Há dias, o Vitor Cunha do Blafémias publicou um texto que, sinceramente, me pareceu um bocado bizarro (ao contrário das reflexões perfeitamente normais que eu costumo publicar aqui).
No clube de futebol local, a equipa de crianças dos 6 aos 9 anos apenas aparenta a idade fora de campo; quando delimitados pelo rectângulo tornam-se mártires voluntários por uma causa que não articulam. Transcendendo o frio, a dor, o cansaço e a sua própria incapacidade para perceberem o jogo, correm com o objectivo único da sublime visão de uma bola a entrar na baliza. Nestas idades é pouco importante a baliza onde o golo ocorre, desde que ocorra. É primário, instintivo, tão bélico como sexual – inerentemente masculino – completamente biológico, completamente individualista. O resultado da equipa é irrelevante: importante é que a criança vença o jogo, bastando para isso um golo mais que qualquer um dos outros, seja em que baliza for, seja de que equipa for. As crianças não querem saber do “bem comum”, não fazem ideia do que isso seja e não é claro o momento em que os adultos de uma dada geração os transformam para assimilarem a dialéctica de comunidade enquanto mantêm o primarismo biológico da individualidade.Não sei se se o Vitor Cunha queria chegar a alguma conclusão mais geral aqui ou se era uma simples comentário sobre o futebol infantil, mas de qualquer maneira, basta pensar num simples situação para todo o seu argumento deixar de fazer sentido - e se, em vez de um jogo de futebol no clube local, com um mister, estivermos a falar de um jogo autorganizado no recreio da escola (nos meus tempos de escola primária, costumava haver jogos de futebol durante o intervalo; imagino que ainda os haja)? Aliás, imagino que a maior parte das crianças da idade 6-9 passem muito mais tempo a jogar no recreio do que em clubes.
O treinador – mister na adoptada nomenclatura anglo-saxónica – torna-se no absolutista de Hobbes, garantido o contrato social através do poder absoluto da punição pela recolha ao banco de suplentes. O resultado expande-se sem que o diferencial da satisfação pelo golo se dilate: golo é golo. No fim vencem todos, mesmo os derrotados, os que marcaram menos ou nenhum golo: venceram o objectivo (goal) de no próximo jogo transcenderem novamente a sinédoque da vida que os espera quando o estatismo os aglutinar.
A própria existência de jogos infantis sem mister deita por terra a tese que é a sua autoridade que obriga as crianças a se sujeitarem ao "bem comum"; claro que há um contra-argumento - é que nos jogos autogestionários continua a haver um mister, um "mister colectivo" constituído pelo resto da equipa, com o seu equivalente a "ficar no banco" ("não jogas mais connosco"); mas o próprio facto de, nesses jogos, as crianças preferirem jogar com uns (normalmente os melhores) em vez de com outros (por regras os mais azelhas) demonstra que, mesmo para as crianças, a equipa é importante - afinal, se cada um se estivesse a lixar para o resultado da equipa e só quisesse marcar os "seus" golos, pouca diferença lhe faria que os seus colegas de equipa jogassem bem ou mal.
Agora uma nota pessoal - entre os 6 e os 9 anos, só me lembre de ter jogado futebol no recreio uma vez; a nossa brincadeira favorita era mesmo andar à pedrada (na primeira e na segunda classe, era a nossa turma contra a outra turma da primeira/segunda classe; na terceira/quarta classe era contra a turma da segunda/terceira - que, embora andassem um ano atrás, eram quase todos mais velhos que nós); mas a dinâmica colectiva de uma batalha de pedras é mais ou menos a mesma que a de um jogo de futebol, logo penso que a minha experiência de vida algo idiosincrática em nada põe em causa o que escrevi acima.
Para falar a verdade, até suspeito que as crianças no escalão 6-aos-9, se alguma coisa, até são mais dadas que o "público em geral" a desenvolverem lealdades a pequenos grupos (por alguma razão isto tem artigo na wikipedia). Mas se quisermos extrapolar daqui para uma reflexão mais geral sobre a natureza humana, suspeito que corremos o risco de chegar à conclusão que os humanos serão institivamente "tribais" e que tanto o individualismo como o colectivismo-universalismo serão algo contranatura (uma conclusão que talvez não agrade nem a esquerdistas nem a liberais...).