[Respondendo ao Rui Botelho Rodrigues, com quase seis meses de atraso]
O Miguel diz-nos que «segundo [a teoria Proudhom/Tucker/Carson] os recursos naturais devem ser propriedade (ou um nome parecido) de quem os "ocupa e usa" actualmente (em vez de do ocupante original ou a quem este tenha transferido a propriedade) - a regra de "a terra a quem a trabalha, a mina aos mineiros". Aplicando este raciocínio à propriedade de si mesmo, significaria que eu apenas poderia possuir o meu corpo enquanto eu habitasse o meu corpo, e que a propriedade absentista de corpos alheios seria considerada não-válida»; a mim parece-me que mesmo a dormir a mulher em questão está a "ocupar" o seu corpo (tal como, quando daqui a uns minutos eu for dormir, vou continuar a ocupar a minha casa).»
Como o Miguel bem escreveu, a teoria mutualista fala em «ocupação e uso», sendo ambos formas de acção. E como Mises nos lembra no primeiro parágrafo, da primeira página, do primeiro capítulo, da primeira parte da sua magnum opus «Human action is purposeful behavior. (...)»
Todas as formas de acção são, por definição, conscientes. Ou seja: o «actor» utiliza racionalmente meios para atingir fins determinados pelo uso da Razão, algo totalmente alheio à actividade inconsciente, como por exemplo, o sono. Se é verdade que existe o acto ou a decisão de «dormir», ou seja, a escolha consciente, racional e voluntária de descansar o corpo e a mente, uma vez adormecido o ser humano não está mais na posse total da sua Razão ou do seu corpo: está no domínio do inconsciente, ou seja, da não-acção. Mais importante: o próprio acto ou decisão de dormir inclui o conhecimento de que, durante o sono, existe uma suspensão da Razão e da Acção.
A teoria mutualista, que fundamentalmente confunde (ou aliás, funde) os dois conceitos de «propriedade» e «posse», fala, como o Miguel bem referiu, em ocupação e uso, não apenas em ocupação. Se é certo que é impossível conceber a ocupação total de um corpo humano por outro ser humano, é perfeitamente possível conceber o «uso» de um corpo humano por outro ser humano. Transportado para o exemplo, isto quer dizer que o corpo da pessoa adormecida (e logo, inconsciente e incapaz de «usar o próprio corpo») pode ser usado legitimamente (por exemplo mutilado, violado, morto) por um «usuário» necessariamente consciente e capaz de acção. Tal como um apropriador original de um pedaço de terra decide não habitar ou não usar a sua terra (e segundo a teoria mutualista, perde o direito a esse pedaço de terra para os próximos indivíduos a usar a terra), também um indivíduo que decide pôr o seu corpo em descanso – ou seja: abster-se de usar o próprio corpo – está, segundo os mutualistas, a declarar o seu corpo «sem dono» e a legitimar o uso do próprio corpo por terceiros. Mais do que isso, o primeiro usuário do corpo da pessoa adormecida obterá o direito de excluir a pessoa adormecida do uso do seu próprio corpo, já que a regra da «não-agressão contra justos proprietários» mantém-se no mutualismo. O que muda é a noção de «justiça».
(...)
PS: O facto de o Miguel achar que quando vai dormir a sua casa não fica «desocupada e sem uso» (excluindo talvez a cama) segundo a perspectiva mutualista, quer apenas dizer que o Miguel, como a maior parte dos mutualistas e fellow-travellers, não testa as suas convicções até aos seus limites lógicos.
Porque razão os mutualistas e afins hão de ter que adoptar a definição "miseana" de "uso"? E, ao admitir que quando eu durmo talvez se possa considerar que a cama está "em uso", RBR acaba por aceitar que eu não preciso de estar consciente para estar a usar alguma coisa; bem, talvez o que o RBR queira dizer seja algo como "para mim, a cama não está em uso de maneira nenhuma; mas no máximo ainda poderia admitir que o MM achasse - dentro dos pressupostos absurdos que ele parece defender - que a cama está em uso", mas mesmo que seja assim, não nos esquecemos que a tese do Hoppe é que o acto de defender um sistema de direitos de propriedade diferente do que ele defende é logicamente incoerente. Ora, acreditar que:
a) os direitos de propriedade (ou, pelo menos, os direitos de propriedade sobre recursos naturais) só são legítimos se o proprietários usar/ocupar pessoalmente a propriedade em questão
b) dormir ou mesmo estar em coma é um forma de uso
c) logo, eu sou o proprietário inaliénavel do meu corpo físico (logo posso usá-lo como bem quer e me apetece, p.ex., como instrumento para propagandear as minhas ideias)
até poderá ser estúpido, mas é logicamente coerente - a conclusão c) deriva sem falhas das premissas a) e b).
Já agora, , diga-se que grande parte dos mutualistas só aplica essa regra a recursos naturais, logo o que estaria em causa não seria a propriedade da cama, mas sim do terreno sobre qual a cama assenta.
Mas convém notar que me parece haver diferença importante de natureza entre a teoria Rothbard/Hoppe da propriedade e a teoria Proudhon/Tucker da propriedade: creio que a teoria R/H vê a regra "um recurso natural pertence ao primeiro que o utilizar, ou a quem esta, directa ou indirectamente, a transfira" como a encarnação do "direito natural"; pelo contrário, a teoria P/T vê a regra "um recurso natural pertence a que o utilizar/ocupar" não tanto como o "direito natural" mas simplesmente como um expediente prático para fazer cumprir a regra "cada um tem direito ao fruto do seu trabalho e ninguém tem o direito de se apossar do fruto do trabalho de outro". No fundo, o raciocínio é que, se eu cultivo batatas num terreno, eu tenho que ser "dono" desse terreno como forma de garantir a minha propriedade sobre as batatas; pelo contrário, se eu possuo um terreno, outra pessoa cultiva lá batatas e eu uso o meu direito de propriedade para lhe exigir uma renda, o direito da outra pessoa ao produto do seu trabalho está a ser violado (afinal, as batas são o fruto apenas do trabalho dele; o terreno também foi necessário, mas existiria de qualquer maneira mesmo que eu não existisse).
[Aliás, dá-me a ideia que a teoria lockeana da propriedade, se nas suas conclusões é parecida com a R/H, nos seus pressupostos filosóficos é semelhante à P/T]
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