Filipe Abrantes comentou "[s]ubstitui-se uma ditadura por uma ditadura". Em certo sentido, é certo: em termos estritamente formais, o regime implementado a 25/04/1974 era uma ditadura militar (Fernando Rosas chamou-lhe uma "ditadura militar policêntrica" - i.e., quem mandava era o exército, mas havia vários centros de poder que rivalizavam uns com os outros), que várias vezes usou (com ou sem razão...) da repressão contra opositores, sobretudo da direita (Partido do Progresso, Partido Liberal, PDC...) mas também da esquerda (MRPP, Aliança Operária e Camponesa...; e já em 1976, o Conselho da Revolução tentou suspender os tempos de antena da Liga Comunista Internacionalista); e a actual lei de manifestação que permite situações destas foi aprovada pelo poder do MFA.
Mas por outro lado, a partir de certa altura, o(s) governo(s) não mandava(m) quase nada - de um lado tínhamos as ocupações "selvagens", as faculdades (e liceus) governadas pelas RGAs, o exército onde "primeiro faziam-se plenários e depois cumpriam-se as ordens"; do outro, o PCP a ser expulso do Norte.
E desde o principio que (contra os desejos tanto do PC como da direita - ambos achavam que um "Estado forte" podia vir a dar jeito) que o poder começou a "cair na rua": logo no primeiro dia, a Junta de Salvação Nacional queria manter na cadeia 2 presos da extrema-esquerda que haviam morto um informador; todos os outros presos políticos (com a excepção dos do PCP) recusaram-se a abandonar a prisão, até que foram todos libertados; pouco depois, os ministros comunistas e conservadores aprovam (com a oposição do PS) uma lei de greve restritiva, mas pouco depois eclodem greves em violação dessa lei, etc.
Claro que, quando se chama "ditadura" aos pós-25 de Abril (já agora, convém distinguir os que dizem que "o PREC foi uma ditadura" dos que dizem que "no PREC tentou-se implementar uma ditadura"; são duas coisas diferentes), muitos até estão mais a pensar nesse aspecto de "poder na rua" do que nos poderes formalmente ditatoriais que os orgãos do MFA dispunham, mas na minha opinião, o "poder na rua" é o mais parecido com uma verdadeira democracia (claro que é uma opinião bastante discutível)
De certa forma, acho que se pode dizer que havia 3 poderes rivais durante o PREC e que o processo politico resultava do equilíbrio dinâmico entre eles: o MFA, a Assembleia Constituinte (a partir da sua eleição) e as movimentações populares de base (de moradores, trabalhadores, estudantes, soldados, etc.), ou seja, uma mistura de ditadura militar, democracia representativa e democracia directa. E os blocos politico-militares representavam essa tricotomia (esta palavra existe?): os gonçalvistas e o PCP apoiavam o poder do MFA (até que o MFA os mandou passear), os Nove e o PS (a que se juntou a direita, depois do falhanço das tentativas presidencialistas de Spinola) apoiavam a "democracia parlamentar", e o COPCON/Otelo e a extrema-esquerda o "poder popular de base" (isto não tem nada a ver, mas não deixa de ser uma reflexão interessante).
Já agora, aproveito para fazer a minha critica a uma tendência nas análises "modernas" do PREC para se falar em militares "radicais" e "moderados"; se lermos textos mais antigos, a divisão é feita em três grupos: "otelistas", "gonçalvistas" e "moderados"; "otelistas" e "gonçalvistas" eram facções diferentes, com objectos diferentes - Vasco Gonçalves caiu, em larga medida, pela confluência contra ele entre "otelistas" e "moderados".
Outra questão será se após o 25 de Abril se poderia ter instaurado uma ditadura; se os "moderados" tivessem perdido, o que teríamos tido? Um regime militar pró-soviético (como os que, na mesma altura, se implementaram na Etiópia ou no Benin)? Ou a "democracia de base" da esquerda revolucionária (que, é verdade, nunca se implementou de forma duradoura em lado nenhum, pelo menos nos últimos séculos*)? Acho que é impossível responder, já que tal (a derrota dos "moderados") implicaria que a relação de forças na sociedade portuguesas fosse diferente da que era, e, se estamos a imaginar uma relação de forças diferente da que realmente existiu, podemos imaginar quer uma relação de forças favorável ao PCP/gonçalvistas, quer uma favorável à extrema-esquerda.
Mais um ponto - suspeito que as medidas mais polémicas do pós-25 de Abril (nacionalizações, reforma agrária, descolonização), que efectivamente foram decididas pelo poder do MFA, teriam à mesma ocorrido pela via "democrática-parlamentar": PS e PCP (que tiveram sempre a maioria dos votos até 1987) concordavam com as nacionalizações e a reforma agrária (e, se 1975 se tivesse passado de outra maneira, talvez tivéssemos tido um governo PS/PCP); quanto à descolonização, se tivesse sido feita uma auto-determinação, o resultado teria sido diferente? Não podemos saber (penso que ninguém fez sondagens nas colónias para saber a opinião dos habitantes), mas o exemplo francês dá que pensar: entre 1958 e 1960, realizaram-se referendos nas colónias francesas de África e a independência ganhou em todos (e em pouco tempo cairam no partido único, tal qual como as portuguesas)
Um último ponto - por vezes evoca-se que em 1975 havia mais presos por motivos políticos que em 1973; é verdade, mas é preciso ter em atenção o que eu chamo a "curva de Laffer da repressão política": o número de presos políticos não é medida da regressividade de um regime, já que a partir de um certo nível de repressão as pessoas nem chegam a cometer actos que os levem para a cadeia.
*pelo menos a nível superior ao de uma aldeia (p.ex., penso que até finais do século XIX, muitas aldeias suiças tinham democracia directa - que ainda têm - e alguma propriedade comunitária da terra; mas acho que no século XX não se viu nenhum radical de esquerda apresentar tal como modelo)
Mas por outro lado, a partir de certa altura, o(s) governo(s) não mandava(m) quase nada - de um lado tínhamos as ocupações "selvagens", as faculdades (e liceus) governadas pelas RGAs, o exército onde "primeiro faziam-se plenários e depois cumpriam-se as ordens"; do outro, o PCP a ser expulso do Norte.
E desde o principio que (contra os desejos tanto do PC como da direita - ambos achavam que um "Estado forte" podia vir a dar jeito) que o poder começou a "cair na rua": logo no primeiro dia, a Junta de Salvação Nacional queria manter na cadeia 2 presos da extrema-esquerda que haviam morto um informador; todos os outros presos políticos (com a excepção dos do PCP) recusaram-se a abandonar a prisão, até que foram todos libertados; pouco depois, os ministros comunistas e conservadores aprovam (com a oposição do PS) uma lei de greve restritiva, mas pouco depois eclodem greves em violação dessa lei, etc.
Claro que, quando se chama "ditadura" aos pós-25 de Abril (já agora, convém distinguir os que dizem que "o PREC foi uma ditadura" dos que dizem que "no PREC tentou-se implementar uma ditadura"; são duas coisas diferentes), muitos até estão mais a pensar nesse aspecto de "poder na rua" do que nos poderes formalmente ditatoriais que os orgãos do MFA dispunham, mas na minha opinião, o "poder na rua" é o mais parecido com uma verdadeira democracia (claro que é uma opinião bastante discutível)
De certa forma, acho que se pode dizer que havia 3 poderes rivais durante o PREC e que o processo politico resultava do equilíbrio dinâmico entre eles: o MFA, a Assembleia Constituinte (a partir da sua eleição) e as movimentações populares de base (de moradores, trabalhadores, estudantes, soldados, etc.), ou seja, uma mistura de ditadura militar, democracia representativa e democracia directa. E os blocos politico-militares representavam essa tricotomia (esta palavra existe?): os gonçalvistas e o PCP apoiavam o poder do MFA (até que o MFA os mandou passear), os Nove e o PS (a que se juntou a direita, depois do falhanço das tentativas presidencialistas de Spinola) apoiavam a "democracia parlamentar", e o COPCON/Otelo e a extrema-esquerda o "poder popular de base" (isto não tem nada a ver, mas não deixa de ser uma reflexão interessante).
Já agora, aproveito para fazer a minha critica a uma tendência nas análises "modernas" do PREC para se falar em militares "radicais" e "moderados"; se lermos textos mais antigos, a divisão é feita em três grupos: "otelistas", "gonçalvistas" e "moderados"; "otelistas" e "gonçalvistas" eram facções diferentes, com objectos diferentes - Vasco Gonçalves caiu, em larga medida, pela confluência contra ele entre "otelistas" e "moderados".
Outra questão será se após o 25 de Abril se poderia ter instaurado uma ditadura; se os "moderados" tivessem perdido, o que teríamos tido? Um regime militar pró-soviético (como os que, na mesma altura, se implementaram na Etiópia ou no Benin)? Ou a "democracia de base" da esquerda revolucionária (que, é verdade, nunca se implementou de forma duradoura em lado nenhum, pelo menos nos últimos séculos*)? Acho que é impossível responder, já que tal (a derrota dos "moderados") implicaria que a relação de forças na sociedade portuguesas fosse diferente da que era, e, se estamos a imaginar uma relação de forças diferente da que realmente existiu, podemos imaginar quer uma relação de forças favorável ao PCP/gonçalvistas, quer uma favorável à extrema-esquerda.
Mais um ponto - suspeito que as medidas mais polémicas do pós-25 de Abril (nacionalizações, reforma agrária, descolonização), que efectivamente foram decididas pelo poder do MFA, teriam à mesma ocorrido pela via "democrática-parlamentar": PS e PCP (que tiveram sempre a maioria dos votos até 1987) concordavam com as nacionalizações e a reforma agrária (e, se 1975 se tivesse passado de outra maneira, talvez tivéssemos tido um governo PS/PCP); quanto à descolonização, se tivesse sido feita uma auto-determinação, o resultado teria sido diferente? Não podemos saber (penso que ninguém fez sondagens nas colónias para saber a opinião dos habitantes), mas o exemplo francês dá que pensar: entre 1958 e 1960, realizaram-se referendos nas colónias francesas de África e a independência ganhou em todos (e em pouco tempo cairam no partido único, tal qual como as portuguesas)
Um último ponto - por vezes evoca-se que em 1975 havia mais presos por motivos políticos que em 1973; é verdade, mas é preciso ter em atenção o que eu chamo a "curva de Laffer da repressão política": o número de presos políticos não é medida da regressividade de um regime, já que a partir de um certo nível de repressão as pessoas nem chegam a cometer actos que os levem para a cadeia.
*pelo menos a nível superior ao de uma aldeia (p.ex., penso que até finais do século XIX, muitas aldeias suiças tinham democracia directa - que ainda têm - e alguma propriedade comunitária da terra; mas acho que no século XX não se viu nenhum radical de esquerda apresentar tal como modelo)
1 comment:
Três comentários:
- Sobre a independência das colónias, isso não é um problema em si mesmo. O mal foi o roubo generalizado e legitimado (porque não punido) por ambos os poderes (portugueses e africanos) que lideraram o processo. Pequenos hans mengers poderiam ter surgido na altura como na Africa do Sul de hoje poderão surgir caso a violência contra a propriedade continue a aumentar (o comércio de AK47s está em alta).
- A curva da repressão política é também pelo M.Madeira aplicada ao caso Pinochet (fala aqui o meu lado Insurgente)?
- Allemends: ainda hoje quem vive nessas zonas (na maioria, zonas altas e montanhosas como Uri e Obwald) relata um grande grau de "coesão" e espírito comunitário (forte entreajuda, grande desconfiança face aos estrangeiros e ao investimento estrangeiro pato-bravo, discriminação moral muito conservadora, etc). Os cantões ex-Allemends são normalmente ridicularizados pelos francófonos como sendo pequenos focos atrasados e medievais, sem "cultura" e imorais (surge muito esta crítica quando "exageram" na concorrência fiscal e na autonomia educativa p.ex.).
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