O Spectrum e Sérgio dos Santos, do My Guide to Your Galaxy, estão (ou estavam?) numa intensa discussão, iniciada pela publicação deste artigo de Dos Santos na revista Dia D. Já agora, vou dizer também qualquer coisa.
Dos Santos escreve que "cada transacção económica consciente e voluntária apenas se verifica quando ambas as partes crêem obter de si um benefício, uma vez que seria necessária a recorrência à coacção para que o contrário fosse expectável", ao que a Joystick contrapõe "em que casos o comportamento de agentes económicos - tratemo-los por pessoas, só para facilitar - está livre de elementos coactivos (...)?".
A mim parece-me que, a partir do momento em que está estabelecido um sistema de direitos de propriedade, temos um elemento de coacção a funcionar: a propriedade (seja ela privada, estatal, comunitária, feudal, etc.) assenta no recurso à força. Quando alguém (um individuo ou uma instituição) diz "Isto é meu!", está a dizer "Quem tocar nisto contra a minha vontadade, leva um tiro/uma chapada/vai preso/etc.".
Um exemplo: há primeira vista, pode-se argumentar que os contratos de trabalho entre os latifundiários e os trabalhadores rurais alentejanos eram "voluntários", mas os trabalhadores só estavam na situação de ter que aceitar esses contratos porque estavam impedidos de, em vez de trabalharem para um patrão, entrarem nos terrenos e cultivarem-nos por sua própria conta (que foi o que fizeram quando o aparelho repressivo do Estado fraquejou, e deixaram de poder fazer quando este se reconstituiu).
Muitos liberais tentam contornar este problema adoptando uma definição de coacção que remete para os direitos de propriedade: em vez de coacção significar aqulo que normalmente significa ("levar alguém a comportar-se de certa maneira através do uso da força ou ameaça de força") passa a aplicar-se a qualquer violação do direitos de propriedade (mesmo que sem recurso à força), enquanto que a força usada para defender a propriedade nunca é "coacção".
Só que essa definição de "coacção" leva a uma situação em que num conflito entre diferentes "teorias da propriedade" cada um dos lados pode-se apresentar como "o defensor da liberdade" contra "a coacção".
Um exemplo: imaginemos que o Manuel acha que alguém tem direito a ser proprietário de uma frequência radiofónica se operar uma estação de radio nessa frequência durante 5 anos; o Fernando acha que o direito de propriedade só surge ao fim de 10 anos. Agora vamos supôr que o Manuel operou uma estação de rádio (numa frequência que antes não tinha dono) que emitia nesse frequência durante 7 anos, e depois (por qualquer razão) deixou de emitir; então o Fernando começa a emitir nessa frequência e o Manuel chama a policia (ou uma agência de segurança privada) por o Fernando estar a usar a sua propriedade. Questão - quem está a coagir quem? De acordo com o Manuel, a frequência é dele, logo as emissões radiofónicas do Fernando estão a coagi-lo; de acordo com o Fernando, a frequência não tem dono, logo, a partir do momento em que ninguém a estava a usar, ele tem todo o direito de a usar e o Manuel, ao tentar impedi-lo, está a coagi-lo.
A solução mais simples - considerar que o proprietário é quem a lei em vigor reconhecer como proprietário - não serve, já que isso iria implicar que a diferença entre "liberdade" e "coacção" variaria conforme a lei (ou seja, os defensores da legalidade vigente seriam sempre defensores da "liberdade" e os contestatários seriam sempre agentes de coacção).
E repare-se que eu estou a dar um exemplo em que ambas as partes seguem a mesma filosofia básica (apenas diferem no número de anos para adquirir direitos de propriedade); se nos lembrarmos do monte de "teorias da propriedade" que existem*, facilmente verificamos como essa definição de "coacção" acaba por não significar nada de concreto.
* P.ex., mesmo dentro do liberalismo (uma ideologia que tem a propriedade como ponto fundamental), temos liberais pró-propriedade intelectual e anti-propriedade intelectual; liberais que defendem a reforma agrária em certas condições e liberais que são contra; etc. (note-se a polémica que há entre os "libertarians" dos EUA sobre o caso dos horticultores de South Central, para ver como a questão "quem é o legitimo dono disto" é quase impossível de ter uma resposta universal, mesmo entre pessoas com as mesmas raizes politicas)
Dos Santos escreve que "cada transacção económica consciente e voluntária apenas se verifica quando ambas as partes crêem obter de si um benefício, uma vez que seria necessária a recorrência à coacção para que o contrário fosse expectável", ao que a Joystick contrapõe "em que casos o comportamento de agentes económicos - tratemo-los por pessoas, só para facilitar - está livre de elementos coactivos (...)?".
A mim parece-me que, a partir do momento em que está estabelecido um sistema de direitos de propriedade, temos um elemento de coacção a funcionar: a propriedade (seja ela privada, estatal, comunitária, feudal, etc.) assenta no recurso à força. Quando alguém (um individuo ou uma instituição) diz "Isto é meu!", está a dizer "Quem tocar nisto contra a minha vontadade, leva um tiro/uma chapada/vai preso/etc.".
Um exemplo: há primeira vista, pode-se argumentar que os contratos de trabalho entre os latifundiários e os trabalhadores rurais alentejanos eram "voluntários", mas os trabalhadores só estavam na situação de ter que aceitar esses contratos porque estavam impedidos de, em vez de trabalharem para um patrão, entrarem nos terrenos e cultivarem-nos por sua própria conta (que foi o que fizeram quando o aparelho repressivo do Estado fraquejou, e deixaram de poder fazer quando este se reconstituiu).
Muitos liberais tentam contornar este problema adoptando uma definição de coacção que remete para os direitos de propriedade: em vez de coacção significar aqulo que normalmente significa ("levar alguém a comportar-se de certa maneira através do uso da força ou ameaça de força") passa a aplicar-se a qualquer violação do direitos de propriedade (mesmo que sem recurso à força), enquanto que a força usada para defender a propriedade nunca é "coacção".
Só que essa definição de "coacção" leva a uma situação em que num conflito entre diferentes "teorias da propriedade" cada um dos lados pode-se apresentar como "o defensor da liberdade" contra "a coacção".
Um exemplo: imaginemos que o Manuel acha que alguém tem direito a ser proprietário de uma frequência radiofónica se operar uma estação de radio nessa frequência durante 5 anos; o Fernando acha que o direito de propriedade só surge ao fim de 10 anos. Agora vamos supôr que o Manuel operou uma estação de rádio (numa frequência que antes não tinha dono) que emitia nesse frequência durante 7 anos, e depois (por qualquer razão) deixou de emitir; então o Fernando começa a emitir nessa frequência e o Manuel chama a policia (ou uma agência de segurança privada) por o Fernando estar a usar a sua propriedade. Questão - quem está a coagir quem? De acordo com o Manuel, a frequência é dele, logo as emissões radiofónicas do Fernando estão a coagi-lo; de acordo com o Fernando, a frequência não tem dono, logo, a partir do momento em que ninguém a estava a usar, ele tem todo o direito de a usar e o Manuel, ao tentar impedi-lo, está a coagi-lo.
A solução mais simples - considerar que o proprietário é quem a lei em vigor reconhecer como proprietário - não serve, já que isso iria implicar que a diferença entre "liberdade" e "coacção" variaria conforme a lei (ou seja, os defensores da legalidade vigente seriam sempre defensores da "liberdade" e os contestatários seriam sempre agentes de coacção).
E repare-se que eu estou a dar um exemplo em que ambas as partes seguem a mesma filosofia básica (apenas diferem no número de anos para adquirir direitos de propriedade); se nos lembrarmos do monte de "teorias da propriedade" que existem*, facilmente verificamos como essa definição de "coacção" acaba por não significar nada de concreto.
* P.ex., mesmo dentro do liberalismo (uma ideologia que tem a propriedade como ponto fundamental), temos liberais pró-propriedade intelectual e anti-propriedade intelectual; liberais que defendem a reforma agrária em certas condições e liberais que são contra; etc. (note-se a polémica que há entre os "libertarians" dos EUA sobre o caso dos horticultores de South Central, para ver como a questão "quem é o legitimo dono disto" é quase impossível de ter uma resposta universal, mesmo entre pessoas com as mesmas raizes politicas)
4 comments:
Miguel, a mim quer-me parecer que já tivemos esta conversa antes. O problema está em que o Miguel acha que a coacção está implícita em qualquer definição da propriedade. Mas repare que quem define toda a propriedade como comunitária estará potencialmente em conflito com toda a gente que a vê como privada, ou seja, com a maior parte do mundo (quer se admita, quer não). Uma cidade com milhares de habitantes tem centenas de pequenos espaços de gestão privada. O que acontece quando chega alguém que acha que tem tanto direito sobre todos esses espaços como qualquer uma das outras pessoas? Entra em conflito com quem quer que seja porque não é reconhecida tal “propriedade” (há coação entre quem vê a propriedade como comunitária e todos os que a vêem como algo individual). Por alguma razão a propriedade privada é a forma de gestão de propriedade mais bem sucedida da história.
Num regime onde é reconhecida a propriedade privada (e como tal, também a pública, comunitária, etc.) o conflito, a existir, dá-se apenas entre as pessoas que julgam ter direito à mesma propriedade e isso não implica que haja sequer coacção porque não há uma necessidade de intimidação ou agressão, já que um árbitro externo e independente pode resolver o conflito (é para isso que serve o poder judicial).
Difícil será, no entanto, dizer que duas pessoas que fazem uma transacção livre (imaginemos que eu troco o meu computador pelo seu) têm um elemento coactivo implícito. Se ambas agem de forma voluntária e consciente com aquilo que cada uma tem, onde está a coacção? Ou vai-me dizer que há um ansoc qualquer na Austrália que acha que os nossos computadores também são dele e por isso a nossa transacção tem um elemento coactivo?...
P.S. – Vamos ser pragmáticos. Os exemplos que o Miguel dá são sempre muito estranhos. Não sei há quanto tempo vive na sua casa mas acha que eu tinha o direito de tomar posse sobre ela porque considero que esse tempo não é suficiente para deter propriedade? Ou será que devo considerar que estou ilegitimamente impedido de ocupá-la?
É uma questão de “senso comum”. Isto aplica à questão do espectro. [Será que o Sol tem o direito para emitir nas frequências em que emite?] A decisão dependerá de quanto tempo foi o espectro abandonado, por que razões tal aconteceu, quais as intenções ao abandona-lo e assim por diante. O mesmo para o caso alentejano (não conheço). O Miguel imagina logo filmes de polícias e gangues a actuar como se fossem todos uma máfia. Lembre-se que ninguém está propriamente interessado em arranjar problemas com a justiça quando não tem um bom argumento para o que fez. É a mesma razão pela qual não se pode desatar a matar pessoas no meio da rua e dizer que “ah, mas eu não acho que o homicídio seja um crime, para mim crime é não-existencia de morte”.
"a gente que a vê como privada, ou seja, com a maior parte do mundo (quer se admita, quer não)"
Não sei se a maior parte das pessoas vê verdadeiramente a propriedade como privada - a maioria esmagadorissima acha que o Estado têm uma espécia de "poder ultimo" sobre a propriedade (já que aceitam que haja impostos, regulamentação, etc.)
"Difícil será, no entanto, dizer que duas pessoas que fazem uma transacção livre (imaginemos que eu troco o meu computador pelo seu) têm um elemento coactivo implícito. Se ambas agem de forma voluntária e consciente com aquilo que cada uma tem, onde está a coacção?"
A coacção não está propriemente na transação, mas na definição prévia de "aquilo que cada um tem" (mas como a transação é afectada por essa definição prévia, acaba por ser afectada por esse elemento de coacção).
"Ou vai-me dizer que há um ansoc qualquer na Austrália que acha que os nossos computadores também são dele e por isso a nossa transacção tem um elemento coactivo?"
Diga-se de passagem que o exemplo está mal escolhido: um ansoc na Austrália nunca poderia reclamar poder sobre computadores situados em Portugal (um comunista marxista já poderia)
"Lembre-se que ninguém está propriamente interessado em arranjar problemas com a justiça quando não tem um bom argumento para o que fez"
Ou seja, no fundo o que o Dos Santos está a dizer é o proprietário "é quem a lei em vigor reconhecer como proprietário".
Há uma razão para os meus exemplos serem estranhos - são exemplos relacionados com a "aquisição original" da propriedade (afinal, grande parte das discussões acerca da legitimidade deste ou daquele sistema de propriedade derivam, em ultima instância, de discussões acerca da "aquisição original"). Ora, a "aquisição original", quase por definição, é rara: a maior parte dos bens existentes já foi sujeita a "aquisição original" há muito tempo.
Muito bom post Miguel. Se ate o Libertario do Nozick reconhecia que a grande questao eram os direitos de propriedade, nao percebo porque e que os liberais em pt nao o admitem (recorrendo a algo que nao uma definicao circular de propriedade legitima). A unica forma que conheco de lidar\arbitrar o problema é a aceitacao DE FACTO das partes interessadas. Nao existe uma teoria da justica ou entitlements, neutra e universal que, como que por magia, ou tipo axioma resolva um problema que é essencialmente politico. A democracia (nao aquela que apenas serve para regulamentar os direitos liberais) parece-me ser o unico espaco onde tais questoes podem ser arbitradas. Ou entao guerra -tipo palestina-israel-, mas ai estamos fartos de saber em que e que isso resulta.
Abracos,
Joao Galamba
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