Sunday, December 07, 2008

Mas afinal, o quen é que a direita queria do Sá Carneiro?

Blasfemos, atlânticos e insurgentes andam entretidos com o Sá Carneiro. Mas não é sobre isso que vou escrever. Vou antes concentrar-me no que Rui Ramos escreveu há uns tempos:

Aqueles que nele se revêem deveriam talvez comemorar outro Novembro, o de 1977, quando Sá Carneiro, ao abandonar a presidência do PSD, iniciou a ruptura com o pacto de transição instituído em Novembro de 1975. Uma ruptura que a morte de Sá Carneiro, a 4 de Dezembro de 1980, impediu fosse totalmente consumada.
Onde é que Rui Ramos pretende chegar com isto? Se se refere ao fim do Conselho da Revolução e constrangimentos afins, tal foi realizado em 1982 (e creio que, de qualquer maneira, tal extinção a prazo já estaria prevista no Pacto MFA-Partidos). Logo imagino que a ruptura a que Rui Ramos se refere tenha a ver com os artigos da Constituição que falavam nas "nacionalizações irreversíveis", da "reforma agrária", da marcha para uma "sociedade sem classes", etc.

Em primeiro lugar, acho que interessante que os liberais, por um lado tão defensores da "democracia limitada", sejam tão críticos da carga ideológica que a Constituição portuguesa tinha (tem?). Afinal, eles também são a favor de uma "Constituição ideológica" (que, por exemplo, garanta a protecção da propriedade privada) - o único problema deles parece-me ser com o conteúdo concreto da "carga ideológica" da Constituição, não com a ideia abstracta de uma Constituição ter "carga ideológica".

Mas não é esse o ponto que me interessa elucidar, mas outro - é que a tal carga ideológica manteve-se em 1982 porque o PS recusou alterá-lo, não havendo portanto os 2/3 necessários para tal. Em que medida a sobrevivência física de Sá Carneiro alteraria isso?

Só vejo um cenário (posso estar errado, mas parece-me o único cenário relativamente lógico) que pudesse explicar o raciocínio de Rui Ramos e dos seus admiradores: em primeiro lugar, eles estão assumindo que, se Sá Carneiro não tivesse morrido, Soares Carneiro teria sido eleito Presidente da República (parece-me um non sequitur, mas é um non sequitur tão usual numa certa área política que vou deixar isso de lado). Depois, com "uma maioria, um governo, um presidente", a AD iria romper a ordem constitucional (tecnicamente, estaríamos em presença de um golpe de estado, variante "auto-golpe") e submeter uma nova constituição a referendo, em vez de ter que obter uma maioria qualificada na A.R. (ou seja, excluir o PS do processo de revisão constitucional).

Assim (se o "sim" ganhasse o referendo) teríamos uma nova Constituição, feita à revelia dos partidos da oposição, que, entre outras coisas, provavelmente conteria uma nova lei eleitoral redutora da proporcionalidade (aquele "atenuem a pulverização partidária" não deixa dúvidas), permitindo à AD manter-se no poder mesmo com a maioria do povo português votando à esquerda, como era usual na altura (porquê? porque, devido às menores diferenças ideológicas, ao peso da história e à maior diferença entre o peso relativo entre os partidos, é muito mais fácil o PSD e o CDS entenderem-se do que o PS e o PCP; logo, um sistema de proporcionalidade reduzida, favorecendo artificialmente o partido/coligação mais votado/a iria favorecer a direita).

Não faço ideia se era isto que Sá Carneiro ou Rui Ramos tinham em mente, mas, se era, parece-me que não seria descabido chamar a isso "golpismo", "demodura" ou (para usar um termo muito popular pelas bandas do atlântico) "democracia iliberal" (é verdade que o regime de 1980, sujeito à tutela de uma junta-militar-com-outro-nome também não era plenamente democrático).

Não que isso desse razão às inscrições de parede de que ainda me lembro - "Queres o fascismo? Então vota AD!"; ainda há uma grande diferença entre isso e "fascismo"(a melhor analogia talvez fosse com a França gaullista dos anos 60).

1 comment:

Unknown said...

É curioso ver muitos dos que protestavam abertamente por a Constituição portuguesa ter carga ideológica, aderirem sem problemas à Constituição Europeia/Tratado de Lisboa que tem uma carga ideológica fortissima embora muito diferente da da antiga Constituição saída do 25 de Abril.