Thursday, December 31, 2009

Considerações sobre as considerações sobre a classe média (II)

Há quem questione o que leva pessoas de esquerda a, por vezes, chamarem "classe média" a quem é na realidade classe média alta ou mesmo alta. A resposta mais simples seria a conversa da "esquerda caviar" mas creio que é algo de mais profundo:

Durante muito tempo o conceito de "classe média" também não era um conceito particularmente positivo para a esquerda - para a esquerda marxista ortodoxa, "classe média" eram os elementos indecisos da luta de classes, que nunca eram de confiança mesmo quando apoiavam o "proletariado"; para aquilo que há 40 e tal anos era a "nova esquerda", a "classe média" era um bando de conformistas/alienados/falsos moralistas/corrompidos pela sociedade de consumo/etc.; de qualquer forma, em nenhuma das tradições a palavra "pequeno-burguês" tem conotações muito boas...

Assim, durante décadas (e ainda mais em reacção às teses - que já eram populares há 50 anos - que diziam que as sociedades ocidentais tinham se tornado sociedades de classes médias e por isso estavam ideologicamente pacificadas) a preocupação dos "intelectuais de esquerda" não era demonstrar que a "verdadeira classe média" eram as pessoas que ganhavam cento e poucos contos (ou o equivalente em valores da época) - era exactamente o oposto: arranjar definições que demonstrassem que a "classe trabalhadora" era cada vez maior e que a "classe média" um grupo não tão grande como se dizia; ou seja, puxar para cima a fronteira entre a "classe trabalhadora" e a "classe média" (diga-se que a própria escolha entre "classe trabalhadora" e "classe baixa" para designar a classe abaixo da "classe média" tem implicações diferentes).

Hoje em dia, essa atitude de desconfiança pela classe média desapareceu e toda a gente quer ser classe média; mas as teorias da estratificação social desenvolvidas nesses tempos continuam a ser as utilizadas e são óptimas para os "esquerdistas" da classe alta e média alta (como eu, que devo ganhar quase o dobro do salário mediano) se convencerem a si próprios de que são classe média (ainda mais em Portugal, que consome "definições de classe média" produzidas em França ou nos EUA).

Note-se que eu não estou a tomar exactamente partido por nenhuma das definições - as minhas prefiridas são esta e esta, mas acho que qualquer uma é boa desde que não haja equívocos sobre o que é que se quer dizer.

2 comments:

rui fonseca said...

Bom Ano!

Aproveito para referir que coloquei comentário (7) no post sobre feriados.

Apreciaria um seu apontamento sobre o que referi.

mescalero said...

Há também a questão da mobilidade social que aumentou significativamente nas sociedades de super-abundância. Para a direita (que detém o monopólio do discurso dominante), hoje em dia qualquer um pode ser da classe média, iniciar o seu próprio negócio se não estiver satisfeito. Isso coloca o ónus da pobreza e da pertença à classe baixa nos próprios, o que é reconfortante para os que mais têm (embora não seja uma ideia nova, as teorias racistas já percorreram este caminho no passado).
A questão do "poder ser classe média" passa a ser tão ou mais importante do que o facto de se ser ou não dessa classe. Não só a desconfiança em relação à classe média desapareceu, como tende a desaparecer a justificação para não se ser pelo menos classe média.
"Não há pobreza em Portugal", dizia há uns tempos uma formadora de um curso que frequentei, sob os olhares complacentes dos técnicos sociais.