Sunday, August 03, 2008

Re: O que é a esquerda

Joaquim Sá Couto cita as opiniões do conservador austriaco Erik von Kuehnelt-Leddihn sobre o que é a esquerda. Vamos lá ver se isso faz algum sentido:

"1. Materialismo: económico, biológico e social."

Confere a 2/3; a esquerda tende a ser materialista no aspecto económico e social; mas em termos biológicos, a esquerda é tudo menos materialista - a posição típica da esquerda é que a nossa natureza biológica não determina (quase) nada, que é tudo "construções sociais" (veja-se a questão das diferenças entre sexos ou raças)

"2. Messianismo de grupos: nação, raça ou classe."

Eu nem percebo bem o que isso quer dizer; na duvida, vou assumir que está certo

"3. Centralização: Destruição da autonomia regional, tradições, etc."

A mim parece-me que isso varia completamente de país para país (e mesmo de época): em França e nos EUA, o centralismo está mais associado à esquerda (e a Vendeé ou os State's Rights à direita); em Espanha ou no Reino Unido, tendem a ser os conservadores os maiores defensores do Estado central. E mesmo isso varia muito no tempo: os jacobitas britânicos e os carlistas espanhóis eram grandes defensores do regionalismo (e hoje em dia, os regionalistas catalães e bascos são maioritariamante de direita, embora entre os "castelhanos" seja a esquerda que mais aceita as suas reivindicações), ; nos EUA, nos anos 60, os S.D.S. também não eram grandes entusiastas do poder centralizado (e, no principio dos EUA, se identificarmos esquerda/direita com a favor/contra a Revolução Francesa, eram os então chamados Republicanos - que deram origem ao actual Partido Democrata - a defender a autonomia dos Estados e os pró-britanicos Federalistas a defender o governo federal); em França, nos anos 70, o revivalismo occitano, bretão, etc., veio sobretudo da esquerda mais ou menos autogestionária (note-se que, no parlamento europeu, grande parte dos partidos regionalistas se sentam no mesmo grupo que os partidos "verdes" - a outra tradição saída do Maio de 1968).

Assim, neste capitulo, acho que não podemos concluir seja o que for.

"4. Totalitarismo: Invasão de todas as esferas da vida por uma doutrina."; este ponto parece igual ao "38. Politização total da vida: turismo, desporto, recreio."

Por estranho que possa parecer, até concordo (embora não lhe chame "totalitarismo") - à esquerda há uma tendência para achar que "tudo é um acto politico"

"5. Força bruta e terror."

A mim parece-me que a direita, pelo menos em teoria, é muito mais adepta do uso da força do que a esquerda; quando há uma "perturbação da ordem pública", a reacção direitista tipica é "chamem a policia de choque" e a reacção esquerdista é "temos que dialogar e tentar perceber as causas profundas do problema"

"6. Partido único."

Salazar, Dolfuss e Franco (governantes que penso EvKL simpatizava) tinham partido único. É verdade que esse partido não se chamava "partido", mas sim "União Nacional", "Frente Patriótica" e "Falange Espanhola Tradicionalista e das JONS", e EvKL chegou a argumentar que isso era uma diferença importante (não ter "partido" no nome), mas eu não consigo perceber qual a importancia disso (e, se é assim, também o MPLA em Angola, a Frelimo em Moçambique, o MLSTP em São Tomé e Principe, etc. também não teriam sido "partidos únicos").

Conclusão: "partido único" não é uma caracteristica especifica da esquerda ou da direita

"7. Completo controlo da educação."

Ambiguo. Por um lado, a maior parte da esquerda tende a defender a educação estatal; por outro a esquerda (ou alguma esquerda) tende também a defender aquelas teorias educativas de que os alunos devem ser deixados à vontade para aprenderem por eles próprios (e, nos EUA, o homeschooling é, em certa medida, uma mistura de esquerdistas "de sandálias e barbas" e de direitistas religiosos), na educação (ou se calhar em tudo) a esquerda e a direita tendem a ter uma relação ambigua face ao Estado e ao Governo - a esquerda defende a escola estatal, e ao mesmo tempo defende que o governo não deve mandar nas escolas (mas sim a "gestão democrática"); já a direita parece-me defender o oposto: escolas privadas, mas forte controlo governamental das que permancerem públicas.

"8. Socialização: como o oposto da individuação."

A mim parece-me que a esquerda (ou uma certa esquerda) até defende muito aquelas ideias de que temos que nos "libertar das convenções sociais" e "descobrir o verdeiro eu" e coisas desse género (com uns pozinhos de "bom-selvagemgismo" à mistura)

"9. Estado Previdência: do berço à cova."

Confere

"10. Militarismo"

A mim parece-me que, pelo menos em teoria, a esquerda tende muitas vezes a ser pacifista, e mesmo quando não o é, tende a ser hostil à instituição militar - ver, p.ex., o texto do então PSR, "O anti-militarismo é pacifico?" (mas também não sei bem o contexto em EvKL diz que a esquerda é militarista, e "militarismo" pode significar muitas coisas)

"11. Ideologia rígida imposta pelo Estado."

Admito que as ditaduras de esquerda são mais dadas a querer impor a sua ideologia do que as de direita (às de direita, costuma-lhes bastar que os subditos não sejam contra a sua ideologia, sem fazerem grande questão que sejam a favor).

"12. Líder carismático (à imagem do monarca)"

Acho que a direita (mesmo excluindo o nazismo e o fascismo, que EvKL coloca na esquerda) gosta muito mais de lideres carismáticos do que a esquerda. Aliás, a teoria da história como fruto da acção dos grandes homens parece-me que normalmente vem da direita (enquanto para a esquerda, a história é fruto das alterações nas estruturas sociais e económicas)

"13. Antiliberalismo: Ódio à liberdade"

A esquerda até costuma apregoar bastante a liberdade (muitas vezes com letra grande). E o direitista liberal Raymond Aron, num texto sobre os estereotipos históricos da esquerda e da direita escreveu "num lado evoca-se a igualdade, a razão, a liberdade; do outro a autoridade, a religião, a familia". EvKL poderá dizer que a esquerda tem ódio a coisas (como a desigualdade económica) que ele acha consequências da liberdade, e que portanto a esquerda será obrigada, para atingir os seus objectivos, a limitar a liberdade. Talvez; mas isso não é "odio à liberdade" (pelo menos, no meu conceito de ódio)

"14. Antitradicionalismo: contra a reacção."

Confere

"15. Ambições expansionistas."

Se isso quer dizer "pretender exportar o seu modelo politico", aceito

"16. Exclusivismo."

Nem percebo o que isso quer dizer

"17. Eliminação dos “corps intermédaires”."

Aceito como certo, mas com reservas (toda as tradiçoes anarquista, cooperativista, etc. defendem bastante uma certa forma de corpos intermédios)

"18. Conformismo dos media: jornais, rádio e televisão."

Do ponto de vista exclusivamente teórico, náo vejo onde a esquerda seja mais (ou menos) defensora do conformismo dos média do que a direita; admito que EvKL queira dizer que, como a esquerda pretende abolir ou limnitar a propriedade privade, isso diminuiria (ounno extremo, acabaria com) o pluralismo dos média

"19. Relativização da propriedade privada."

Confere

"20. Controlo das Religiões."

Realmente, a esquerda é mais dada a usar o Estado contra as religiões; mas, por outro, a direita é mais dada a fechar as religiões em "gaiolas douradas" - dar-lhes privilégios em troca da colaboração com o Estado

"21. O direito ao serviço do Povo (...) ou do partido (...)."

Até certo ponto, confere - realmente a esquerda tende a ver o direito como um instrumento para "o progresso da Humanidade" (ou o que nós consideramos ser o "progresso da Humanidade"). No entanto, não concordo que a primeira das figuras que ele refere seja de esquerda

"22. Ódio das minorias" e "23. Glorificação da maioria"

Uh? Pelo menos a esquerda actual parece o mais defensora das minorias que há.

"24. Glorificação da revolução."

Confere

"25. Plebeianismo: Ódio das elites" e "40. Luta contra a excelência, contra “os privilégios”" e "41. Mobilização total da inveja, no interesse do partido e do Estado"

Não usaria esse termos, mas, no geral, confere

"26. Perseguição aos opositores"

Se nos limitarmos às ditaduras, tanto as de esquerda como as de direita perseguem os opositores (mas é aceito que mais frequente ver uma ditadura de esquerda a preseguir facções esquerdistas rivais do que uma ditadura de direita a perseguir facções direitistas rivais)

"27. Populismo e uniformismo."

Do populismo concordo; quanto ao uniformismo, não (pelas razões expostas nos pontos 22, 23 e 33)

"28. Raízes na Revolução Francesa."

Confere

"29. Referência constante à democracia."

Confere

"30. Monolitismo: um Estado, uma sociedade, um povo."

Não percebo bem ao que EvKL se refere, mas se se refere a uma certa atitude "unitária" (estilo "O povo unido nunca mais será vencido"), aceito como certo

"31. Emocionalismo: através de slogans, poemas, canções, símbolos."

Acho que é exactamente ao contrário - pelo menos em teoria, a esquerda tende a ser racionalista, e a direita é que tende a achar que são factores irracionais, como as emoções e sentimentos, que mantêm a sociedade de pé.

"32. Ritos seculares, em substituição dos religiosos."

Confere

"33. Conformismo como princípio vital."

Seria mais correcto "incoformismo como principio vital": olhe-se para a tendência dos jovens esquerdistas (pelo menos, os de classe média) para adoptarem estilos de vida (ou, pelo menos, atitudes estéticas) deliberadamente excentricas (ainda que sujeitos ao famosos "conformiso do incoformismo"); ou a tendência dos partidos e movimentos de esquerda para se dividirem em correntes rivais por motivos por vezes insignificantes

"34. Incitamento à histeria colectiva."

Se ele quer dizer "incitamento à mobilização das massas populares", confere

"35. Tecnologia ao serviço do poder."

Penso que tanto a esquerda como a direita (pelo menos, as não-anarquistas) querem por a tecnologia ao serviço do poder (no sentido de quererem que o poder esteja equipado com a melhor tecnologia disponivel)

"36. Liberdade: abaixo da cintura"

As drogas são frequentemente consumidas acima da cintura

"37. Tudo pelo Estado, nada contra o Estado"

De certa forma, confere (embora várias tradições de esquerda defendam, já ou a longo prazo, o fim do estado)

"39. Nacionalismo ou internacionalismo, por oposição a patriotismo."

A dialéctica do nacionalismo/patriotismo é um bocado obscura (algumas pessoas chamam nacionalismo/patriotismo ao que outras chamam patriotismo/nacionalismo). Eu diria que a esquerda defende, ou o internacionalismo, ou o "nacionalitarismo" (principio da autodeterminação), por oposição ao imperialismo e ao nacionalismo (entendendo nacionalismo como o principio "o nosso país acima de tudo")

2 comments:

Anonymous said...

Sempre pensei que se deve dar especial atenção à direita porque ela é a consciência critica da esquerda. Das suas falhas e contradições. Infelizmente é um processo que poucas vezes é feito internamente. É pela critica da direita que se vai construir uma esquerda melhor e mais justa. Por esse prisma este texto tem o seu interesse que não seja o de o contradizer ou de o louvar religiosamente como têm feito.
Mas quando alguém se dispuser de tempo e repulsa para escrever algo sobre a "direita" também, e se usar do mesmo estilo merceeiro e generalizações.. não me avisem pf para não perder o meu tempo.

Anonymous said...

está tudo dito.

em relação ao rapaz que escreveu esta definiçao de esquerda, faz me lembrar o puto do cds. nao sei o nome dele por isso trato-o como o "puto do cds".