Tuesday, March 28, 2006

Parados no tempo?

Para Pedro Silva, da Armadilha para ursos conformistas, o "típico militante de esquerda" vive "mentalmente" nos anos 60; em aparente consonância, Sabine escreve "Embora admire muitos activistas da esquerda nos anos 60 do século XX, penso que é tempo de adoptar novas maneiras de pensar e (sobretudo) de agir".

Pois, eu acho que a esquerda actual tem muito pouco de espírito "anos 60", tanto nas formas de pensar como, talvez sobretudo, nas de agir: em larga medida, a esquerda não ficou presa nos anos 60 - regressou aos 50.

Nomeadamente, a esquerda de agora (comparada com a dos "60") regressou muito ao paradigma "estatista/legalista", de acreditar que a "ferramente principal" para mudar a sociedade é o Estado (e, pelo caminho, muita desistiu de tentar melhor a sociedade...)

Por exemplo, quando, em 1964, a Universidade da Califórnia proibiu actividades políticas por parte dos alunos (recorde-se que era a altura do Vietname, do movimento pelos direitos dos negros, etc.), o que é que estes fizeram? Desafiaram as proibições, foram suspensos, enfrentaram a repressão policial convocada pelas autoridades académicas, etc - o chamado "Free Speech Movement" (cujo um dos activistas - Jack Weinberg - inventou a famosa expressão: "não confiem em ninguém com mais de 30 anos"; ou seja, não confiem no que que escrevo). Hoje em dia, a primeira reacção de grande parte da esquerda a uma situação dessas provavelmente seria "precisamos de uma lei que obrigue as universidades a respeitar a liberdade de expressão", em vez de a tentarem conquistar pela sua própria luta.

E se olharmos para o conjunto dos "anos 60", seja nos EUA, na Holanda, em França (e, por maioria de razão, em Portugal), o que os caracterizou foi a tentativa de começar a criar já uma nova sociedade (desde os activistas dos direitos civis nos EUA que boicotavam as leis racistas no Sul até aos estudantes portugueses que organizavam "cursos livres" nas universidades, passando pelas mulheres da classe média que começaram a recusar ser donas-de-casa), em vez de ficar à espera que alguém criasse essa nova sociedade por decreto (como é óbvio, no caso português, isto era reforçado por o Estado vigente ser o "inimigo").

Um simbolo: nos anos 60, fazia-se a apologia do "amor livre" e criticava-se o casamento (um slogan feminista era "o casamento é prostituição permanente; a prostituição é casamento temporário"); agora, luta-se por alargar o direito ao casamento (eu até apoio essa reivindicação, mas não deixa de ser uma evolução significativa).

Mas, além dos métodos (acção directa vs. mudança "por decreto"), também o conteúdo das reivindicações mudou (nem que seja porque o mundo mudou): p.ex., nos anos 60, criticava-se a mentalidade do "homem da organização" e, pelo menos em certos sectores, fazia-se a apologia de uma vida sem trabalho fixo e regular (gênero dedicar-se à pintura e vender os quadros na rua); agora a principal reivindicação é a segurança no emprego (claro que isso é uma consequência da "hierarquia das necessidades": só nos começamos a preocupar com a auto-realização quando o sustento e a segurança estão realizados; quando deixam de estar, começamos é a querer segurança).

Aliás, o chavão preferido da esquerda actual, "neoliberalismo" (a direita usa mais chavões que nós: além desse clássico que é o "politicamente correcto", tem também o "relativismo", o "eduquês", etc.) vai completamente ao arrepio da tradição ideológica "anos 60": na época, o pensamento dominante entre a esquerda (ou, pelo menos, a mais radical) não era propriamente atacar o "capitalismo neo-liberal e desregulado"; era dizer que a economia capitalista só não entrava em colapso devido à intervenção estatal (que impediria as crises económicas) e que a economia mista (hoje defendida com unhas e dentes contra os "neo-liberais") não passava de um instrumento ao serviço da "burguesia".

Diga-se de passagem que essa conversa de "neo-liberalismo" muitas vezes não faz grande sentido: p.ex. há uns tempos, a revista do Bloco de Esquerda chamava ao Katrina "furacão neoliberal", devido aos projectos de reconstrução urbana que iriam expulsar os pobres da cidade. Ora, um megaprojecto de restruturação urbana promovido pelo governo federal é tudo menos "liberal" (com ou sem "neo"). E é discutível se existe realmente algum "neo-liberalismo": há fortes argumentos de que nem sequer Reagan ou Tatcher reduziram o "peso" global do Estado, apenas alteraram as formas de intervenção e os seus destinatários (ou seja, se calhar, os autores dos anos 60 tinham razão e o capitalismo precisa da intervenção estatal para não "estoirar").

Finalmente, o que eu quero dizer com "a esquerda regressou aos anos 50"? Vou explicar: a esquerda dos anos 60 surgiu em larga medida da rejeição dos modelos das esquerdas anteriores - o "socialismo real" no Leste e o "Estado Social" no Ocidente. O argumento era que esses modelos até podiam ter elevado o nível de vida material dos trabalhadores, mas não tinham resolvido o que para eles era o problema principal: os trabalhadores estarem remetidos ao papel de meros executantes dos projectos concebidos por outros (no Ocidente, porque o poder no processo de produção continuava nas mãos dos capitalistas; no Leste porque os capitalistas haviam sido substituidos pelos burocratas estatais).

Assim, a "nova esquerda" dos anos 60 procurou criar um "novo socialismo", assente na "democracia participativa", no "controle operário", na "autogestão", na "acção autónoma das massas", no "poder popular de base", etc. (na verdade, essas ideias não eram tão novas quanto isso: é basicamente o que os anarquistas defendiam desde o século XIX e os comunistas "dissidentes" desde os anos 20). É verdade que alguma dessa esquerda apoiou regimes (como Cuba ou China) que não tinham nada disso, mas, há época, havia uma visão muito confusa desses regimes (tudo o que parecesse diferente da URSS bastava para pôr muita gente de cabeça à roda - p.ex., como Mao mobilizou os estudantes para atacarem os seus opositores dentro do PC, criou-se logo o mito de "Mao está ao lado das massas contra os burocratas"); além disso, muitas facções, como os anarquistas, a Internacional Situacionista, os trotskistas, etc., não cairam nesses disparates (em rigor, quase me arriscaria a dizer que o maoismo só terá começado a ser importante nos anos 70).

Além disso, como já não era uma questão de distribuir a "riqueza" mas sim o poder, a luta de classes foi alargada da luta pobres/ricos para a luta mais ampla dominados/dominadores: passou-se a considerar que, junto ao conflito trabalhador vs. patrão (ou trabalhador vs. gestor estatal), tinhamos também os conflitos entre jovens e adultos (nomeadamente os conflitos filhos-pais e alunos-professores), entre mulheres e homens, das minorias étnicas e sexuais face aos grupos maioritários, etc, e assim nasceram as famosas "causas fracturantes".

Ora, o que a esquerda dos nossos dias faz não é defender o "controle operário" ou a "democracia participativa" (na verdade, hoje em dia, às vezes encontramos mais conversa parecida com essa da boca de gurus da gestão empresarial), é defender o que resta do Estado Social. Quanto as "causas fracturantes" foram em larga medida despojadas da sua componente anti-hierárquica e anti-autoridade.

Ou seja, a esquerda actual, tanto nos meios (intervenção governamental em vez de acção directa) como nos fins (defesa do Estado Social) o que fez foi regressar aos modelos anteriores aos anos 60 - ou seja, está a defender as ideias da esquerda dos anos 50 (a que criou o Estado Social).

Nota final: como qualquer pessoa que clique no meu perfil pode ver, toda esta minha conversa sobre os anos 60 se baseia em informação em segunda mão, já que nasci em 1973.

14 comments:

André Azevedo Alves said...

Miguel,

Este post tem pontos interssantes e outros de que discordo totalmente mas tudo junto assim num post torna-se impossível de comentar. acho que valia a pena tentar fazer posts mais pequenos e concisos com apenas um ou dois argumentos. Fica a sugestão.

Miguel Madeira said...

Realmente, também já tinha notado que os meus posts tendem a ser grandes de mais (sobretudo quando os passo para o blog e vejo que o post é maior que as colunas dos links e mais a dos posts anteriores)

Anonymous said...

mais uma vez, na mouche.

só mais um apontamento, as pessoas dizem que a malta de esquerda tem de "adoptar novas maneiras de pensar", mas o capitalismo ainda não mudou a sua forma de pensar. apenas a sua estrutura e alguma radicalizou-se.

esta coisa de esquerda e direita tem muito que se lhe diga. há imensas facções. no entanto as formas de pensamento estão aí, umas com mais "cor" outras mais "tecnica", mas a natureza e a essencia mantem-se.

sabine said...

Gosto sempre de o ler: os seus textos são longos mas claros.
É interessante criticar o estatismo da esquerda actual, quando essa é uma critica que a direitas (Blasfemeas & Ca.) faz.
Por outro lado o Pedro Silva, falando da sua experiencia suburbana diz que as pessoas já não estao dispostas a aceitar as manifestações, ocupações & etc. E eu mesmo vivendo em Leiria (ok, Leiria é um local conservador desde sempre, portanto não conta) sinto o mesmo. As pessoas estão menos dispostas a isso.
Mesmo em relação a estes protestos contra o CPE em França: houve pessoas que não se cansaram de relembrar os anos 60. Ora, não há nada mais cansativo que isso...

Anonymous said...

manifestações, ocupações e outro tipo de coisas não são só coisas dos anos 60.

por outro lado, quem relembrou os anos 60 pelo protesto ao cpe, não sabe do que está a falar.

Miguel Madeira said...

"É interessante criticar o estatismo da esquerda actual, quando essa é uma critica que a direitas (Blasfemeas & Ca.) faz."

Normalmente, a direita adora o Estado quando este está ao serviço das suas causas (ou seja, tal e qual como a esquerda).

Um exemplo hipotético: imaginemos uma fábrica com um patrão que não autorizasse os trabalhadores a irem à casa de banho. A reacção típica da esquerda é defender que o Estado deve intervir fazendo leis garantindo o direito a ir à casa de banho (como penso que efectivamente há).

Mas agora vamos imaginar que o Estado não intervinha, e os trabalhadores chegavam ao pé do patrão e diziam "nós achamos que temos o direito de ir à casa de banho quando necessitarmos e, mesmo que não nos reconheça esse direito, vamos começar a fazer assim; e, se nos despedir por isso, vamos ignorar esse despedimento e permanecer no nosso local de trabalho". Perante esse acto de insoburnidação, a reacção tipica da direita seria que o Estado deve intervir (p.ex., atravéz da policia de choque) para defender o direito do patrão exercer a sua autoridade na sua empresa.

Ou seja, tanto a esquerda como a direita podem ser chamadas "estatistas", já que ambas defendem que o Estado deve intervir para defender os "direitos legítimos" (apenas discordam acerca de quais são os direitos que o Estado deve defender - "o direito de ir à casa de banho" vs. "o direito do proprietário gerir sem obstáculos a sua empresa")

Miguel Madeira said...

No entanto, com essa aprente semelhança, a Sabine até levanta um ponto curioso: é que, nos EUA, nos anos 60, realmente certos sectores da direita ultra-liberal ("libertarians", em norte-americanês) até tinham grande admiração pela "nova esquerda": veja-se, p.ex., este texto[pdf] de 1965 de Murray Rothbard (um defensor do "anarco-capitalismo", isto é, do liberalismo extremo).

Também na economia, as teses de certos economistas e historiadores esquerdistas que diziam que o New Deal de Roosevelt teria sido, na realidade, apoiado e "encomendado" pelos grandes capitalistas, foram bastante influentes entre certos círculos liberais (um exemplo: este artigo do "libertarian" Joseph Stromberg)

Miguel Madeira said...

"Por outro lado o Pedro Silva, falando da sua experiencia suburbana diz que as pessoas já não estao dispostas a aceitar as manifestações, ocupações & etc. E eu mesmo vivendo em Leiria (...) sinto o mesmo"

quando diz que "as pessoas já não estao dispostas a aceitar as manifestações, etc." quer dizer que as pessoas já não têm paciência para participarem em manifestações, ou que já não têm paciência para aturarem as manifestações dos outros?

Miguel Madeira said...

"ok, Leiria é um local conservador desde sempre, portanto não conta"

Por acaso, se eu me fosse guiar pela altura em que estive mais rodeado por leirienses (é assim que se diz?), que foi quando foi à inspecção para a tropa (tirando eu, nessa leva era tudo gente de Leiria) até poderia ter ficado com a impressão oposta (se não soubesse da tradição da cidade): grande parte dos meus colegas de inspecção era gente de grupos punks (pelos vistos, isso ainda existe...), autores de fanzines, etc. que tinham como principal tema de conversa as suas lutas contra os skins de Almada (também neste caso, se eu não soubesse da tradição da cidade, iria concluir que Almada era terra "reaccionária") - como pode haver uma luta aberta entre jovens de Almada e Leiria é que é mais estranho (afinal, não é exactamente ali ao lado).

Miguel Madeira said...

Já agora, o que é que os leitores acham da ideia de eu tentar partir este post em 3 ou 4 posts separados?

Anonymous said...

"Já agora, o que é que os leitores acham da ideia de eu tentar partir este post em 3 ou 4 posts separados?"

sim, era uma boa ideia.

já agora, estive a ler o primeiro texto em que fala de mercado livre. o mercado livre que os proudhonianos defendem é muito diferente do mercado livre que os anarco-capitalistas defendem.
o autor parece não ter consciencia disso.

sabine said...

«sectores da direita ultra-liberal ("libertarians", em norte-americanês) até tinham grande admiração pela "nova esquerda": veja-se, p.ex., este texto[pdf] de 1965 de Murray Rothbard (um defensor do "anarco-capitalismo", isto é, do liberalismo extremo)». agora não têm porque venceram essas ideias e as superaram.
«já agora, estive a ler o primeiro texto em que fala de mercado livre. o mercado livre que os proudhonianos defendem é muito diferente do mercado livre que os anarco-capitalistas defendem.
o autor parece não ter consciencia disso». Pois... esses inviesamemtos são típicos...

sabine said...

«Por acaso, se eu me fosse guiar pela altura em que estive mais rodeado por leirienses (é assim que se diz?), que foi quando foi à inspecção para a tropa (tirando eu, nessa leva era tudo gente de Leiria) até poderia ter ficado com a impressão oposta (se não soubesse da tradição da cidade)».
Leiria é uma cidade conservadora mas tem muita gende punk, metálica, etc., etc. Leiria é um caso de opostos: por um lado as pessoas parecem muito liberais (no sentidi de darem liberdades aos outros) mas por outro lado são muito provincianas...

sabine said...

Eu gosto dos posts como estao.
Sobre a critica mais recente ao "eduquês" falarei entretanto no meu blogue...