Tuesday, June 13, 2006

O anarco-comunismo é absurdo?


"[O] anarco-comunismo é uma forma de pseudo-anarquismo em que se advoga a abolição do Estado e, simultaneamente, do sistema de economia capitalista. Ora, isto é ingénuo (para não dizer completamente absurdo) dado que é impossível remover as estruturas estatais e, ao mesmo tempo, impedir que exista, na sua forma mais natural, o comércio livre."

Em primeiro lugar, informo os leitores que não sou anarquista (a minha posição entre o anarquismo e as versões "antiburocráticas" do marxismo é de agnosticismo, tendo ambos os lados pontos com que concordo).

Mas o ponto é que os anarco-comunistas não pretendem impedir o "comércio livre" per si - o anarquismo reconhece o direito de um individuo não pertencer a nenhuma comuna nem a nenhum "colectivo de trabalhadores" e ir trabalhar por conta própria, relacionando-se com os outros individuos (e comunas, sindicatos, etc.) de forma "mercantil". O anarco-comunismo acha que é melhor os indíviduos associarem-se em "comunas" em vez de trabalharem por conta própria, não que os individuos têm que pertencer a "comunas".

Então, se os anarquistas sociais (de que os anarco-comunistas são apenas uma facção) não querem abolir o "comércio livre", o que é que querem abolir? Resposta: a propriedade! Claro que os individuos continuarão a poder "ter" a "sua" casa, as "suas" ferramentas de trabalho, etc. Não poderão ter é bens que lhes permitam comandar o trabalho dos outros - p.ex., um individuo não poderá possuir uma fábrica (que, em principio, será propriedade da comunidade, tendo os trabalhadores como usufrutuários).

Mas, poder-se-á perguntar, para abolir a "propriedade" não é preciso um "Estado"? Como é que, sem "Estado", se vai impedir quem queira de possuir uma fábrica, uma grande fazenda, ou o que fôr? É que a abolição da propriedade não requer nenhum acto "positivo" - não é necessário que um "Estado" vá confiscar a fábrica ao seu proprietário; é apenas necessário um acto "negativo" - que não haja nenhum "Estado" para fazer respeitar a "propriedade" do "proprietário".

13 comments:

Anonymous said...

ele comete um erro que é comum a toda a gente que não conhece isto a fundo.

só um exemplo, os proudounianos são anticapitalistas e a favor do mercado livre.
como alias todos os anarquistas à face do planeta terra.

um anarquismo que seja capitalista, esse sim, é um pseudo anarquismo.

Pedro Viana said...

Muito bem. Nos anarco-capitalistas, em particular, existe um ângulo cego que lhes permite ser contra o Estado sem reconhecer que é a exitência de Estado que lhes efectivamente garante o direito de propriedade. Podem sempre dizer que preferem milícas privadas para proteger a propriedade, mas suspeito que iriam rapidamente descobrir que o controlo sob a propriedade ficaria mais precário.... até porque há sempre "proprietários" que apreciam imenso a "propriedade" do vizinho...

Em resumo: o Estado não se opõe ao Capitalismo, é ESSENCIAL ao Capitalismo.

Anonymous said...

Há duas coisas que me espantam sempre nos anarquismos não-capitalistas:

1) A diferença entre a posse de propriedade de capital e a propriedade privada. Aqui diria, como o Brian Caplan sobre os austríacos, o que é que há de fundamentalmente diferente entre 2 hectares e 3ha ou 4 ou 10ha? Quando é que vem a diferença? Nos EUA, algumas grandes propriedades (tamanho Baixo Alentejo, digamos) são propriedade de um único agricultor que consegue com a sua família e a máquinas (regadores automáticos, tractores programáveis que andam sozinhos) cultivar sozinho toda aquela extensão.

Fico proibido de alugar a minha enchada, suponho que sim? E se alguém me disser "empresta-me o teu carro para eu ir trabalhar que em troca eu levo-o à revisão" à parte do facto de eu não ter carro, será que isto não é já capitalismo?

Esta diferença entre os dois tipos de propriedade parece fraca, mas é a base do sistema.

Hoje em dia, eu transformo propriedade de uso em propriedade de capital, fazendo uns cliques de rato em que transfiro dinheiro duma conta à ordem, para fundos de investimento ou comprando acções.

Os maiores capitalistas são aliás, a classe média do Ocidente, que em conjunto controla (através de fundos de pensão ou do sistema bancário) a a quota maior das bolsas mundiais. Estas pessoas fazem isso pondo de parte uma percentagem da sua propriedade de uso.

Basicamente:

2) Como é que se impede a economia de mercado de emergir?

Por exemplo, entre os que querem acabar com o dinheiro, como é que se impede a emergência da moeda?

Como é que se impede a emergência dum sistema bancário (ou para-bancário)?

Eu sei a resposta: desrespeito pelos direitos de propriedade e violência. E não me agrada.

Miguel Madeira said...

“Há duas coisas que me espantam sempre nos anarquismos não-capitalistas:”

”1) A diferença entre a posse de propriedade de capital e a propriedade privada. Aqui diria, como o Brian Caplan sobre os austríacos, o que é que há de fundamentalmente diferente entre 2 hectares e 3ha ou 4 ou 10ha? Quando é que vem a diferença?”

A diferença surge no momento em que a posse de terra (nesse exemplo) pelo Luís Pedro ponha outras pessoas na situação de terem que trabalhar para si (ou para outro proprietário) por não terem terra disponível para elas.

Claro que há a questão “Mas como se decide que um indivíduo pode usar 1 ha, ou 2, ou 15? Ou quantas pessoas são necessárias para terem o direito a usar uma fábrica de conservas?”. Por exemplo, se houver várias facções numa dada comunidade, cada qual com a sua teoria de que sistema é o melhor? Idealmente, através de uma acordo negociado entre os interessados (que até pode envolver uma solução do género “a leste da ribeira aplica-se a regra A, a oeste a regra B”, ou então recorreram a um arbitro externo…).

“Fico proibido de alugar a minha enchada, suponho que sim?”

Não, mas o seu cliente não fica obrigado a lhe pagar o aluguer (mas se ele quiser pagar – e até é provável que queira – ninguém o vai impedir).

“Hoje em dia, eu transformo propriedade de uso em propriedade de capital, fazendo uns cliques de rato em que transfiro dinheiro duma conta à ordem, para fundos de investimento ou comprando acções.”

Você não está a transformar “propriedade de uso” em “propriedade de capital” – o televisor não se transforma num pedaço de uma fábrica com um clique de rato.

Anonymous said...

"2) Como é que se impede a economia de mercado de emergir?"

não há nada contra o mercado...

"Por exemplo, entre os que querem acabar com o dinheiro, como é que se impede a emergência da moeda?"

simples, "notas" de compromisso...para alem de que há anarquistas que defendem o uso de moeda.

"Como é que se impede a emergência dum sistema bancário (ou para-bancário)?"

ninguem impede a emergencia, os sistemas bancarios continuarão a existir, mas funconem de forma diferente.
esta forma será mantida, pois será melhor para quem precisa do dinheiro. uns defendem o "juro" fixo outros são contra ele.

"Eu sei a resposta: desrespeito pelos direitos de propriedade e violência. E não me agrada."

a violencia tambem existe hoje e está a cargo do estado.

de resto, não haverá desrespeito pelo direito de propriedade, que continua a existir mas numa base legal diferente.

Miguel Madeira said...

“2) Como é que se impede a economia de mercado de emergir?”

“Por exemplo, entre os que querem acabar com o dinheiro, como é que se impede a emergência da moeda?”

Nenhuma facção anarquista pretende “impedir” a emergência de moeda – os anarco-comunistas (ao contrários dos mutualistas e colectivistas) acham que é melhor não haver moeda, mas não são contra que quem o queira, use moeda.

“Como é que se impede a emergência dum sistema bancário (ou para-bancário)?”

Creio que o que o Luís Pedro está a perguntar é como é que se impede o aparecimento de uma classe de “capitalistas” vivendo de empréstimos a juros (creio que é a única coisa num “sistema bancário” contraditório com os princípios do socialismo anarquista).

Em primeiro lugar, numa sociedade anarquista, ninguém proíbe ninguém de emprestar dinheiro a juros – a única coisa que se passa é que os devedores não têm nenhuma obrigação legal de pagar os juros (mas se, mesmo assim, eles quiserem pagar os juros, é com eles).

Em segundo lugar, a motivação para contrair empréstimos a juros também está bastante diminuída (embora, é verdade, não eliminada) – uma das razões para contrair empréstimos costuma ser a aquisição de bens duradouros, como casas ou equipamentos de trabalho. Ora, como as “comunas”, “sindicatos”, etc. põem esses bens à disposição de quem a eles adira, há menos necessidade de contrair empréstimos para os adquirir (embora também é verdade que quase de certeza que essas associações também hão-de exigir alguma espécie de contribuição dos membros pelo uso desses bens); além disso, como a partir de certa dimensão, os “direitos de propriedade” passam a ser ignorados, também não faz sentido querer adquirir muita coisa – p.ex., ninguém vai, individualmente, pedir um empréstimo para comprar uma fábrica numa sociedade em que o seu título de proprietário da fábrica vai ser ignorado (e daí, há muita gente que compra títulos de barão…)

Miguel Madeira said...

“Eu sei a resposta: desrespeito pelos direitos de propriedade e violência. E não me agrada.”

Como escreveu o agitador, qualquer sistema recorre à violência e desrespeita o que (da perspectiva dos sistemas opostos) são os “direitos de propriedade”.

Imaginemos uma fábrica ocupada pelos trabalhadores. O “patrão” chama a policia ou manda os seus seguranças privados expulsá-los; os trabalhadores organizam uma milícia para resistir.

Quem é que está “usando a violência” e “desrespeitando a propriedade”? Depende de quem, há partida, considerarmos os “legítimos proprietários” da fábrica. Se considerarmos que o “legítimo proprietário” é o patrão (ou ex-patrão), são os trabalhadores que estão usando a violência e desrespeitando a propriedade; se considerarmos que os trabalhadores são os “legítimos proprietários” (ou que a “comunidade” é a “legítima proprietária” e os trabalhadores os “legítimos usufrutuários”), é o patrão/ex-patrão que é o agressor (note-se que não é necessário ser socialista ou comunista para defender tal posição; mesmo alguns liberais defenderam que, em circunstâncias muito especiais, uma ocupação pode ser legítima).

Ainda a esse respeito, veja-se a citação de Kevin Carson no meu post Propriedade, Coacção, etc..

Pedro Viana said...

Excelentes respostas, Miguel Madeira. Os neo-liberais e anarco-capitalistas parecem não (querer) perceber que o direito de propriedade de algo é um conceito relativo, podendo diferentes pessoas argumentar de modo "válido" que esse algo deve ser sua propriedade. O "desrespeito pelos direitos de propriedade" de que o luispedro diz que teria lugar num sistema anarquista existe de maneira muito mais explícita no seu sistema capitalismo, pois o Estado Capitalista reprime violentamente e sistematicamente todos aqueles que exigem o direito de propriedade de algo, menos aquele - o proprietário "legítimo" - que protege, invariavelmente o mais poderoso social e economicamente entre aqueles em contenda.

Anonymous said...

"Um televisor não se transforma em propriedade de capital."

Certo. Mas antes de ter o televisor posso escolher ou (1) comprar um televisor ou (2) investir o mesmo dinheiro. Posso vender o televisor para investir esse dinheiro. Mesmo sem moeda, a questão existe sempre. Muitas micro-empresas são fundadas pelo seguinte método de angariação de capital: o investidor vende o seu carro para ter capital de arranque. O exemplo de emprestar o carro é, claramente, um exemplo de transformação de capital. Um computador pode sofrer o mesmo processo: enquanto for para ler blogues e ver pornografia é propriedade de uso (logo "meu") a partir do momento em que eu o usar para trabalho deixa de o ser.

"Ninguém tem obrigação de pagar juros."

Isto é: ninguém tem o direito de se comprometer a pagar juros. O problema é que a transacção deixa de existir. Se alugando a enchada não recebo nada, é provável que não a alugue. Perco eu e perde o outro.

Além disso, se se defende que o outro pode me prometer um pagamento pela enchada e não tem obrigação de pagar, passamos a uma sociedade em que a palavra não vale nada. É o fim da confiança no outro.

Miguel Madeira said...

"Um computador pode sofrer o mesmo processo: enquanto for para ler blogues e ver pornografia é propriedade de uso (logo "meu") a partir do momento em que eu o usar para trabalho deixa de o ser."

No contexto da teoria anarco-socialista (que é o contexto desta discussão) não há diferença entre essas duas situações - em ambas o comuptador pertence ao que os anarquistas chamam "posse pessoal". A diferença surge, não quando se usa o computador para trabalhar, mas quando se possui os computadores que as outras pessoas utilizam para trabalhar.

""Ninguém tem obrigação de pagar juros.""

"Isto é: ninguém tem o direito de se comprometer a pagar juros."

É uma boa questão - de certa forma (numa versão muito mais soft, claro) faz lembrar outras questões mais famosas, como os "casamentos indossuluveis" ou a "escravatura voluntária" - no fundo é tudo a questão "será que o sistema legal não fazer cumprir certo tipo de contratos é uma restrição da liberdade dos individuos fazerem contratos?"

"Além disso, se se defende que o outro pode me prometer um pagamento pela enchada e não tem obrigação de pagar, passamos a uma sociedade em que a palavra não vale nada. É o fim da confiança no outro"

Não será exactamente o contrário? Isto é, passarmos a uma sociedade em que, para certo tipos de contratos (os que não sejam "legalmente" reconhecidos) a única coisa que vale é mesmo a palavra e a confiança em que o outro vai cumprir o contrato?

Pedro Viana said...

"Além disso, se se defende que o outro pode me prometer um pagamento pela enchada e não tem obrigação de pagar, passamos a uma sociedade em que a palavra não vale nada. É o fim da confiança no outro."

É incrível o modo como pessoas como o luispedro têm uma visão do mundo incoerente sem se aperceberem disso, e depois ainda têm o desplante de acusar outros de tal.

A resposta do Miguel é óbvia: estar confiante de que se vai receber algo de outro não é o mesmo que confiar nesse outro. No primeiro caso essa confiança pode decorrer do facto de se confiar que alguém (ex. o Estado) vai obrigar o outro a entregar o algo em causa. Ter confiança noutra pessoa quer dizer de certo modo quase o oposto: é achar que essa pessoa, sem ser sob coerção, está disposta a cumprir aquilo que prometeu. Numa sociedade sem coerção, a confiança é extremamente importante, e todos terão interesse em cultivá-la. Numa sociedade com coerção a confiança no outro é simplesmente inútil, dado que as pessoas são obrigadas a cumprir "as suas promessas", i.e. tanto me faz que uma promessa me seja feita por um santo ou por um escroque, sei que ambos vão ser obrigados a cumprir.

ludofinal said...

Não existe anarco-comunismo e mesmo assim tem gente querendo insistir. O capitalismo pode viver com e sem estado. O comunismo não. O comunismo precisa 100% do Estado pra se garantir e continuar. A natureza do comunismo é fascista. Logicamente, não me refiro a palavra que vem de comun, comunidade. E sim da ideologia na prática. Ideologia que cria o Estado de Direitos assassino, a qual é conhecida pelo nome de comunismo.

Miguel Madeira said...

ludofinal, acho que este meu post responde a isso

http://ventosueste.blogspot.pt/2007/05/sobre-o-anarquismo-de-esquerda.html