Jim Henley, em The Art of the Possible, cita RadGeek:
Há algum tempo que eu pensava em escrever algo sobre isto (e fiz uma pequena abordagem ao tema neste comentário no Portugal Contemporâneo e nos comentários a este post do CN na Causa Liberal).
Acho que o "liberalismo-conservadorismo" assenta muito nesta confusão, que associa "liberdade" com "ordem social não planeada", mas são duas coisas distintas. Podemos ter:
Ordens espontâneas e voluntárias. Exemplos: a língua e ortografia inglesas; a linguagem SMS; talvez a "lei mercantil".
Neste caso, trata-se de instituições que não são impostas (a maior centro difusor da língua inglesa actualmente é um país que nem sequer tem o inglês - ou outra qualquer - como língua oficial) e que evoluem de forma não-planeada.
Ordens espontâneas e impostas. Exemplos: o mapa da Europa; a "common law" inglesa; a autoridade dos pais sobre os filhos menores.
Estas instituições desenvolveram-se de forma não planeada, mas coerciva: as fronteiras europeias são o resultado de uma série de acidentes históricos, durante séculos e, ao mesmo tempo foram impostas e são mantidas pela força; a "common law" baseia-se nos precedentes (e não num código legal com 500 artigos) e é feita cumprir pela autoridade do Estado; a autoridade paternal também deve ter aparecido de forma espontânea e, em ultima instância, também é mantida pela força (se um menor fugir de casa, a policia pode ir buscá-lo).
Grande parte dos chamados "hábitos bárbaros" - escravatura, canibalismo não-consentido, crimes de honra, excisão feminina, casamentos à força, "direito de pernada" (se alguma vez tiver existido), sacrifício das raparigas da aldeia no vulcão (idem), etc. - pertencem a esta categoria.
E, se considerarmos o Estado como uma instituição espontânea, pertencerá também a esta categoria.
Ordens construidas e voluntárias. Exemplos: os standards da Internet; a terminologia cientifica (grande parte); as regras do futebol federado; o esperanto; moedas locais como o "hour".
Aqui temos normas, instituições, etc. que são criadas de propósito (não emergem por acaso) mas que ninguém (isto é, além das pessoas que as criam voluntariamente) é obrigado a seguir: os standards da net são definidos por organizações como o W3C, mas ninguém é obrigado a usar esses standards; muita terminologia cientifica é decidida por organizações internacionais de cientistas (penso que os anidridos carbónico e sulfúrico não passaram a dióxido de carbono e trióxido de enxofre nem o OH2 passou a H2O por "evolução natural e espontânea", mas porque a sociedade internacional de química assim decidiu), mas acho que essas organizações não têm poder para obrigar terceiros a usar a sua nomenclatura; as regras do futebol são decididas pelas federações, mas ninguém é obrigado a seguir essas regras num jogo na praia; o esperanto é uma língua totalmente construida, mas ninguém é obrigado a usá-la (muito pelo contrário - houve muitas perseguições aos esperantistas); as "moedas locais", LETS e afins (e as suas regras de funcionamento) são criados de forma intencional e planeada, mas o seu uso é voluntário.
Creio que as "ordens construidas voluntárias" tendem a ser mais bem sucedidas em situações em que há economias de rede, isto é, em que cada individuo tem interesse em fazer o mesmo que os outros - usar a mesma terminologia, software compatível, a mesma moeda, etc. (isso não quer dizer que sejam necessariamente bem-sucedidas nessas situações: veja-se o fracasso do esperanto); como há interesse de cada um em fazer o que os outros fazem, as decisões de uma associações voluntária que sejam aceites pela maioria dos envolvidos acabam por ser seguidas por quase toda a gente; e, ao contrário das "ordens espontâneas voluntárias", tem menos problemas de "dependência de caminho" (situações em que grande parte dos indivíduos até quereriam adoptar uma nova regra, mas nenhum faz isso... porque os outros também não fazem).
[Acho que a maior parte dos exemplos de "livre entendimento" dados por Kropotkine n'A Conquista do Pão pertencem a esta categoria]
Ordens construidas e coercivas. Exemplos: papel-moeda estatal; ortografia portuguesa (tanto a de 1911 como a do Acordo Ortográfico)
Aqui temos um plano racionalmente construido e imposto pela força.
Reparo agora que gastei muito mais espaço a expor as ordens "espontânea coerciva" e "construida voluntária" do que as "espontânea voluntária" e "construida coerciva"; possivelmente porque haveria pouco a dizer destas últimas, já que a dicotomia "ordem espontânea voluntária" vs "ordem construida coerciva" já foi discutida "n" vezes, e, de qualquer forma, o objectivo deste post é, exactamente, criticar essa dicotomia (propondo uma tetratomia no seu lugar).
Pois, mas qual é o interesse desta divagação "filosófica"? Além de, pura e simplesmente, me ter apetecido, acho que há uma grande tendência para misturar a questão "espontâneo vs. construido" com a questão "voluntário vs. coercivo"; nomeadamente (limitando-me à blogosfera), dá-me a impressão que nas posições de Luis Pedro Machado sobre o acordo ortográfico, de João Miranda sobre a hora de verão ou do CN (entre muitos) sobre o padrão-ouro há algo dessa tendência para associar "construido" a "coercivo" e "espontâneo" a "livre" (quando, em minha opinião, é tão coercivo o estado impor os "construidos" Acordo Ortográfico, a hora de verão ou o papel-moeda como é/seria impor a ortografia de 1911, uma hora que não mudasse ou o padrão-ouro).
First, the concept ofspontaneous order,as it is employed in libertarian writing, is systematically ambiguous, depending on whether one is usingspontaneousto meannot planned ahead of time,or whether one is using it to meanvoluntary.Thus, the termspontaneous ordermay be used to refer strictly to voluntary orders — that is, forms of social coordination which emerge from the free actions of many different people, as opposed to coordination that arises from some people being forced to do what other people tell them to do. Or it may be used to refer to undesigned orders — that is, forms of social coordination which emerges from the actions of many different people, who are not acting from a conscious desire to bring about that form of social coordination, as opposed to coordination that people consciously act to bring about. It’s important to see that these two meanings are distinct: a voluntary order may be designed (if everyone is freely choosing to follow a set plan), and an undesigned order may be involuntary (if it emerges as an unintended consequence of coercive actions that were committed in order to achieve a different goal). While Hayek himself was fairly consistent and explicit in usingspontaneous orderto refer to undesigned orders, many libertarian writers since Hayek have used it to mean voluntary orders, or orders that are both voluntary and undesigned, or have simply equivocated between the two different meanings of the term from one statement to the next.
[o post em si de "RadGeek" não me interessa muito - é esta passagem que me desperta a atenção]
Há algum tempo que eu pensava em escrever algo sobre isto (e fiz uma pequena abordagem ao tema neste comentário no Portugal Contemporâneo e nos comentários a este post do CN na Causa Liberal).
Acho que o "liberalismo-conservadorismo" assenta muito nesta confusão, que associa "liberdade" com "ordem social não planeada", mas são duas coisas distintas. Podemos ter:
Ordens espontâneas e voluntárias. Exemplos: a língua e ortografia inglesas; a linguagem SMS; talvez a "lei mercantil".
Neste caso, trata-se de instituições que não são impostas (a maior centro difusor da língua inglesa actualmente é um país que nem sequer tem o inglês - ou outra qualquer - como língua oficial) e que evoluem de forma não-planeada.
Ordens espontâneas e impostas. Exemplos: o mapa da Europa; a "common law" inglesa; a autoridade dos pais sobre os filhos menores.
Estas instituições desenvolveram-se de forma não planeada, mas coerciva: as fronteiras europeias são o resultado de uma série de acidentes históricos, durante séculos e, ao mesmo tempo foram impostas e são mantidas pela força; a "common law" baseia-se nos precedentes (e não num código legal com 500 artigos) e é feita cumprir pela autoridade do Estado; a autoridade paternal também deve ter aparecido de forma espontânea e, em ultima instância, também é mantida pela força (se um menor fugir de casa, a policia pode ir buscá-lo).
Grande parte dos chamados "hábitos bárbaros" - escravatura, canibalismo não-consentido, crimes de honra, excisão feminina, casamentos à força, "direito de pernada" (se alguma vez tiver existido), sacrifício das raparigas da aldeia no vulcão (idem), etc. - pertencem a esta categoria.
E, se considerarmos o Estado como uma instituição espontânea, pertencerá também a esta categoria.
Ordens construidas e voluntárias. Exemplos: os standards da Internet; a terminologia cientifica (grande parte); as regras do futebol federado; o esperanto; moedas locais como o "hour".
Aqui temos normas, instituições, etc. que são criadas de propósito (não emergem por acaso) mas que ninguém (isto é, além das pessoas que as criam voluntariamente) é obrigado a seguir: os standards da net são definidos por organizações como o W3C, mas ninguém é obrigado a usar esses standards; muita terminologia cientifica é decidida por organizações internacionais de cientistas (penso que os anidridos carbónico e sulfúrico não passaram a dióxido de carbono e trióxido de enxofre nem o OH2 passou a H2O por "evolução natural e espontânea", mas porque a sociedade internacional de química assim decidiu), mas acho que essas organizações não têm poder para obrigar terceiros a usar a sua nomenclatura; as regras do futebol são decididas pelas federações, mas ninguém é obrigado a seguir essas regras num jogo na praia; o esperanto é uma língua totalmente construida, mas ninguém é obrigado a usá-la (muito pelo contrário - houve muitas perseguições aos esperantistas); as "moedas locais", LETS e afins (e as suas regras de funcionamento) são criados de forma intencional e planeada, mas o seu uso é voluntário.
Creio que as "ordens construidas voluntárias" tendem a ser mais bem sucedidas em situações em que há economias de rede, isto é, em que cada individuo tem interesse em fazer o mesmo que os outros - usar a mesma terminologia, software compatível, a mesma moeda, etc. (isso não quer dizer que sejam necessariamente bem-sucedidas nessas situações: veja-se o fracasso do esperanto); como há interesse de cada um em fazer o que os outros fazem, as decisões de uma associações voluntária que sejam aceites pela maioria dos envolvidos acabam por ser seguidas por quase toda a gente; e, ao contrário das "ordens espontâneas voluntárias", tem menos problemas de "dependência de caminho" (situações em que grande parte dos indivíduos até quereriam adoptar uma nova regra, mas nenhum faz isso... porque os outros também não fazem).
[Acho que a maior parte dos exemplos de "livre entendimento" dados por Kropotkine n'A Conquista do Pão pertencem a esta categoria]
Ordens construidas e coercivas. Exemplos: papel-moeda estatal; ortografia portuguesa (tanto a de 1911 como a do Acordo Ortográfico)
Aqui temos um plano racionalmente construido e imposto pela força.
Reparo agora que gastei muito mais espaço a expor as ordens "espontânea coerciva" e "construida voluntária" do que as "espontânea voluntária" e "construida coerciva"; possivelmente porque haveria pouco a dizer destas últimas, já que a dicotomia "ordem espontânea voluntária" vs "ordem construida coerciva" já foi discutida "n" vezes, e, de qualquer forma, o objectivo deste post é, exactamente, criticar essa dicotomia (propondo uma tetratomia no seu lugar).
Pois, mas qual é o interesse desta divagação "filosófica"? Além de, pura e simplesmente, me ter apetecido, acho que há uma grande tendência para misturar a questão "espontâneo vs. construido" com a questão "voluntário vs. coercivo"; nomeadamente (limitando-me à blogosfera), dá-me a impressão que nas posições de Luis Pedro Machado sobre o acordo ortográfico, de João Miranda sobre a hora de verão ou do CN (entre muitos) sobre o padrão-ouro há algo dessa tendência para associar "construido" a "coercivo" e "espontâneo" a "livre" (quando, em minha opinião, é tão coercivo o estado impor os "construidos" Acordo Ortográfico, a hora de verão ou o papel-moeda como é/seria impor a ortografia de 1911, uma hora que não mudasse ou o padrão-ouro).
1 comment:
O problema de alguns liberais ditos "liberais-conservadores" ou "liberais clássicos" portugueses, como por exemplo o Rui A. e o João Miranda, é que confundem (quando lhes convem, claro) "ordem espontânea" como "ordem tradicional" e com "ordem livre".
Assim, por exemplo, é costume em Portugal os automobilistas estacionarem em cima do passeio. Ou seja, trata-se de uma "ordem tradicional". Mas, do facto de esta ordem ser tradicional (= costumeira), não se deduz que ela tenha sido adoptada espontaneamente nem livremente. Pelo contrário, trata-se de uma ordem que foi imposta, pela violência e pelo poder da força, pelos automobilistas ao restante da sociedade.
Da mesma forma, era costume, em Portugal e alhures, fumadores fumarem em todo o lado que lhes apetecia. Tratava-se pois de uma ordem tradicional, de um costume, de um hábito. Quer isto dizer que esta ordem tivesse sido aceite de bom grado por todas as partes? Não necessariamente. De facto, tratava-se antes de uma imposição, pela força, dos fumadores à restante população.
Eu tenho para mim que essa "ordem espontânea" dos liberais clássicos é uma conversa da treta, uma construção teórica sem qualquer contrapartida prática. Trata-se de uma construção teórica para justificar uma ordem conservadora e a não-intervenção do Estado. A "ordem espontânea" nada tem de liberal, uma vez que a sociedade tradicional é uma sociedade altamente não-livre e altamente coerciva, como se vê pelos exemplos acima.
Luís Lavoura
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