Sunday, September 20, 2009

Pode um socialista ter acções? Pode um liberal frequentar a escola pública?

Sim. Sim.

Imagine-se um socialista que ache que a propriedade privada dos meios de produção leva à exploração dos trabalhadores (ou, numa versão mais soft, que a propriedade privada de "monopólios naturais" leva à exploração dos consumidores). É por ele deixar de ter acções dessas empresas que os trabalhadores (ou os consumidores) deixam de ser explorados? Não.

Ou um liberal que ache que a escola pública é financiada com dinheiro roubado aos contribuintes. É por ele deixar de andar na escola pública que os contribuintes deixam de ser "roubados" para financiar a escola pública? Não.

Ou seja, um socialista não ter acções ou um liberal não andar na escola pública em nada resolve os problemas que os socialistas vêem no capitalismo ou que os liberais vêem no ensino público.

Assim, quando se diz que um socialista não dever ter acções ou um liberal não deve andar na escola pública, isso equivale a dizer que quem não gosta do sistema actual deve suportar todos os defeitos que acham que o sistema tem ("exploração", impostos) mas sem beneficiar das suas vantagens. No fundo, é como alguém marcar um quarto num hotel, reclamar das condições e responderem-lhe "Então vai-te embora - mas pagas à mesma!"

Já agora (talvez não tenha muito a ver com isto, mas talvez tenha), este post do "libertarian" (liberal) Roderick T. Long, Guide for Statists: How to Argue Against Libertarians:

If they advocate the abolition of some government program from which they personally benefit, call them hypocrites.

If they advocate the abolition of some government program from which they don’t personally benefit, call them selfish.


Imagino que esse post possa ser facilmente virado ao contrário num "Guia para liberais: como argumentar contra socialistas":
Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios beneficiam, chamem-lhes de hipócritas

Se eles são contra algum "privilégio" de que eles próprios não beneficiam, chamem-lhes de invejosos

4 comments:

josé manuel faria said...

Cinco estrelas. Um post a mostrar à direita e à esquerda ortodoxa.

fcr said...

Miguel, são dois dilemas diferentes:

Se o socialista benificia directamente e voluntariamente da alegada exploração que critíca, está a ser hipócrita. Ele pode escolher não investir em acções e não financiar de todo essa exploração.

Se o liberal é obrigado a pagar impostos, mais vale benificiar daquilo que já está pago. Porque ele TAMBÉM paga o ensino público. Se os liberais não pagassem impostos como os outros, aí sim, seria hipocrisia. Mas não é o que sucede.

No caso do socialista, será um dilema ético. No caso do liberal, é um dilema económico. A frequência da escola pública por parte de um liberal é muito mais legítima do que a posse de acções por parte de um socialista.

Anonymous said...

Então a direita não é conservadora e a esquerda liberal?

Miguel Madeira said...

"Miguel, são dois dilemas diferentes:

Se o socialista benificia directamente e voluntariamente da alegada exploração que critíca, está a ser hipócrita. Ele pode escolher não investir em acções e não financiar de todo essa exploração.

Se o liberal é obrigado a pagar impostos, mais vale benificiar daquilo que já está pago. Porque ele TAMBÉM paga o ensino público. Se os liberais não pagassem impostos como os outros, aí sim, seria hipocrisia. Mas não é o que sucede."

Não, não são dilemas diferentes - são exactamente idênticos: tal como o liberal paga impostos, o socialista também é vítima da "exploração no trabalho", dos juros "altos", dos preços "de monopólio" cobrados pelos "monopólios", etc. Ao possuir acções está apenas a "recuperar" parte do que o capitalismo "lhe tira".

Por outra palavras, se a Joana Amaral Dias e a Ana Drago pagam o que consideram ser "preços de monopólio" cobrados pela EDP, porque não hão de tentar recuperar parte desse valor sendo accionistas?

Eventualmente poder-se-á argumentar que o socialista deve ter o cuidado de não ter um saldo positivo com o sistema (isto é, dos lucros que tem das suas acções não serem maiores do que o seu contributo para a "mais-valia capitalista"), mas o mesmo pode ser dito de um liberal (que deve tentar não receber mais do Estado do que o que paga em impostos).