Rui Botelho Rodrigues em resposta ao meu post sobre o assunto:
Em primeiro lugar, o argumento assume que o progresso técnico-científico, ao permitir maior centralização, é naturalmente inclinado nessa direcção. Tal é simplesmente falso. O progresso tecnológico é, em si, necessariamente neutro. É a ideologia prevalecente que direcciona (para a centralização ou não) os sucessos do progresso tecnológico. O ímpeto ideológico que trouxe a democracia e a centralização é a razão pela qual o progresso tecnológico (o meio) foi usado para os fins democráticos e centralizadores – o meio tecnológico não criou o fim da centralização. Se assumirmos que sim, teríamos de acreditar que cada avanço tecnológico da história humana traz consigo uma equivalente dose de “centralização possível” – o que é historicamente falso (o progresso tecnológico foi acompanhado, em épocas distintas, por centralização tal como descentralização).Bem, realmente o progresso tecnológico não implica forçosamente a centralização; mas o atraso tecnológico (nomeadamente na área dos transportes e comunicações) implica quase forçosamente a descentralização - se demoram meses para o "centro" conseguir comunicar com a periferia e ainda mais tempo para conseguir chegar lá com as suas tropas, o governo centralizado é virtualmente impossível; num exemplo extremo, enquanto ninguém descobrir uma maneira de ultrapassar a teoria de relatividade (e a impossibilidade de viagens acima da velocidade da luz), a Terra e o hipotético Gliese 581 g nunca poderão ter um governo comum (ou sequer constituir uma confederação voluntária de comunidades livres coordenadas por uma assembleia de delegados revogáveis a qualquer instante) - qualquer pedido que o chefe da repartição planetária fizesse ao ministro demoraria pelo menos 40 anos a ser respondido (possivel contra-argumento ao meu argumento: a China tem sido um estado geograficamente grande e fortemente centralizado há pelo menos uns mil anos; possivel contra-contra-argumento: penso que a maioria da população chinesa está concentrada numa zona relativamente pequena da China, e nas zonas mais remotas e menos povoadas o poder era exercido por senhores locais directamente submetidos à pessoa do Imperador e não ao Estado chinês, como o Dalai-lama no Tibete ou os khans mongóis ou turcos).
Em segundo, o progresso científico e tecnológico não favorece a democracia em si (favoreceu a democracia no momento histórico particular que o Miguel refere – em que o status quo maioritariamente monárquico foi ideologicamente substituído pelo sistema maioritariamente republicano e democrático). Igualmente, poderia favorecer exactamente o oposto, dado o que foi escrito acima: o progresso científico é ideologicamente neutro, não cria necessariamente desconfiança perante a tradição ou autoridade – o facto do progresso tecnológico massivo do último século ter coincidido com a desconfiança perante a tradição ou a autoridade (ou pelo menos a autoridade monárquica) é apenas isso: uma coincidência – um alinhamento entre o então presente desenvolvimento tecnológico e o conteúdo ideológico proeminente do momento em questão.
Agora vou alterar ligeiramente o que escrevi - não é tanto o progresso cientifico/técnico que está associado à desconfiança perante a tradição e a autoridade: é a velocidade do progresso cientifico/técnico que está associada à desconfiança perante a tradição e a autoridade; e também não é muito claro aí se temos causa ou apenas correlação - é por cause de estarem constantemente a aparecer novas tecnologias e novas ideias que as pessoas perdem o respeito pelas tradições e elites estabelecidas (nos vários aspectos da vida)? Ou é a pouca deferência pelas tradições e autoridades que favorece o progresso técnico/cientifico? Ou é um terceiro factor que causa ambos?
Outro ponto que se pode argumentar é que a minha ligação entre "falta de confiança na tradição e autoridade" e "democracia" não é forçoso - afinal, porque indivíduos "pouco respeitadores", se não aceitam a autoridade de um rei, da Igreja ou da aristocracia, hão-de aceitar a autoridade dos outros indivíduos (e serem o que alguém chamou "1/10.000.000 de tirano e um escravo por inteiro")? No entanto, creio que a democracia é mais fácil de "vender" a indivíduos "não-deferenciais" que as outras formas de governo (governos monárquicos ou aristocráticos implicam que o individuo aceite que "há alguém que tem mais capacidade para mandar em mim do que eu", enquanto a democracia pode mais facilmente ser apresentado apenas como um mal menor do género "cada um é que devia mandar em si, mas como infelizmente iriam surgir conflitos entre as decisões individuais, precisamos de um meio qualquer de os resolver...").
Um último ponto - de acordo com a minha teoria reformulada, a combinação entre um Estado centralizado e uma sociedade autoritária e hierarquizada provavelmente corresponderia a uma tecnologia evoluída mas estática (um bom exemplo ficcional desta combinação seria o "Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley - este exemplo não é meu: roubei-o a um texto qualquer de Ernest Gellner).
2 comments:
Excelente post. A tecnologia é, quanto a mim, um dos factores mais robustos para explicar sistemas sociais. A partir do momento em que é descoberta, pode ser tratada como um factor tão exógeno como as condições geográficas. [Basicamente, a tecnologia fornece uma explicação "elegante", no sentido em que os físicos utilizam o termo]
Os argumentos são válidos. Ainda não tive tempo de pensá-los a fundo. No entanto continuo a achar que o progresso tecnológico apenas coincidiu com a "era democrática" - e que a democracia, isso sim, cria desconfiança e desrespeito pela autoridade e pela ordem.
um ponto algo à parte: o progresso ciêntífico certamente fomenta desconfiança em relação à religião, dado que vários dogmas religiosos são fatalmente desmentidos pela ciência moderna. mesmo assim, o facto da ciência desmentir certas premissas religiosas não explica o ódio e o fanatismo anti-religioso que por vezes se encontra. a questão ideológica mais uma vez empurra certos aspectos do progresso ciêntífico para uma mundividência ateísta, quando não tem necessariamente de assim ser.
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