N'O Insurgente, Filipe Faria fala, entre outras coisas, da diferença entre "liberdade negativa" e "positiva":
A liberdade negativa esteve na essência do liberalismo (clássico) até ao princípio do século XX e consiste na liberdade para cada indivíduo agir e decidir a sua vida sem ser coagido por outros, desde que não interfira com as liberdades dos demais (que no caso liberal clássico inclui o direito à vida, liberdade e propriedade).Será que essa distinção é mesmo relevante?
Na viragem do século XIX para o XX, um novo conceito de liberdade foi trazido para o liberalismo: a liberdade positiva. Esta consiste na liberdade para atingir objectivos independentemente da situação real do indivíduo. Por outras palavras, os proponentes da versão positiva da liberdade consideram que um indivíduo só é livre se puder atingir os seus objectivos e para tal precisa de se livrar dos constrangimentos da realidade social onde vive (normalmente materiais e de capacidades físicas/cognitivas).
Vamos imaginar alguns cenários:
1) Alguém numa ilha deserta, sem fontes de água doce, e que, por isso, não pode beber água doce.
Este caso não é muito complicado - o individuo em questão tem liberdade negativa (ninguém o impede de beber água) mas não tem a liberdade positiva de beber água doce (o simples facto de não haver água doce impede-o de atingir o objectivo de beber água doce)
2) Agora, o nosso protagonista está numa ilha habitada, em que até há uma fonte de água doce, mas o governo da ilha não o autoriza a beber água; há homens armados prontos para o prender caso ele beba água sem autorização do governo
Outro caso que penso não ser complicado - aqui a sua liberdade negativa está a ser restringida; e, já agora, a positiva também (penso que, regra geral, uma restrição à liberdade negativa implica sempre uma restrição à positiva, embora o inverso não seja verdadeiro)
3) O protagonista está numa ilha habitada, em que há uma fonte de água doce, mas o dono da fonte não o autoriza a beber água; há homens armados prontos para o prender caso ele beba água sem autorização do proprietário
Aqui, de novo, a liberdade positiva está limitada; mas, e a negativa?
4) O protagonista continua numa ilha habitada (e vai lá ficar até ao fim do post...), em que há uma fonte de água doce; o governo, via concurso público, concessionou a gestão dos recursos hídricos a uma empresa privada por 15 anos. O concessionário não o autoriza a beber água, e, como de costume, temos os tais homens armados...
Será que a liberdade negativa está restringida, ou apenas a positiva?
5) O protagonista não conhece muito bem a língua e a sociedade da ilha; é suficiente para desenrascar, mas não para perceber as nuances sociológicas mais complexas (talvez seja um naufrágo que foi parar a uma ilha perdida da Polinésia, mas que, por ter passados uns meses em Timor, percebe um bocadinho de dialectos malaio-polinésios...). De qualquer forma, ele já percebeu que há uma pessoa importante na ilha que tem poder para autorizar beber ou não na fonte, e não parece autorizá-lo (há guerreiros com catanas envolvidos); mas ainda não percebeu se a palavra que os nativos usam para designar essa pessoa deve ser traduzida por "chefe" ou por "dono do terreno".
[A mesma questão que no cenário anterior]
4 comments:
Acho que seria bom ter feito no próprio texto criticado uma referência para este, para estimular a discussão com o autor este respeito.
Eu concordo com o ponto exposto, mas a confusão maior entre liberdade positiva e negativa parece-me mesmo vir da tributação necessária para manter um sistema que puna quem furte.
Ou seja, quem é perfeitamente capaz de proteger a sua propriedade pelos seus próprios meios, tem de pagar coercivamente, devido à «ditadura das maiorias» por aqueles que são incapazes de o fazer.
E o próprio exército? Não é ele também a manifestação da consagração de uma liberdade positiva defendida por aqueles que o autor considera «liberais clássicos»?
Afinal, quem considera que um exército muito menor é suficiente para garantir a protecção do país é «coagido» por outros a pagar aquilo que estes, colectivamente, consideraram necessário.
Não pagar exército, polícia e tribunais interfere na liberdade dos demais? Só se da mesma forma que não pagar as escolas e hospitais.
E se, não havendo escolaridade obrigatória (para não impôr a «liberdade positiva» da educação), os pais obrigam a criança a trabalhar, compromentendo as oportunidades que terá ao longo da vida, isso não é uma violação da liberdade negativa da criança?
Outra situação interessante é a da liberdade de expressão, essa bandeira liberal que defendo sem reservas. O conceito é simples de entender como consagração de uma liberdade positiva. Mas como liberdade negativa nem por isso, pois tudo aquilo que foi expresso e não agradou a alguém pode ser entendido como uma violação da liberdade do desagradado (que pode sentir-se «atacado» por ver certas ideias defendidas). Defender que a expressão de ideias deve ser livre para arbitrar os conflitos relativos à expressão de ideias só não é arbitrário se considerarmos essa como uma liberdade positiva.
Esta distinção entre liberdades positivas e negativas é tudo menos clara: é uma justificação a posteriori, para aquilo a quem chamam «liberalismo clássico».
Bem, actualmente muitos liberais (como o CN, o Rui Botelho Rodrigues, o Pedro Brás Teixeira, e mesmo alguns "insurgentes") são contra a existência de policia e o exército públicos
Miguel Madeira,
Mas existe sempre o problema dos tribunais, da questão que eu referi sobre liberdadede expressão, da questão que eu referi sobre as crianças, etc..
E o facto de existir essa divergência entre liberais quanto à polícia e exércitos apenas ilustra como o conceito de liberdade positiva e negativa não é nada claro, servindo mais para justificar a posteriori as convicções relativas ao que deve ser público, do que para formar estas convicções.
[quero dizer, o Pedro Bandeira]
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