Rui Albuquerque, no Ordem Livre, publicou (ou está publicando, foi só a primeira parte) mais um artigo sobre a relação entre o liberalismo clássico e o anarco-capitalismo - Só se ilude quem têm ilusões.
Diga-se que, embora a crítica seja destinada especificamente ao anarco-capitalismo, penso que o mesmo género de crítica poderia ser feito ao anarquismo tradicional.
O anarquismo, qualquer que seja a sua modalidade, pressupõe uma convicção íntima de que o exercício da coerção não carece de uma agência monopolista dentro de uma unidade territorial para ser exercida em proveito de todos. Mais do que isso, acredita que esse monopólio poderá ser efectivamente evitado nas complexas sociedades dos nossos dias. São, pois então, estas convicções e a sua veracidade que têm de ser demonstradas e comprovadas(...) . Essa demonstração esbarra com várias dificuldades, mas, sobretudo, com três principais. Uma, de ordem lógica, que não consegue explicar como um poder será eficazmente contido por outros que lhe sejam iguais ou semelhantes, sem o emprego da força ou mesmo da violência, o que infelizmente sucede com frequência nas relações internacionais. Uma segunda, de natureza histórica, que é a inexistência de qualquer precedente societário onde não se tenha manifestado um poder político potencialmente aspirante ao monopólio, isto é, à soberania, o mesmo é dizer, um poder que aspira à exclusão de todos os outros. E a terceira, de pura sensatez, que nos diz que um poder é, por definição, uma força em constante crescimento, pelo que não se pode esperar que se auto-contenha ou auto-limiteVaos lé analisar essas objecções uma a uma
Uma, de ordem lógica, que não consegue explicar como um poder será eficazmente contido por outros que lhe sejam iguais ou semelhantes, sem o emprego da força ou mesmo da violência, o que infelizmente sucede com frequência nas relações internacionaisEssa objecção, pelo que conheço do anarco-capitalismo, não faz grande sentido - em lado nenhum (ou quase nenhum - talvez Robert LeFevre seja uma excepção) os anarco-capitalistas dizem que no "seu" sistema não haverá "emprego da força ou mesmo da violência"; a função das famosas "agências de protecção" privadas é exactamente exercer força e violência quando necessário (o que não há é um monopólio do uso da violência); assim, voltando à questão de Rui Albuquerque, o que impede uma "agência de protecção" de abusar do seu poder? É simples, uma "agência de protecção" alternativa, usando, se necessário, a força e a violência.
Aliás, mesmo os ansocs não rejeitam o uso da força e da violência - sim, na literatura anarco-socialista há muita retórica do género "grande parte do crime e da violência são resultado da sociedade hierárquica, capitalista e autoritária e não existirão no socialismo libertário", mas quando aprofundam a questão de como impedir o reestabelecimento de Estados ou como impedir o crime, logo surgem as "associações voluntárias para a protecção mútua e defesa do território" ou as "milicias voluntárias em que todos os membros da comunidade podem participar se assim quiserem"; ou seja, nesse aspecto a diferença face ao anarco-capitalismo acaba por ser mais no "modelo de negócio": enquanto num caso as "agência de protecção" funcionam como empresas comerciais com clientes, no outro funcionam como cooperativas de consumidores com associados (embora este sistema também seja compatível com o anarco-capitalismo).
Ainda uma nota acerca da violência nas relações internacionais - é um lugar-comum dizer algo como "nas relações entre Estados vigora um estado de natureza hobbesiano, em que em última instância o poder assenta na força e na violência"; mas a verdade é que as relações internacionais entre Estados são, por regra, muito mais pacificas do que o que se passa dentro dos Estados: a maioria (esmagadora?) das guerras das últimas décadas (ou séculos) foram guerras civis, não guerras entre Estados diferentes.
Uma segunda, de natureza histórica, que é a inexistência de qualquer precedente societário onde não se tenha manifestado um poder político potencialmente aspirante ao monopólio, isto é, à soberania, o mesmo é dizer, um poder que aspira à exclusão de todos os outrosIsso, por si só, não é uma objecção ao anarquismo - sim, há poderes que aspiram ao monopólio, ou seja, há soberania; e depois? A questão não é se há poderes que aspiram ao monopólio, mas sim se esse monopólio é inevitável (o facto de alguém aspirar a algo não significa que esse algo vá acontecer).
E a terceira, de pura sensatez, que nos diz que um poder é, por definição, uma força em constante crescimento, pelo que não se pode esperar que se auto-contenha ou auto-limiteMas quem é que espera que o poder se auto-contenha ou auto-limite? Os anarquistas não são com certeza (os ancaps esperam que o "poder" se limitados pelas agências de protecção concorrentes; os ansocs pela resistência e acção directa dos indivíduos que esse poder quer submeter). À primeira leitura, este ultimo argumento de RA não parece fazer grande sentido.