem querer pouco mais que "uma mudança de proprietários").

Mas esse não é o ponto central da minha réplica.

"Significa isto que a igualdade é, para a Esquerda, sempre material (não se trata aqui apenas do igualitarismo comunista, puro e duro, mas também de práticas políticas tendencialmente niveladoras, socialistas), ao passo que para a Direita a igualdade é uma igualdade de direitos, uma igualdade perante a lei."

Nessa passagem, Rui Passos Rocha parece-me estar a confundir "direita" com "direita liberal" (na direitas conservadora ou nacionalista não é difícil encontrar defesas da desigualdade perante a lei); mas para já, é na esquerda que me quero concentrar.

Olhemos para muitos temas que (sobretudo desde 1968) tem feito parte das campanhas da esquerda:

- contestação à família tradicional, nomeadamente à submissão da mulher ao homem, e também à dos jovens aos adultos

- contestação à escola tradicional, ao ensino centrado no professor; defesa da participação dos alunos na gestão das escolas

- luta contra a discriminação das minorias raciais ou sexuais

- defesa da "democracia participativa"

- por vezes, defesa do auto-governo de regiões e/ou de minorias culturais contra o Estado centralizado (este "por vezes" é porque este tema muda muito de país para país - em Espanha e no Reino Unido é uma marca da esquerda; nos EUA, os "State's Rights" são uma marca da direita; em França, o regionalismo começou na extrema-direita e depois passou para a esquerda...)

- nas versões mais "folclóricas" (não necessariamente as menos interessantes), uma atitude anti-"cultura de massas", anti-agências de viagens, etc. considerando que isso é "alienante" e que o que é "bom" são as diversões auto-organizadas (estilo: criar uma banda na garagem, bom!; ir assistir a um mega-concerto, mau!)

- etc.

Na maior parte, estes temas (basicamente, é aí que se encaixam as chamadas "causas fracturantes") têm muito pouco de "material" - o que está aqui em causa é muito mais a igualdade de poder e/ou status do que a igualdade material.

Se calhar, podemos ver a história da "esquerda" como 3 "gerações" distintas (este era o tal "rascunho que está algures enterrado nos arquivos do blogger" que falo aqui):

- a "primeira geração", preocupada com temas como abolição dos privilégios da aristocracia, limitação ou abolição da monarquia, separação entre a Igreja e o Estado e o sufrágio universal. Corresponderá à esquerda da Revolução Francesa; em Portugal à tradição vintista e setembrista, e mais tarde aos "Históricos" e "Progressistas", e também ao Partido Republicano; aos partidos "liberais" e "radicais" da Europa do século XIX; talvez - se podermos falar em "esquerda" e "direita" no outro lado do Atlântico - a Thomas Jefferson e Andrew Jackson nos EUA (se deixarmos de lado a questão da escravatura). Esta corrente preocupava-se sobretudo com a igualdade legal e de direitos políticos. Teve o seu inicio na Revolução Francesa, o seu ponto alto no século XIX (talvez em 1848?) e praticamente desapareceu depois da I Guerra Mundial.

- a "segunda geração" preocupada sobretudo com as reivindicações operárias, as nacionalizações, o Estado Social, etc. Incluirá tanto a social-democracia como o comunismo clássico. Esta preocupar-se-á sobretudo com a tal igualdade material (mas com reservas que vou referir mais tarde). O seu inicio poderá ser por volta da "revolução europeia de 1848", tendo se mantido até aos dias de hoje.

- a "terceira geração" (aquilo a que por vezes se chamava "nova esquerda") preocupada sobretudo com os "temas fracturantes" e as tais questões que falei lá atrás. O melhor exemplo serão partidos como os "Verdes" alemães (em Portugal, o PSR e o Bloco de Esquerda serão uma combinação da "segunda" e da "terceira" geração). Esta preocupar-se-á sobretudo com a igualdade de poder na vida quotidiana (na família, na escola, nos tempos livres, etc.) Se pesquisarmos, não é difícil encontrar antepassados intelectuais desta "geração" (a começar no Romantismo) mas a sua origem a sério é nos anos 60. Acerca das diferenças da "terceira geração" face ao resto da esquerda, recomendo o text The New Left, do ultra-conservador Erik von Keunnelt-Leddihn; ele exagera nas diferenças, ao ponto de considerar que a "nova esquerda" não é "esquerda", mas exactamente por isso o texto é bom para as perceber.

[esta tipologia pode ser cruzada com outras; estou a pensar em fazer um post com isso]

Regressando ao post de RPR, o que ele escreve na passagem que citei (sobre a igualdade material) fará sobretudo sentido para o que eu chamo a "segunda geração" da esquerda (mas mesmo aí com reservas).

Nem é preciso dizer que estas "gerações" não são estanques: se o PCP pertence claramente à "segunda geração", o BE é uma mistura de "segunda" com "terceira", e o PS se calhar de "primeira" com "segunda" (as raízes do PS estão mais no Partido Republicano do que no "Partido Socialista Português" de Azedo Gneco).

Há também o facto de por vezes a "terceira geração" dar-se melhor com o que sobrou da "primeira" do que com a "segunda" - se calhar os activistas dos anos 60 acabaram por ganhar mais força dentro dos Democratas norte-americanos ou a certa altura dentro Liberais britânicos (que  chegaram a ser conhecidos como o "partido das sandálias e das barbas" - mas se eu tivesse começado a escrever este post já durante o governo Cameron/Clegg talvez nem me tivesse lembrado de falar disso) do que nos partidos socialistas europeus.

E, por fim, há um tema que eu não sei se deverá ser considerado como "segunda" ou "terceira geração" (provavelmente, é o que faz a ponte de uma para a outra) - a crítica à "alienação do trabalho", à "anulação da criatividade do trabalhador" pela sociedade industrial, que há de ter direito a post próprio: por um lado, desde que o movimento operário e socialista existe que essa critica existe (a começar por vários textos de Marx), pelo que o podermos contar já como um tema da "segunda geração"; mas por outro o pensamento socialista tradicional (com excepções) sempre pôs isso em segundo plano - tanto Trotsky como Estaline eram grande admiradores do "sistema Taylor", p.ex. - face a assuntos como "melhores salários" (na verdade, por vezes a direita conservadora - fazendo uns discursos sobre as virtudes da agricultura e do artesanato face à indústria "sem alma" - acabava por pegar mais aí do que a esquerda), tendo esse tema só se tornado "mainstream" com a contracultura dos anos 60, pelo que o poderemos contar como parte da "terceira geração".

Ou talvez esta minha teoria das "três gerações" seja um perfeito disparate...

1 comment:

RPR said...

Miguel, não me parece nada um disparate a ideia de três fases da esquerda. Possivelmente até haverá mais. Este seu texto é bem mais completo e correcto do que o que eu escrevi. Obrigado pela réplica.