Faz sentido haver benefícios fiscais? Uma vez perguntei à minha tia "porque é que há benefícios fiscais para comprar uma casa e não para comprar comida de gato?"; a resposta dela - "porque se considera que uma casa é um bem de primeira necessidade e um gato não" - não me satisfez, já que pode haver pessoas que prefirem ter um gato a uma casa; ou seja, em vez de atribuir benefícios fiscais, fazia mais sentido o Estado cobrar uma taxa menor de imposto e os contribuintes gastarem esse dinheiro extra no que acharem eles prioritário (uma casa, comida para o gato, um donativo para combater a fome no mundo, etc.).
Para mim, só faz sentido haver benefícios fiscais se se considerar que a "sociedade" tem interesse em que o individuo gaste o seu dinheiro em "X" em vez de em "Y", ou seja, para despesas que tenham utilidade, não apenas para quem as faz, mas também para o resto da sociedade (isto é. externalidades positivas).
Vamos ver algumas situações caso a caso:
- Planos Poupança Reforma: só beneficia o individuo que os subscreve (e eventualmente os seus herdeiros). Não faz sentido haver beneficio fiscal.
- Compra de habitação/arrendamento/contas poupança habitação: de novo, só beneficia o individuo que compra a casa (e o que a vende, mas esse beneficio do vendedor ocorre em qualquer despesa, seja uma casa, seja um serrote eléctrico). Não faz sentido haver beneficio fiscal.
- Compra de material informático: duvidoso; no entanto, talvez seja útil para a sociedade no seu todo devido aos efeitos de rede (um computador é mais útil numa sociedade em que muita gente tenha computadores). Pode fazer sentido haver benefício fiscal.
- Educação: de uma forma geral, é aceite que a formação académica tende a favorecer, não apenas o individuo que a tem, mas a economia no seu todo. Assim, faz sentido haver benefício fiscal.
- Saúde: caso bicudo. Há partida, as despesas de saúde são despesas que beneficiam o individuo que as faz, logo, pela minha lógica, não deviam ter direito a dedução no IRS. No entanto, acho que as despesas com a saúde devem ter benefícios fiscais por outra razão: não se trata de despesas que a gente faça porque quer, mas sim porque tivemos o azar de ter uma doença, um acidente, etc. Desta forma, o benefício fiscal na saúde funciona como uma forma de solideriedade com quem teve esse azar.
- Energias renováveis: outro caso bicudo. Há primeira vista, parece que há uma externalidade positiva no uso de energias não poluentes. Mas não há - apenas deixa de haver uma externalidade negativa; no entanto, se o individuo, em vez de usar energia não-poluente, não usasse energia nenhuma também existia essa ausência de externalidade negativa. Dando um exemplo: num dado período de tempo, o Manuel consome 100 kilowatts-hora* (KWh) de energias não poluentes e 400 KWh de energias poluentes; a Luciana consome 300 KWh de energias poluentes: ou seja, o Manuel polui mais que a Luciana, mas recebe mais dinheiro de volta nos impostos! Assim, em vez de benefícios às energias não-poluentes, o que devia haver era impostos adicionais ao uso de energias poluentes (o que aliás, resolvia de vez questões como "deve haver benefícios fiscais para as bicicletas?" - se o que houvesse fosse impostos adicionais para as energias poluentes, todos os meios de transporte não-poluentes ficavam "beneficiados" por omissão). No entanto, como é politicamente mais simpático anunciar beneficios fiscais para os não-poluentes do que impostos adicionais para os poluentes (mesmo que no final vá dar ao mesmo), admito que os benefícios fiscais para as energias não-poluentes sejam um second best.
*por favor, não me digam "kilowatts por hora", como aparecia na página de economia do Expresso de 15 de Agosto. Dizer/escrever "kilowatts por hora" é equivalente a dizer "eu não sei nada de unidades de medida de energia".
7 comments:
Ouvi ontem Saldanha Sanches afirmar algo óbvio, "os benefícios fiscais em saúde existem para levar as pessoas a pedirem recibo aos médicos, obrigando estes a pagar imposto." Na realidade existe uma enorme economia paralela na generalidade das actividades onde não são possíveis deduções.
A questão dos benefícios fiscais para as bicicletas é mais de coerência, já que são dados 6 benefícios fiscais a veículos eléctricos. A saber, zero de ISP, zero de IA, zero de imposto de circulação, apoio governamental ao projecto, electricidade subvencionada, abatimento da aquisição no IRS, a acrescer a um subsídio de 5000€, só porque sim.
A "exigência" surge nesse contexto e não me passaria pela cabeça fazê-la noutro.
http://menos1carro.blogs.sapo.pt/122533.html?thread=346533
http://menos1carro.blogs.sapo.pt/168620.html
Na prática, ainda posso argumentar que o abate no IRS de 2500€ de carro eléctrico (que custará no mínimo uns 25 000) beneficia a classe média-alta que tem dinheiro para o comprar e que paga impostos > 2500 €
O mesmo aplicado a bicicletas, cuja gama média custará 150€ , poderia ser um benefício mais socialmente abrangentemente aproveitado.
Noutro assunto relacionado, e que dizer dos benefícios fiscais às donas de casa (através do casamento?) - pago 36% de impostos por ano, se me casar com uma "dona de casa" passo a pagar 16%.Se me casar com quem ganhe o mesmo que eu, continuo a pagar 36%.
De acordo com a quase totalidade (como tenho vindo a escrever por aqui http://menos1carro.blogs.sapo.pt/tag/economia), especialmente com essa falácia que tanto se ouve por aí do benefício das renováveis e outros comportamentos "verdes".
Só tenho alguma dúvida em relação aos PPRs. Bom não em relação aos PPR (cujos benefícios fiscais também promovem a fuga fiscal), mas benefícios sobre a poupança. Os baixos níveis de poupança têm criado um enorme dívida externa, e agora poderá haver externalidades positivas.
"Só tenho alguma dúvida em relação aos PPRs. Bom não em relação aos PPR (cujos benefícios fiscais também promovem a fuga fiscal), mas benefícios sobre a poupança. Os baixos níveis de poupança têm criado um enorme dívida externa, e agora poderá haver externalidades positivas."
Mas será que há algum problema em ter divida externa?
http://onumeroprimo.wordpress.com/2009/08/22/sim-temos-divida-externa-e-depois/
Bom post, concordo com quase* tudo.
Quanto à razão pela qual há benefícios fiscais, presumo que a explicação tenha a ver com ataque a franjas eleitorais: são medidas sem grandes custos orçamentais mas que permitem segmentar facilmente o eleitorado 'pescar' votos específicos (a ideia de "medidinhas" do João Miranda).
*A ideia de que a educação traz benefícios para a sociedade é de facto generalizada mas eu não encontro grandes externalidades [O Milton Friedman dizia mesmo que não havia nenhuma e que por isso não se justificava subsidiar os estudos por outras razões que não as de equidade)
Miguel, uma nota: por favor não escreva «Há primeira vista», que é o equivalente a dizer «eu não sei nada de ortografia». ;)
Os pontos são pertinentes.
"Mas será que há algum problema em ter divida externa?"
Claro que a dívida externa por si não é gravosa. Mas eu falava no seu aumento, no défice externo se quisermos que tem sido de 7% ou 8% do PIB ultimamente.
Já houve várias consultoras a subir a avaliação de risco dos empréstimos a Portugal, e isto sim é um problema. Não é teórico, já está a acontecer.
(Depois há quem fale em crowding out, mas não me parece que faça grande sentido)
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