Friday, February 13, 2009

A teoria do "valor-trabalho" - III

Há um equivoco frequente sobre a TVT, nomeadamente na sua versão marxista (e às vezes a própria propaganda marxista alimenta esse equivoco).

O equivoco é julgar que a TVT e/ou o marxismo diz que o capital (no sentido de máquinas, etc.) não contribui para a produção.

Dois exemplos dessa incompreensão:

Exemplo 1:

[aula de economia do 11º ano, em 1990]

Professor -" o marxismo (e a ideologia dos partidos de esquerda em geral) baseia-se na ideia que é o trabalho que queria riqueza, e que os capitalistas exploram os trabalhadores..."

Aluno - "Mas as máquinas também produzem! Foi nisso que o Marx não pensou. Assim as máquinas também são exploradas."

Professor - "Talvez, mas explorar pessoas é diferente de explorar máquinas..."

Aluno - "Não viu aquelo filme d'O Carro Assassino?"

Exemplo 2: uma passagem do livro "Autogestão, um utopia?", do economista liberal Albert Garand, onde ele diz que Marx acreditava no valor trabalho por ter vivido numa época em que o que predominava era a manufactura e o trabalho ainda era pouco mecanizado.

Dizer que Marx ignorava que o uso de máquinas aumentava a produção é um erro crasso (mas mais aceitável num aluno do 11º ano do que num economista com livros publicados); afinal, toda a teoria marxista do colapso do capitalismo "vitima das suas contradições" gira à volta da substituição do trabalho por máquinas (a que Marx chamava "substituição do trabalho vivo por trabalho morto" ou "aumento da composição orgânica do capital").

É aqui que entra a diferença entre valor-de-troca e valor-de-uso: o valor-de-troca é o preço que eu pago, digamos, por uma cópia do browser Firefox; o valor-de-uso é o valor que o Firefox tem para mim, como utilizador (voltando ao Oscar Wilde, poderiamos dizer que o cínico seria quem conhece o valor-de-troca de tudo e não conhece o valor-de-uso de nada?)

Como já disse, a teoria do valor-trabalho não nega que as máquinas produzam valores-de-uso: se uma costureira passar a usar uma máquina de costura, essa máquina vai-lhe permitir produzir mais roupas, que terão valor-de-uso para quem as comprar; ou seja, a costureira passa a produzir maior quantidade de valores-de-uso.

O que a TVT nega é que as máquinas produzam valor-de-troca: segundo a TVT, se todas (ou uma parte significativa) das costureiras passarem a usar uma máquina de costura, o preço das roupas que produzem vai baixar, logo não há um aumento do valor-de-troca produzido (já que o aumento da quantidade é anulado pela redução do preço).

É ai que entra a tese de Marx sobre o "colapso do capitalismo": segundo Marx, cada empresário individual tem interesse em substituir trabalhadores por máquinas, a fim de aumentar os seus lucros individuais; mas essa substituição do trabalho por máquinas tem um efeito diferente para os empresários no seu conjunto: como a mecanização faz reduzir os preços, temos que a acumulação de capital não conduz a um aumento dos lucros globais (com algumas nuances em que não vale a pena entrar), logo a taxa de lucro tende a descer, acabando por levar ao colapso do capitalismo.

O melhor argumento contra este tese parece-me ser o do ex-marxista Cornelius Castoriadis: se a mecanização faz baixar os preços, então também faz baixar os preços das máquinas; assim, mesmo que haja uma acumulação fisica de capital, não há necessariamente um crescimento do valor do capital, logo não há nenhuma razão para a taxa de lucro cair - tal só aconteceria se a produtividade crescesse mais depressa no sector produtor de bens de consumo do que no produtor de bens de equipamento.

Nota 1: isto é uma descrição super-simplificada da TVT e da teoria marxista sobre o colapso do capitalismo

Nota 2: Eu até sou da opinião que há um cenário especifico - que creio não se verificar na prática - em que a substituição do trabalho por máquinas levaria efectivamente ao colapso do capitalismo; um dos próximos posts será sobre isso

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