Tuesday, October 03, 2006

A pobreza nos EUA

Quando se fala na pobreza nos EUA, é frequente contra-argumentar-se que os pobres norte-americanos seriam considerados "classe média" noutros países do mundo (li alguns textos, p.ex., do Rodrigo Adão Fonseca ou do Luis Pedro que me parecem ir nessa linha).

Se por outros países, nos estivermos a referir ao México, ao Haiti ou a Cuba, deve ser verdade; no entanto, se fizermos a comparação com a Europa (e essas polémicos sobre a pobreza costumam surgir em discussões sobre as virtudes comparadas dos "modelos" norte-americano e europeu), não sei se os "pobres" norte-americanos serão assim tão abonados.

Vamos fazer umas contas - nos EUA, uma familia de 4 pessoas é considerada "pobre" se tiver um rendimento global inferior a 20.000 dólares (refira-se que, para as estatísticas de "pobreza" nos censos, o que conta é o rendimento antes de impostos). O dolár vale cerca de 80 cêntimos de euro, o que pôe o nível de pobreza em 16.000 euros.

Agora, vamos comparar com os preços - o que eu ouço dizer de pessoas que vão aos EUA é que comprar comida na praça ou no supermercado custa o mesmo que em Portugal; ir ao café já é muito mais caro; e que a habitação pode ser muito mais cara, mas varia conforme as regiões (aliás, faz sentido que na habitação ou nos serviços haja diferenças de preço muito maiores entre os paises do que nos produtos que podem ser levados de um lado para outro).

Segundo a CIA, o PNB português avaliado pela taxa de cambio é de 170,3 mil milhões de dólares e avaliado em termos de "paridade de poder de compra" é de 204,4 mil milhões de dólares; ora, se, aos preços portugueses, 170 dólares permitem comprar o equivalente a 204 dólares, isso quer dizer que os preços em Portugal serão cerca de 83% de nos EUA; fazendo a conta ao contrário, podemos concluir que os preços nos EUA serão cerca de 20% mais altos que em Portugal.

Assim, a tal família de 4 pessoas com um rendimento de 16.000 euros corresponderá, a preços portugueses, a um rendimento de 13.330 euros. Assumindo uma familia em que marido e mulher trabalhem, teremos um rendimento mensal de 555 euros. Ora, 555 euros (sobretudo antes de impostos) não é o que, mesmo em Portugal, se considera um rendimento de "classe média" - será, quanto muito, um rendimento de classe média-baixa. Imagine-se agora comparado com os outros países da Europa

Mais uns pontos:

  • os norte-americanos, em média, têm menos férias, trabalham mais em "segundos empregos", etc. do que os europeus, logo, se tomarmos em atenção, não apenas o rendimento, mas o conjunto "rendimento + tempo livre", a superioridade económica norte-americana ainda mais discutível se torna
  • o "pobre europeu" típico (embora talvez não o português) é um desempregado, enquanto o norte-americano é um trabalhador com baixo salário (confesso que não tenho nenhuma estatística que me confirme isto; é apenas o que tenho lido aqui e alí...); sinceramente, não sei dizer qual das situações é a pior - numa análise puramente economicista, para o mesmo nível de rendimento, é "melhor" ser um desempregado a receber um subsidio do que um trabalhador mal pago; num entanto, numa prespectiva e auto-estima e realização pessoal, talvez ser um working poor seja melhor
No entanto, é conveniente fazer umas ressalvas:

  • a pobreza nos EUA talvez seja um fenómeno regional, concentrado no Sul e nos Apalaches; ora, é possível que os preços nessas regiões sejam mais baixos do que no geral, o que deitará por terra o cálculo que eu estive a fazer há uns parágrafos atrás
  • a situação dos pobres nos EUA versus Europa costuma surgir no contexto dos debates "mercado livre" vs. "intervenção estatal"; mas há quem argumente que (nos EUA como noutros países) quer a pobreza de muitos pobres, quer a riqueza de muitos ricos, não terá nascido do "mercado" mas de intervenções estatais (presentes ou passadas)

5 comments:

Anonymous said...

O problema é que "antes de impostos", nos EUA, significa o contrário do que se podia pensar. Os impostos, para estas pessoas, são negativos (o programa chama-se EITC e distribuí biliões de dólares)! Essa família receberia mais 4000 dólares de impostos!

Há ainda outros programas de apoio aos desfavorecidos, claro, que não estão incluídos nesses 20000. A página lincada diz até que esses valores servem para determinar acesso a programas de apoio.

Ademais, a premissa "assumindo uma família em que marido e mulher trabalhem" já é esticar a corda um bocadinho, porque se ambos trabalharem, então o agregado já não ganha tão pouco, visto que 550$/mês é menos do que o ordenado mínimo federal (5.75/hora * 40 horas/semana * 4 semanas/mês = 920 /mês). Não é válido assumir isso. Se não me engano, 550USD/mês é quanto se recebe de segurança social nos EUA por não se fazer nada (embora se tenha de mostrar que se está à procura de emprego). Portanto, só é válido dizer "assumindo que nem pai nem mãe trabalham e vivem da segurança social." Os principais casos nos EUA de pobreza são, no entanto, mães solteiras.

"podemos concluir que os preços nos EUA serão cerca de 120% mais altos que em Portugal."

Julgo que foi erro inocente, mas penso que queria escrever "20% mais altos." O problema dessas comparações é que têm em conta como os preços das casas são tão baixos em Portugal (o que é verdade, visto que a média das rendas de casa é a cerca de 300 euros. Claro que ninguém tem já acesso a isso, mas é a média).

Já agora, a habitação nos EUA varia imenso conforme as localizações, do estupidamente caro nos centros das cidades hip (um apartamento em Manhantan, ou Boston, ou São Francisco tem preços medidos em milhões), ao estupidamente barato em cidades rurais (cidades mais pequenas têm casas gigantescas por tuta e meia). Penso que são extremos que é difícil encontrar na Europa, nem os nossos centros urbanos hip são tão caros (não sei se Londres...), nem o resto é tão barato.

Para o nível mesmo mais baixo da sociedade (peço desculpa por esta hierarquização, mas é tradicional) é claro que mais vale a Europa do que os EUA para uma carreira de toxico-dependente sem-abrigo. Também é melhor ser desempregado de longa duração por cá para quem é isso que quer fazer, mas ao nível do "working poor", já não sei.

Anonymous said...

será que sou o unico que acha estranha a propria definição de working poor? ninguem acha contraditório?

de resto, as realidade está aí o salario minimo não aumenta desde 1996, a classe media tem diminuido e a taxa de pobreza aumentou.

por fim, as conclusões podem ser diferentes, segundo a ideologia. se se dá importancia ao aumento de desigualdades ou não, dos diferentes ritmos de benificios dos ganh0os da economia pelos varios sectores da sociedade etc etc etc. alias o miguel madeira já tinha colocado aqui um texto do "economst view", que para mim é importante.

"é melhor ser desempregado de longa duração por cá"

isto não tem de ser necessariamente mau.

Miguel Madeira said...

"Há ainda outros programas de apoio aos desfavorecidos, claro, que não estão incluídos nesses 20000"

Subsidio de desemprego, segurança social, etc. contam para esse rendimento segundo a definição do Census Bureau (subsidios que não sejam em dinheiro, como senhas de refeição não contam)

"Ademais, a premissa "assumindo uma família em que marido e mulher trabalhem" já é esticar a corda um bocadinho, porque se ambos trabalharem, então o agregado já não ganha tão pouco visto que 550$/mês..."

Eu não estava a falr de "uma familia norte-americana em que ganhem os dois 550 $/mês". Estava a dizer que uma familia pobre norte-americana ganha o equivalente a "uma familia portuguesa em que ganhem os dois 555 €/mês"

"penso que queria escrever «20% mais altos.»"

Sim (ou melhor, queria escrever "os preços nos EUA serão cerca de 120% dos preços em Portugal", para ficar análogo à frase anterior)

João M. Tomas dos Anjos said...

A melhor opinão sobre os pobres nos EUA, escreveu-a Erico Verríssimo, no seu livro A Volta do Gato Preto, que escreveu em 1943, quando viveu nos EUA como professor convidado.- Nos EUA também há pobres como no Brasil, só com um diferença, têm automóvel. Isto em 1943 !

Anonymous said...

2011 - 1943 = 68
Parece que o mundo ficou estático