Tuesday, October 06, 2020

Somos e fomos todos fascistas? (1)

Parece ser o que Ricardo Dias de Sousa alega neste artigo no Observador, "Agora somos todos fascistas".

A mim parece-me que ele está simplesmente usando "fascismo" quase como uma palavra genérica para dirigismo estatal (ou pelo menos, para dirigismo estatal mantendo a propriedade privada dos meios de produção), o que, a ser assim, se calhar tornaria "fascistas" a maioria das sociedades existentes nos últimos milhares de anos, com um hiato no século XIX e princípios do XX (bem, excluindo, a ter existido, o "modo de produção asiático", já que aí o estado também era suposto ser o proprietário das terras; mas o chamado "MPA" provavelmente nunca foi mais do que a mesma coisa que o feudalismo europeu visto por um prisma "orientalista").

Um aparte (que não tem diretamente a ver com o texto de Ricardo Das de Sousa, mas acho que acaba por ter indiretamente): porque é que, quando se fala de Mussolini, cita-se muito mais vezes o "tudo no estado, nada contra o estado, nada fora do estado" do que o "abaixo o estado em todas as suas formas e encarnações: o estado de ontem, o de hoje e o de amanhã; o estado burguês e o estado socialista" ou "Nós somos liberais em economia mas não somos liberais em política"? Se se dizer que é porque a primeira (de 1925) é posterior à segunda (de 1920) ou à terceira (de 1921), isso não impede muita gente de ir buscar coisas ainda mais antigas (como o programa dos "Fascios" de 1918 ou a sua militância socialista até 1915) para fazer a exegese do fascismo....

O texto de Ricardo Dias de Sousa parece conter duas teses: a primeira é de que a planificação europeia no pós-guerra teria sido, na sua essência, "fascista"; a segunda é que no final dos anos 60 terá aparecido um novo tipo de marxistas, e que na sua rejeição do marxismo ortodoxo e do establishment do pós-guerra, acabar por, à sua maneira, ser também "fascistas".

Sunday, October 04, 2020

Representações

É frequente em eleições legislativas dizer-se "Votem no partido X para Fulano ir para o parlamento, porque é preciso lá alguém da nossa cidade/sub-região/região/etc. para defender os nossos interesses específicos (e ele é o único num lugar potencialmente elegível)".

Mas parece que isso já não vale para outros agregados que não os geográficos.

[Post publicado no Vias de Facto - podem comentar lá]

Friday, October 02, 2020

Consequências não previstas

Uma thread no Twitter com uma série de exemplos:


Tuesday, September 29, 2020

Como se calcula a mortalidade da gripe

O que se conclui logo daqui é que aquelas comparações que frequentemente se fazem entre o número de pessoas que morreram "de Covid" e o número de pessoas que morreram "de gripe" é um bocado comparar alhos com bugalhos; a contagem dos mortos "de gripe" não é uma contagem feita pessoa a pessoa, como com os mortos "de Covid"; é uma estimativa feita no fim do ano, comparando a evolução da mortalidade total e a evolução do número de casos de gripe ao longo do ano.

Programa Nacional de Vigilância da Gripe Relatório da época 2018/2019 (páginas 63-65, PDF):

Durante a época de gripe 2018/2019 o nú- mero de óbitos por todas as causas esteve acima do esperado entre a semana 02/2019 e a semana 7/2019 (Figura 27 e Figura 28) 40. Aplicando um método de regressão cíclica foram construídas linhas de base que correspondem à mortalidade esperada sem o efeito de fatores externos e que permitem estimar os excessos de mortalidade por todas as causas pela diferença entre a mortalidade observada e a linha de base. Este cálculo foi efetuado para a população geral e estratificado por sexo, grupo etário e região de saúde. No total, estimou-se um excesso de 2.844 (IC95%: 2.229 a 3.459) óbitos em relação ao esperado, o que corresponde a uma taxa de 28 óbitos por cada 100.000 habitantes e a um excesso relativo à linha de base de 19 % (IC95%: 17 a 22 %). O excesso de mortalidade atingiu o seu valor máximo na semana 4 de 2019 (excesso relativo de 25 %).

(...)

Durante o período de excesso de mortalidade ocorreram dois eventos que podem explicar este aumento do risco de morrer. Nomeadamente, a epidemia de gripe sazonal cujo período epidémico decorreu entre as semanas 01/2019 e 09/2019, com um pico na semana 03/2019, e períodos com temperaturas mínimas abaixo do normal nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 (Figura 30). Para estimar a mortalidade atribuível à epidemia de gripe e às temperaturas extremas, aplicou-se um modelo de regressão de Poisson de forma a modelar a taxa de mortalidade observada em função do índice Goldstein (taxa de incidência de síndrome gripal multiplicada pela percentagem de casos de síndrome gripal positivos para o vírus da gripe) e das temperaturas extremas, ajustada para a tendência e sazonalidade (Figura 31). Esta metodologia foi desenvolvida no grupo de trabalho FluMOMO 41 do projeto Europeu EuroMOMO 42.

Com base nesta abordagem, e considerando um histórico desde a semana 40/2013 até à semana 20/2019, estimaram-se 3.331 (IC95% 3.115 a 3.552) óbitos atribuíveis à gripe e 397 óbitos (IC95% 315 a 489) atribuíveis às temperaturas extremas.
[Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]

O fascismo como reação ao socialismo

Além de ser a opinião mais que ortodoxa sobre o assunto, é também a tese de um recente paper - War, Socialism and the Rise of Fascism: An Empirical Exploration, por Daron Acemoglu, Giuseppe De Feo, Giacomo De Luca e Gianluca Russo (NBER Working Paper No. 27854):

The recent ascent of right-wing populist movements in many countries has rekindled interest in understanding the causes of the rise of Fascism in inter-war years. In this paper, we argue that there was a strong link between the surge of support for the Socialist Party after World War I (WWI) and the subsequent emergence of Fascism in Italy. We first develop a source of variation in Socialist support across Italian municipalities in the 1919 election based on war casualties from the area. We show that these casualties are unrelated to a battery of political, economic and social variables before the war and had a major impact on Socialist support (partly because the Socialists were the main anti-war political movement). Our main result is that this boost to Socialist support (that is “exogenous” to the prior political leaning of the municipality) led to greater local Fascist activity as measured by local party branches and Fascist political violence (squadrismo), and to significantly larger vote share of the Fascist Party in the 1924 election. We document that the increase in the vote share of the Fascist Party was not at the expense of the Socialist Party and instead came from right-wing parties, thus supporting our interpretation that center-right and right-wing voters coalesced around the Fascist Party because of the “red scare”. We also show that the veterans did not consistently support the Fascist Party and there is no evidence for greater nationalist sentiment in areas with more casualties. We provide evidence that landowner associations and greater presence of local elites played an important role in the rise of Fascism. Finally, we find greater likelihood of Jewish deportations in 1943-45 and lower vote share for Christian Democrats after World War II in areas with greater early Fascist activity.
Como disse, isso é a visão mais que ortodoxa sobre o fascismo, que será uma movimento de reação contra o socialismo - é uma visão que vai desde os marxistas ortodoxos (o fascismo como "ditadura aberta da burguesia") até Ernest Nolte, passando por Ludwing von Mises. Há exceções, como Bruno Rizzi (que considerava tanto o fascismo como o comunismo soviético como exemplos de uma tendência para o gestores não-proprietários substituírem  os capitalistas como a classe dominante) e imagino que tmbém os liberais como Hayek; e semi-exceções como os trotskistas (que consideram que o fascismo começa como uma movimento revolucionário da classe média tanto contra a classe operária como contra o grande capital, mas que só sobe ao poder quando é recuperado pelo grande capital como instrumento de luta contra o socialismo). Será que seria possível fazer também estudos similares ao paper acima para testar essas exceções e semi-exceções?

Monday, September 28, 2020

India e Coreia do Sul (nos anos 60): "capitalistas" ou "socialistas"?

Pseudoerasmus argumenta que a mesma descrição deveria ser aplicada às duas:

A discussão nas respostas ao tweet é interessante, com muita enfase no ponto se, para distinguir "capitalismo" de "socialismo", é relevante qual o objetivo do planeamento estatal e quais as classes que beneficia.

Saturday, September 26, 2020

Dia de Petrov

26 de setembro de 1983 - não sei o que estava a fazer nesse dia, mas provavelmente estaria a brincar com a gata que tínhamos em casa há alguns meses, ou a jogar com a consola Videopac G7000, ou talvez tivesse ido ao Ciclo Preparatório de Portimão ver em que turma tinha ficado, que as aulas estariam quase a começar. Mas enquanto eu (e mais milhões de pessoas por tudo o mundo) vivia tranquilamente a minha vida, acontecimentos potencialmente mais dramáticos se desenrolavam: o conflito Leste-Oeste estava a aquecer e poucas semanas antes a União Soviética havia abatido um avião de passageiros da Coreia do Sul; era neste contexto que o tenente-coronel Stanislav Petrov, estava, a 26/09/1983, responsável pelos radares de uma base militar soviética; a dado momento os radares indicam que cinco misseis dos EUA tinham sido lançados para a URSS - no entanto, o tenente-coronel Petrov achou estranho um ataque norte-americano de cinco mísseis (seria de esperar um ataque total, para destruir a capacidade da URSS retaliar), pelo que assumiu que era um engano e não deu a informação (que eventualmente poderia dar origem a um contra-ataque nuclear soviético) que estaria a ocorrer um ataque dos EUA - dias depois veio a verificar-se que um fenómeno meteorológico tinha criado a ilusão dos supostos cinco mísseis.

Trump quer sabotar as eleições? Duvido muito.

Nos últimos tempos tem-se tornado quase um dogma da fé em certos meios que Trump, caso perca, se estará a preparar para "roubar" as eleições; como disse aqui, eu duvido muito desses cenários.

Atendendo que toda a carreira de Trump, desde pelo menos os anos 80, tem assentando no primado da imagem sobre o conteúdo (hum, será que acidentalmente acabei também por descrever os anos 80 no geral?), eu suspeito que o grande desejo dele não é tanto permanecer na presidência, mas poder dizer (e ter muita gente a acreditar) que é o presidente, e todas essas conversas dele a pôr em causa o processo eleitoral se destinam, não a preparar o terreno para um "autogolpe", mas a preparar o terreno para, se perder, poder passar 4 anos a apresentar-se aos seus convidados em Mar-a-Lago como "o verdadeiro Presidente dos EUA", vítima das conspirações do "deep state" (em vez de ser um "looser" que não conseguiu a reeleição). Até imagino facilmente daqui a uns anos uma gravação dele dizendo "When you’re the President - the real President-, they let you do it. You can do anything. Grab ’em by by the pussy. You can do anything."

O problema aqui é se parte da base Republicana (incluindo as milícias armadas e grande parte do corpo policial) leva o show dele a sério e tenta por sua iniciativa um "contragolpe" contra os "golpistas" no poder.

Já agora, ver este post de Noah Smith no Twitter e respetiva thread, onde ele sugere um cenário parecido (e muita gente acha que é mesmo o cenário mais provável).

 [Post publicado no Vias de Facto; podem comentar lá]