Continuando a minha análise deste texto[pdf]:
Thirdly, if present states are viewed as land-holding companies, it is hard to see what quarrel anarcho-capitalists can have with their governments' actions, except to desire to abrogate the underlying extant land titles for their own (and perhaps others') benefit, a song they can sing in the company of socialists, anarchist and otherwise. And that song can be sung forever, as long as anyone perceives a benefit in singing it.Um excelente ponto; se um proprietário imobiliário tem, na sua propriedade poderes muitos semelhantes aos de um Estado sobre o seu território (impõe regras, e quem lá vive, ou vai-se embora, ou aceita essas regras; e, tanto num caso como noutro, esse poder é garantido pela possibilidade de uso, em última instância, da violência), qual é a grande diferença entre o anarco-capitalismo (e se calhar também o anarco-sindicalismo...) e o "estatismo"?
O argumento anarco-capitalista tradicional é de que o Estado não é o proprietário legitimo do seu território, enquanto os proprietários privados o são; mas isso acaba por se resumir a mais uma versão da velha discussão sobre quem é o governo legitimo sobre um dado território. Além que não é muito claro porque é que a propriedade dos proprietários particulares há de ser mais legitima que a do Estado.
A maior parte (todos?) dos Estados adquiriram o seu território pela conquista? Se seguirmos a cadeia de transferências de propriedade um pedaço de terra, provavelmente mais cedo ou mais tarde também vamos encontrar alguém que se apossou dela pela força.
A maior parte dos proprietários actuais não adquiriram os seus terrenos pela força (mesmo que os tenham adquirido via alguém que os adquiriu via alguém que os adquiriu pela força)? Mas se ignorarmos a ficção de que o Estado é uma pessoa colectiva com existência intemporal, e o vermos como um simples conjunto de indivíduos (seja na versão optimista - "o Estado somo nós" - seja na pessimista - "O Estado é um bando de salteadores"), então, na maioria dos casos, os indivíduos que constituem os Estados actuais também não os conquistaram pela força (essa conquista frequentemente ocorreu há séculos atrás). No fundo, podemos comparar o Estado a uma empresa que possui terrenos que, realmente, obteve à força, mas cujos actuais sócios/accionistas obtiveram pacificamente as suas quotas/acções e não têm nada a ver com as conquistas do passado.
Além de que, em certos casos, não sei se não poderemos legitimar alguns estados mesmo pelo critério anarco-capitalista. Por exemplo, alguns estados norte-americanos, como Massachusetts ou Rhode Island, têm a sua origem quando seitas religiosas se instalaram em territórios e fizeram lá comunidades regidas pelas seus princípios, numa mistura de democracia e teocracia - de acordo com os princípios anarco-capitalistas, a soberania dessas comunidades sobre os territórios onde se instalaram seria legitima (quer porque os terrenos eram frequentemente compradas às tribos índias vizinhas, quer porque os fundadores cultivavam essas terras, o que contaria como "homesteading"); e como os membros da seita haviam-se juntado voluntariamente a esse projecto, a autoridade da comunidade sobre as famílias individuais seria também legitima (no fundo, seria algo parecido com os tais condomínios que Hans-Hermann Hoppe defende). Esses "covenants" deram organicamente origem às colónias, que após a revolução americana se tornaram estados independentes. Depois esses estados entraram voluntariamente na entidade "Estados Unidos da América", e na Guerra da Secessão tomaram partido pelo lado que considerava a União indivisível (o que quer dizer que aceitaram essa indivisibilidade). Ou seja, a autoridade dos EUA sobre o Massachussets, Rhode Island, e provavelmente outras zonas da Nova Inglaterra com uma historia parecida, pode ser traçada a uma série de transferências voluntárias de soberanias pelos proprietários originais.
Uma resposta que os anarco-capitalistas podem dar é que, mesmo que um Estado seja criado pela adesão voluntária dos seus súbditos, contratos alienando definitivamente a soberania (como os contratos de escravatura voluntária) não são válidos, logo os indivíduos que se puseram voluntariamente sob a autoridade do Estado continuam a ter o direito de recusar essa autoridade. Mas, se isso pode fazer algum sentido se estivermos a falar de autoridade sobre indivíduos, já é mais díficil de justificar se estivermos a falar de autoridade sobre territórios: afinal, os anarco-capitalistas defendem que é perfeitamente válido que um individuo ceda, a titulo definitivo, a propriedade de uma quinta ou de um casa a outro individuo (sem ter direito a receber a quinta de volta se se arrepender); de certeza que também acham que um individuo pode ceder, a título definitivo, a propriedade da tal quinta ou da tal casa a uma associação ou instituição; mas, se ele pode ceder, definitivamente, a sua quinta a uma instituição, porque é que não poderá colocar, definitivamente, a sua quinta sobre a autoridade de uma instituição? Até porque a diferença entre uma coisa e outra é largamente semântica - qual é a grande diferença entre "Esta quinta agora é vossa," e "Esta quinta continua a ser minha, mas de agora em diante vocês têm poder para regulamentar o que eu faço nela e cobrar impostos sobre ela"? Além disso, alguns anarco-capitalistas são grandes fãs de mecanismos como "covenants", defendendo até o direito de estabelecer "covenants" para coisas como garantir a homogeneidade racial de bairros; imagino que a ideia seja esses "covenants" serem definitivos - afinal, se qualquer proprietário pudesse abandonar o "covenant" estipulando "ninguém vende casas a brancos", essa regra não teria valor nenhum (afinal, seria impossível de cumprir o seu objectivo, que é impedir os proprietários do bairro de venderem casas a brancos - quando alguém quisesse vender a casa a um branco, era só dizer que abandonava o "covenant"). Ora, se um "covenant" irrevogável é válido, a submissão voluntária mas irrevogável a um Estado também será válida (no fundo, não passa de um tipo peculiar de "covenant").
Outra abordagem poderá ser, não que a propriedade/soberania do proprietário é legítima e a "propriedade"/soberania do Estado é ilegítima, mas sim que, como as propriedades por norma são mais (ou muito mais) pequenas que os Estados, é mais fácil aos descontentes mudarem-se para uma propriedade/"Estado" com cujas "leis" e normas concordem. Mas aí, mais que um argumento a favor do anarco-capitalismo, seria sobretudo um argumento a favor de pequenas "unidades soberanas", sejam elas condomínios anarco-capitalistas governados pelos proprietários, bairros governados pelo gang local, aldeias comunitários governadas pelo plenário de habitantes e dividindo a terra em partes iguais de 7 em 7 anos, domínios feudais hereditários governados pelo tetraneto do chefe do gang mais poderoso da época, campi universitários independentes governados pelos respectivos senados, zonas industriais governadas por um conselho de delegados (revogáveis a qualquer instante) de assembleias de fábrica, etc. (algo parecido com isto?)
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