Monday, September 21, 2009

Irving Kristol, os neoconservadores e a "nova esquerda"

Morreu Irving Kristol, o ex-trotskista/ex-shachtmanista fundador do neo-conservadorismo. Sobre ele o anarco-capitalista Thomas Knapp escreve:
In the end Irving Kristol could rightfully claim to have out-done his bête noire, Stalin, by serving as the gravedigger of not one, but two revolutions.

First he helped lead America's Trotskyites out of the wilderness of the revolutionary communist left and into the Democratic, and then Republican, parties as the "neoconservative" movement.

Later, that movement plunged an ice axe into the skull of whatever residual revolutionary libertarian impulse may have remained alive in American conservatism by the Age of Nixon.
Mas não é exactamente sobre Kristol que quero escrever, mas sim sobre a história de um movimento que começou como uma seita dentro de uma seita e que acabou por ser talvez (por vias indirectas) o mais importante movimento politico dos últimos 50 anos.

No final dos anos 30, pouco depois do movimento trotskista aparecer entrou em crise à volta de uma questão: Trotsky defendia que era a URSS um "Estado operário degenerado" - a posse colectiva dos meios de produção faria dela um "Estado operário", mas era "degenerado" devido ao Estado e à economia não serem geridos democraticamente pelos trabalhadores mas pela burocracia estatal e partidária; a essa posição opuseram-se, entre outros, Bruno Rizzi e James Burnham, que consideravam que não havia nada de "Estado operário" na URSS, já que os burocratas controlavam os meios de produção e decidiam o que fazer com o produto social, logo seriam os verdadeiros proprietários da economia (sobre esta polémica, ver este post). Assim, para estes, a URSS seria um regime "colectivista burocrático". Inclusivamente, Rizzi e Burnham consideravam que a URSS, os regimes fascistas e o New Deal de Roosevelt eram todos parte do mesmo fenómeno - a substituição dos capitalistas pelos gestores não-proprietários (tanto públicos como privados) como classe dominante da economia.

A teoria do "colectivismo burocrático" chegou a ter expressão literária, nos romances de George Orwell "O Triunfo dos Porcos" e "1984" (neste último, há um livro dentro do livro, nomeado exactamente "O Livro", modelado a partir d'A Revolução Traída de Trotsky, mas expondo a tese que a "Oceania" - e também a "Eurasia" e a "Estasia" - seria "colectivista oligárquica").

Em termos práticos, a grande diferença era o que fazer face a uma guerra entre a URSS e um pais "imperialista" - Trotsky defendia que se devia apoiar a URSS, já que, apesar de tudo, ainda era um "Estado operário". Pelo contrário, Burnham e o dirigente do Socialist Workers Party norte-americano Max Shachtman consideravam que não, porque já não havia nada de "progressista" na URSS "colectivista burocrática".

Em Novembro de 1939 a URSS invade a Finlândia e rebenta um debate dentro do SWP basicamente, sobre se a URSS é a "boa" ou a "má" no conflito (isto é uma visão simplista, mas na prática a discussão era esta). Em Abril de 1940 o SWP adopta a posição de Trotsky e do lider do partido James P. Cannon ("defesa da URSS") e a facção Shachtman-Burnham cinde, criando o Workers Party. No mês seguinte, Burnham abandona o WP e o marxismo, vindo anos mais tarde a acabar na conservadora National Review (entrando numa área que talvez o Carlos Novais domine melhor, parece-me que a atitude face a Burnham é uma das poucas clivagens dentro da "direita paleo" dos EUA, com os paleoconservadores a admirá-lo e os paleolibertários a considerá-lo o primeiro neoconservador).

O Workers Party de Shachtman (a que Irving Kristol este ligado durante uns tempos) adoptou, como seria de esperar, a teoria que a URSS (e os regimes similares surgidos após a II Guerra Mundial) era "colectivista burocrática" (embora uma facção argumentasse que era "capitalista de estado"; essa facção - dirigida por C.L.R. James e Raya Dunayevskaya - não teve grande importância nos EUA mas influenciou bastante o grupo francês Socialisme ou Barbarie, que por sua vez influenciou um grupo de estudantes meio marxistas, meio anarquistas dinamizado pelos irmãos Cohn-Bendit).

Em 1949, o WP tornou-se a Independent Socialist League e a dada altura aderiu ao Partido Socialista (uma pequena facção recusou a adesão e, após umas quantas cisões, deu origem à International Socialist Organization, que suponho seja o principal grupo de extrema-esquerda nos EUA actualmente). Dentro do Partido Socialista, o que sobrou da ISL passou a ser a maior defensora da cooperação/integração com o Partido Democrata (e, em larga medida, tomaram o controle do partido). Entretanto, os shachtmanistas tomaram também o controle da "League for Industrial Democracy"

Nos anos 60 a guerra do Vietnam e todo o espírito do tempo faz o movimento schachtmanista tomar caminhos à partida inesperados.

As primeiras divisões começam dentro da "League for Industrial Democracy" - em 1962, a sua ala juvenil (os Students for a Democratic Society) entra em choque com a direcção da LID e do movimento schachtmainista, que considera os SDS muito brandos com o comunismo e a URSS (face a essas acusações, um dos dirigentes dos SDS respondeu "a maneira da nossa direcção não ser infiltrada pelos Comunistas não é fazermos proclamações anti-Comunistas, é não termos direcção central!")

Em cisão com as suas organizações-mães os SDS lançam-se, primeiro, na defesa da "democracia participativa" e na tentativa de "auto-organizar" os habitantes dos guetos, tentando criar o que em Portugal chamariamos "Comissões de Moradores"; mais tarde (em larga medida porque a organização dos pobres não deu muito fruto...) na agitação nos campi universitários, nomeadamente contra a guerra do Vietnam. Em pouco tempo os SDS tornam-se uma organização "famosa" e a sua militância explode, criando núcleos em grande parte das universidades norte-americanas e organizando protestos pelas mais diversas razões (contra a guerra, contra a intervenção das autoridades académicas na vida privada dos alunos, pela participação dos alunos na gestão das universidades, etc.), no que foi provavelmente o maior episódio de contestação estudantil na história dos EUA.

Como tudo o que sobe tem que descer, em 1969, pouco depois de terem atingido a sua maior influência, os SDS dividem-se em várias facções, dando origem, quer à organização terrorista Weather Underground, quer a grande parte dos partidos maoístas norte-americanos. Actualmente os dirigentes dos SDS de meados dos anos 60 (antes do movimento ter sido tomado por maoístas e estalinistas) estão a tentar reconstruir a organização, agora chamada Movement for a Democratic Society (como se imagina, muitos desses ex-dirigentes já não são estudantes...), e com uma orientação talvez mais anarquista do que marxista.

Entretanto, Schachtman e os seus apoiantes (agora sem a secção juvenil da LID...) foram-se afastando cada vez mais do resto da esquerda norte-americana face à questão do Vietnam - ao contrário da maior parte das outras organizações não defenderam a retirada das tropas norte-americanas e (agora organizados dentro do Partido Democrata) nas eleições presidenciais de 1972 apoiaram, nas primárias, Henry Jackson (o candidato democrata mais favorável à guerra do Vietnam, e que penso teve o falecido Kristol como assessor, ou algo parecido) e não apoiaram McGovern contra Nixon na eleição nacional (ao mesmo tempo, nos sindicatos deram o seu apoio aos lideres pró-guerra da AFL-CIO).

Após a morte de Schachtman, o seu grupo (agora chamado Social Democrats USA) passou na prática a funcionar como a ala mais à direita do Partido Democrata, pelo menos em questóes de politica externa, com uma linha fortemente anti-URSS e pró-Israel e muitos dos seus militantes e afins acabaram passando para o Partido Republicano (Jeanne Kirkpatrick, Paul Wolfowitz, etc.), onde passaram a ser também a ala mais "dura" em politica externa (pelos vistos, os apoiantes de Schchtman, quando entram numa organização, seja ela o Partido Socialista, o Democrata ou o Republicano, em breve conseguem se tornar a sua ala mais à direita), sendo uma parte importante do movimento neo-conservador.

Pode parecer estranho que os neo-conservadores venham, afinal, da mesma raiz que os estudantes radicais dos anos 60, mas se pesquisarmos bem, há traços comuns - o discurso neo-conservador contra a "elite cultural" ou contra aquilo a que Kristol chamou a "nova classe" (cientistas, sociólogos, educadores, etc.) é basicamente o velho discurso dos dissidentes trotskistas dos anos 30 contra a "classe burocrática", os tais gestores e dirigentes não-proprietários; e o discurso dos SDS e dos estudantes radicais contra a "tecnocracia", pela "democracia participativa", mesmo a atitude cultural contra o "homem da organização", e a desconfiança face à autoridade dos professores e reitores nas universidades, etc. é também esse discurso. No fundo, talvez a grande diferença seja que os neo-conservadores tenham escolhido como inimigo a "classe burocrática" oriunda das ciências sociais e afins (os sociólogos, psicólogos, pedagogos, etc.) e os radicais a "classe burocrática" oriunda das ciências "duras" ou da gestão (tecnocratas, gestores, etc.) - vagamente a esse respeito (das várias "Novas classes") recomendo o texto de Kevin Carson, Liberalism and Social Control: The New Class' Will to Power.

Bem, e qual é o interesse desta conversa toda sobre obscuras cisões dos anos 30 e não tão obscuras cisões dos anos 60? É o seguinte: a esquerda moderna (em todo o mundo ocidental) é muito influenciada (talvez mais nas atitudes culturais do nos programas concretos) pela herança dos movimentos juvenis dos anos 60 (no quais o S.D.S. norte-americano teve um papel muito importante, até pelo exemplo que deu aos colegas europeus); a direita moderna (também em todo o mundo ocidental) foi muito marcada pelas politicas de G. W. Bush, que por sua vez foi muito marcado pelos neo-conservadores; como tanto o neo-conservadorismo como os S.D.S surgiram a partir do complexo Workers Party/Independent Socialist League/League for Industrial Democracy/Social Democrats USA, o que concluimos?

Talvez que todo o pensamento politico moderno do mundo ocidental é devedor de uma discussão ocorrida entre os intelectuais trotskistas de Nova York acerca da invasão soviética da Finlândia...

Adenda:
já agora, recomendo a leitura de Irving Kristol, RIP, de Justin Raimundo, que o CN linka ali em cima

3 comments:

Diogo Almeida said...

Parabéns, excelente texto.

Julgo que concluimos também, com muita pena minha, que o mainstream das chamadas direita e esquerda actuais são defensoras de uma forte intervenção do Estado na Sociedade, precisamente por alguns dos pontos em comum que partilham.

MC said...

Lendo apenas na diagonal, este texto irá merecer melhor atenção.

Ainda no outro dia tive uma discussão com o Rui Albuquerque, precisamente sobre um post que escrevi e que acabava assim:

"Na próxima vez que ouvirem alguém colocar a questão em termos de "esquerda" ou "direita", o que verdadeiramente está implícito na pergunta é: este ou aquele tipo de ditadura. Uma resposta nestes termos implica, antes de qualquer outra coisa, a obliteração da liberdade."

Aqui esta um bom ponto de partida para "esmiuçar"(!) a origem da falta de alternativas a uns e a outros estatistas.

Anonymous said...

Parecem dar muito crédito a essas personagens e às suas querelas ideológicas. Talvez não passem mesmo de meros vigaristas sedentos de poder, como o caso de um deles aqui relatado:

http://www.infoshop.org/myep/schwartz.html