Fernanda Câncio argumenta que os escravos que o facto de no século XIX, aparentemente, os escravos do Sul dos EUA viverem melhor que os operários do Norte representa "uma crítica ao sistema capitalista selvagem que vigorava nos eua em relação aos trabalhadores assalariados à época da escravatura. o mercado 'livre' era pior que o pior dos sistemas totalitários, é o que [se] conclui".
João Miranda responde de duas maneiras: por um lado, pergunta como "é que o operário do início do século XIX poderia ter o nível de vida do escravo sul-carolinês do séc XIX" (nota: provavelmente devido à confusão resultante de querer imitar o estilo ortográfico de Fernanda Cancio, JM não escreveu bem isso, mas penso que era isso que ele queria escrever - afinal, é dessa comparação que se está a falar).
Além disso, afirma "os escravos recebiam de volta sob a forma de bens e serviços quase tudo o que produziam (90%) sendo o nível de exploração estimado bastante baixo". Acho que, com esta, o tiro saiu-lhe pela culatra: o facto de o nivel de exploração do escravo ser baixo só reforça a tese de Fernanda Câncio de que os operários eram mais explorados que os escravos.
Diga-se de passagem que a ideia que os escravos eram melhor tratados que os operários assalariados não é nova: no século XIX, os defensores da escravatura (p.ex. os conservadores ingleses pró-Confederação) argumentavam isso, e com uma certa lógica - como o patrão era o dono do escravo, tinha interesse em que ele tivesse boa saúde (logo, boa alimentação, boas condições de trabalho, etc.), já que a morte ou incapacitação de um escravo era uma perda de capital investido; pelo contrário, para o patrão do assalariado, se ele morresse de fome ou ficásse inválido, não havia problema, era só contratar outro.
A visão marxista do anti-esclavazismo da burguesia industrial seguia mais ou menos na mesma linha - os industriais seriam contra a escravatura exactamente pelos seus custos.
Um exemplo engraçado desse argumentação pode ser uma passagem do filme Queimada (um típico filme "de esquerda" dos anos 60) em que o protagonista (Marlon Brando), um agente inglês tentando convencer os comerciantes de uma ilha das Caraíbas a apoiarem uma revolta anti-portuguesa/pró-inglesa, diz:
Gentlemen, let me ask you a question. Now, my metaphor may seem a trifle impertinent, but I think it's very much to the point. Which do you prefer - or should I say, which do you find more convenient - a wife, or one of these mulatto girls? No, no, please don't misunderstand: I am talking strictly in terms of economics. What is the cost of the product? What is the product yield? The product, in this case, being love - uh, purely physical love, since sentiments obviously play no part in economics.
Quite. Now, a wife must be provided with a home, with food, with dresses, with medical attention, etc, etc. You're obliged to keep her a whole lifetime even when she's grown old and perhaps a trifle unproductive. And then, of course, if you have the bad luck to survive her, you have to pay for the funeral!
It's true, isn't it? Gentlemen, I know it's amusing, but those are the facts, aren't they? Now with a prostitute, on the other hand, it's quite a different matter, isn't it? You see, there's no need to lodge her or feed her, certainly no need to dress her or to bury her, thank God. She's yours only when you need her, you pay her only for that service, and you pay her by the hour! Which, gentlemen, is more important - and more convenient: a slave or a paid worker?
Agora, uma questão paralela: nos comentários ao post de JM, surgiu uma discussão se deveria ter havido redistribuição da riqueza nessa altura, com uns a argumentarem que isso iria melhor a situação dos operários da altura, e os blasfemos a dizerem que isso iria reduzir o crescimento económico.
Independentemente do lado que tomemos nessa disputa (eu tendo mais para os primeiros), há um detalhe que está a ser esquecido: nos EUA do século XIX havia redistribuição da riqueza - redistribuição dos pobres para os ricos.
Como assim? Nos EUA do século XIX, várias administrações seguiram politicas protecionistas (essas politicas intensificaram-se após a guerra, mas já haviam antes) - a questão das "tarifas" era talvez a segunda questão mais debatida na altura (a par com a escravatura). Ora, num pais com escassez relativa de capital, uma politica protecionista faz subir a rentabilidade do capital em relação à dos outros factores de produção, como o trabalho ou a terra. Assim, esse protecionismo - à época chamado "sistema americano" - significava uma redistribuição da riqueza dos agricultores e operários para os industriais. Aliás, isso via-se nos alinhamentos partidários da época: as classes baixas (e também os latifundiários esclavagistas) apoiavam o (então) livre-cambista Partido Democrata, enquanto que industriais, banqueiros e grandes comerciantes apoiavam os partidos protecionistas (Federalistas, Whigs e Republicanos).
João Miranda responde de duas maneiras: por um lado, pergunta como "é que o operário do início do século XIX poderia ter o nível de vida do escravo sul-carolinês do séc XIX" (nota: provavelmente devido à confusão resultante de querer imitar o estilo ortográfico de Fernanda Cancio, JM não escreveu bem isso, mas penso que era isso que ele queria escrever - afinal, é dessa comparação que se está a falar).
Além disso, afirma "os escravos recebiam de volta sob a forma de bens e serviços quase tudo o que produziam (90%) sendo o nível de exploração estimado bastante baixo". Acho que, com esta, o tiro saiu-lhe pela culatra: o facto de o nivel de exploração do escravo ser baixo só reforça a tese de Fernanda Câncio de que os operários eram mais explorados que os escravos.
Diga-se de passagem que a ideia que os escravos eram melhor tratados que os operários assalariados não é nova: no século XIX, os defensores da escravatura (p.ex. os conservadores ingleses pró-Confederação) argumentavam isso, e com uma certa lógica - como o patrão era o dono do escravo, tinha interesse em que ele tivesse boa saúde (logo, boa alimentação, boas condições de trabalho, etc.), já que a morte ou incapacitação de um escravo era uma perda de capital investido; pelo contrário, para o patrão do assalariado, se ele morresse de fome ou ficásse inválido, não havia problema, era só contratar outro.
A visão marxista do anti-esclavazismo da burguesia industrial seguia mais ou menos na mesma linha - os industriais seriam contra a escravatura exactamente pelos seus custos.
Um exemplo engraçado desse argumentação pode ser uma passagem do filme Queimada (um típico filme "de esquerda" dos anos 60) em que o protagonista (Marlon Brando), um agente inglês tentando convencer os comerciantes de uma ilha das Caraíbas a apoiarem uma revolta anti-portuguesa/pró-inglesa, diz:
Gentlemen, let me ask you a question. Now, my metaphor may seem a trifle impertinent, but I think it's very much to the point. Which do you prefer - or should I say, which do you find more convenient - a wife, or one of these mulatto girls? No, no, please don't misunderstand: I am talking strictly in terms of economics. What is the cost of the product? What is the product yield? The product, in this case, being love - uh, purely physical love, since sentiments obviously play no part in economics.
Quite. Now, a wife must be provided with a home, with food, with dresses, with medical attention, etc, etc. You're obliged to keep her a whole lifetime even when she's grown old and perhaps a trifle unproductive. And then, of course, if you have the bad luck to survive her, you have to pay for the funeral!
It's true, isn't it? Gentlemen, I know it's amusing, but those are the facts, aren't they? Now with a prostitute, on the other hand, it's quite a different matter, isn't it? You see, there's no need to lodge her or feed her, certainly no need to dress her or to bury her, thank God. She's yours only when you need her, you pay her only for that service, and you pay her by the hour! Which, gentlemen, is more important - and more convenient: a slave or a paid worker?
Agora, uma questão paralela: nos comentários ao post de JM, surgiu uma discussão se deveria ter havido redistribuição da riqueza nessa altura, com uns a argumentarem que isso iria melhor a situação dos operários da altura, e os blasfemos a dizerem que isso iria reduzir o crescimento económico.
Independentemente do lado que tomemos nessa disputa (eu tendo mais para os primeiros), há um detalhe que está a ser esquecido: nos EUA do século XIX havia redistribuição da riqueza - redistribuição dos pobres para os ricos.
Como assim? Nos EUA do século XIX, várias administrações seguiram politicas protecionistas (essas politicas intensificaram-se após a guerra, mas já haviam antes) - a questão das "tarifas" era talvez a segunda questão mais debatida na altura (a par com a escravatura). Ora, num pais com escassez relativa de capital, uma politica protecionista faz subir a rentabilidade do capital em relação à dos outros factores de produção, como o trabalho ou a terra. Assim, esse protecionismo - à época chamado "sistema americano" - significava uma redistribuição da riqueza dos agricultores e operários para os industriais. Aliás, isso via-se nos alinhamentos partidários da época: as classes baixas (e também os latifundiários esclavagistas) apoiavam o (então) livre-cambista Partido Democrata, enquanto que industriais, banqueiros e grandes comerciantes apoiavam os partidos protecionistas (Federalistas, Whigs e Republicanos).
8 comments:
gosto do estilo da fernanda cancio.
a fernanda cancio chegou ao ponto onde eu queria chegar com a questão que coloquei sobre a escravatura, nomeadamente a questão da escravatura e o capitalismo selvagem.
de resto, o jm engoliu em seco.
não foi marx que escreveu uma carta em tom de gozo a defender a escravatura e dando exactamente o exemplo dos eua?
alguns até a usam para argumentar que ele era racista.
««Acho que, com esta, o tiro saiu-lhe pela culatra: o facto de o nivel de exploração do escravo ser baixo só reforça a tese de Fernanda Câncio de que os operários eram mais explorados que os escravos.»»
A tese da fernanda não é que os operários eram mais explorados que os escravos, mas que o capitalismo é por natureza explorador.
Ora, dado que os escravos não eram explorados, o facto de os trabalhadores terem condições economicas piores que os escravos não prova nada.
A lógica correcta é:
Os escravos são muito explorados, os trabalhadores recebem menos que os escravos, logo os trabalhadores são muito explorados (supondo que têm a mesma produtividade, o que não é certo), logo o capitalismo é explorador.
Se os escravos são pouco explorados, o facto de ganharem mais que os trabalhadores não prova nada.
««pergunta como "é que o operário do início do século XIX poderia ter o nível de vida do escravo sul-carolinês do séc XIX"»»
Nada disso. O meu argumento é não se pode avaliar as condições de trabalho do século XIX com base nos padrões do século XX. Os trabalhadores do século XIX ganhavam pouco porque a produtividade era baixa.
Já agora, em relação à escravatura:
- salvo intervenção externa, a escravatura manter-se-á enquanto for vantajosa para o Sr. de escravos. Acabará mesmo que seja vantajosa para o escravo.
isto implica que a escravatura teria acabado mais cedo ou mais tarde precisamente por causa dos mecanismos expostos no post. Há um ponto a partir do qual o trabalho escravo rende menos para o empregador que o trabalho livre.
Isso não quer dizer que o trabalho livre seja necessariamente pior. O trabalho livre pode ser mutuamente vantajoso. No exemplo da prostituta, é verdade que elas podem sair mais baratas, mas também ganham mais do que ganhariam se estivessem casadas.
O segredo do capitalismo está no facto de as prostitutas poderem ganhar mais e custar menos. Um verdadeiro milagre.
JM: "O meu argumento é não se pode avaliar as condições de trabalho do século XIX com base nos padrões do século XX."
A única pessoa (à altura em que o seu post foi escrito) que estava a fazer comparações entre o século XIX e o século XX era o JM.
««A única pessoa (à altura em que o seu post foi escrito) que estava a fazer comparações entre o século XIX e o século XX era o JM.»»
Não era. Essa comparação está implícita no post da Fernanda Câncio. A Fernanda baseia o seu julgamento das condições de trabalho no século XIX tomando o século XX como padrão e ignorando que o PIB per capita no século XIX era muitissimo mais baixo. Aquilo a que Fernanda Câncio chama "sistema capitalista selvagem" é uma invetibilidade histórica. Sendo o PIB à época de cerca de 1000 dólares per capita, a Fernanda diria sempre que o sistema é selvagem qualquer que fosse a distribuição de rendimento.
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