Saturday, March 03, 2012

Problemas terminológicos

O Valupi (via Ana Matos Pires) chama a atenção para o uso da palavra "esquizofrénico" no discurso político (já agora, embora seja raro, às vezes já há quem use o "esquizóide").

Diga-se que em tempos (creio que por protestos de pais de autistas, ou coisa assim), a expressão "autismo" deixou de ser usada no parlamento em sentido figurado; porque será que, pelos vistos, nunca ouve uma preocupação similar com a esquizofrenia? Será por, na imaginação popular, "autismo" estar associado a crianças, e por isso gerar mais sentimentos de benevolência paternalista? [Adenda: nos comentários, o Rui Tavares apresenta uma boa razão]

Ainda por cima, penso que "esquizofrénico", "esquizóide" e afins são usados, no discurso figurado, de forma totalmente incorrecta - normalmente são usados com a intenção de dizer que alguém tem ideias ou posições contraditórias, que diz uma coisa num dia e no outro defende outra em sentido contrário. Ora, eu sou economista, não sou psicólogo nem psiquiatra, mas penso que esquizofrenia (ou, pelo menos, certas variantes) tem mais a ver com confundir a fantasia e a realidade (ironicamente, acho que, muitas vezes, quando no discurso político se usa - ou usava - a palavra "autista", até é isso que querem dizer), não propriamente com ter ideias contraditórias. Já agora, um esquizóide será alguém com (a um nível patológico) "alheamento face aos contactos sociais e afectivos, com preferência pela fantasia, introspecção e actividades solitárias e com capacidade limitada para expressar sentimentos e experimentar prazer" (algo parecido com uma espécie de introversão em esteróides).

Parece-me o grande problema aqui é que, por alguma razão, toda a gente confunde a esquizofrenia (ou as "esquiz-" em geral) com o transtorno das personalidades múltiplas (são duas coisas diferentes).

2 comments:

rui tavares said...

Miguel, acho que há uma diferença entre os efeitos da utilização de autista e esquizofrénico no discurso público (diferença essa aliás que esteve na base da carta de uma mãe de autista que, como bem lembras, levou a um pedido para que os deputados se abstivessem de usar esse termo).

A diferença é que, grosso modo, o autista pode acreditar literalmente no que é dito (e sofrer com isso) ao passo que o esquizofrénico raramente acredita literalmente no que lhe é dito.

Em resultado, o rapaz autista que ouvia os deputados chamarem-se autistas na AR interrogavamente repetidamente a mãe "é verdade que x é autista?" e ficava muito agitado com essa possibilidade, que levava a sério. Ele sofria com isso e a sua familiar também. Assim, o pedido para se evitar o uso do termo, apesar de ter sido muito ridicularizado pelos comentadores, não tinha por base uma generalização do "poltiicamente correto", mas uma instância específica de "politicamente correto".

O raciocínio não era (ou não deveria ser, por congruência) "vamos evitar de usar qualquer designação relativa a um distúrbio psicológico, cognitivo, ou físico" mas antes "vamos evitar o termo autista, porque os autistas o interpretam literalmente".

Dizer que fulano é "cego", "míope" ou "surdo" não tem o mesmo efeito, porque os cegos, míopes e surdos entendem a diferença entre linguagem literal e metafórica. Podem ficar ofendidos por aquela metáfora, mas entendem que é uma metáfora.

O autista não fica ofendido pela metáfora, mas entende que ela é verdade.

Alguns esquizofrénicos (os que não aceitam que o são) não ficam ofendidos pela metáfora, em primeiro lugar porque consideram que ela não se lhes aplica, e em segundo lugar porque consideram que ela é metáfora de outra coisa qualquer. Para alguns esquizofrénicos, aliás, tudo é metáfora. "Viste como X chamou esquizofrénico a Y? Isso quer dizer que estão combinados para iniciar aquele plano secreto de que eu já te falei".

João Vasco said...

Bom esclarecimento, não fazia ideia.