Ora, foi exactamente ao contrário: antes da Guerra de Espanha, Orwell tinha grandes objecções ao socialismo. Veja-se estas passagens de "O Vil Metal", publicado em 1936:
"Gordon e os amigos divertiam-se com a suas «ideias subversivas». Durante um ano inteiro, publicaram um folha mensal (...) denominada Bolshevik (...). Advogava o socialismo, o amor livre, o desmembramento do Império Britânico, a abolição do exército e marinha, e assim sucessivamente (...). Todos os rapazes de dezasseis anos inteligentes são socialistas. Nessa idade, não se descortina o anzol dissimulado no suculento isco" [bold meu]
Mais à frente (já com Gordon Comstock - o protagonista - adulto):
"- É altura de começar a ler Marx, Gordon - disse Ravelston
- Preferia ler Mr. Humphry Ward.
- Mas não vê que assume uma atitude irrazoável? Está sempre a lançar remoques contra o capitalismo e, por outro lado, recusa-se a aceitar a única alternativa posível. Não se podem endireitar as coisas num meio-termo. Ou se aceita o capitalismo ou o socialismo. Não há que fugir disso disto.
- Já disse que não quero perder tempo com o socialismo. A simples ideia provoca-me sono.
- Em que baseia a suas objecções?
- Só existe uma objecção ao socialismo: ninguém o quer.
- Que posição tão absurda!
- Isto é, ninguém que compreenda o seu verdadeiro significado.
- A que significado se refere?
- Bem, a uma espécie de Bravo Novo Mundo, de Aldous Huxley, mas menos divertido. Quatro horas por dia numa fábrica-modelo, a apertar a porca número seis mil e três. Rações servidas em papel-vegetal na cozinha comunal. Caminhadas comunitárias do Lar Marx ao Lar Leninn e regresso. Clínicas para prática livre do aborto em todos os cantos. tudo muito aceitável à sua maneira, claro. Só que nós não o queremos."
Claro que estas frases não são de Orwell, mas da sua criação "Gordon Comstock", mas é legitimo assumir que um autor imprime grande parte do seu próprio pensamento no pensamento do personagem principal (e a parte do anzol é do narrador, não de Gordon).
Agora, umas passagens de "Homenagem à Catalunha", livro publicado após a sua participação na Guerra Civil de Espanha (nas milicias do Partido Operário de Unificação Marxista):
"[A]té essa altura o sistema das milícias permaneceu intacto. o ponto essencial era a igualdade social entre oficiais e soldados. Todos, do general ao soldado raso, recebiam o mesmo soldo, comiam a mesma comida, vestiam a mesma roupa e relacionavam-se em termos de completa igualdade. Se um tipo resolvia dar uma palmada no ombro do general (...) e pedir-lhe um cigarro, podia fazê-lo à vontade, que ninguém estranhava. Teoricamente, pelo menos, cada milícia era uma democracia e não uma hierarquia (...). Claro que não existia perfeita igualdade, mas eu nunca vira nada que mais se lhe assemelhasse ou que me parecesse concebível em tempo de guerra".
"Admito, no entanto, que, à primeira vista, o estado de coisas na frente me horrorizou. como diabo se poderia ganhar uma guerra com um exército daquele tipo? (...) Na prática, o tipo democrático «revolucionário» de disciplina dá melhores resultados do que seria de esperar. num exército de trabalhadores, a disciplina é, teoricamente, voluntária (...), ao passo que a disciplina de um exército burguês (...) se baseia, em última análise, no medo. Nas milícias não se tolerariam nem por um instante as intimidações (...) correntes num exército comum (...). não se castigava imediatamente um homem quando ele se recusava a cumprir uma ordem; primeiro apelava-se para ele em nome da camaradagem. As pessoas cépticas (...) dirão, acto continuo, que tal método jamais pode «dar resultado», mas a verdade é que, bem vistas as coisas, «dá resultado»"
Uns capitulos depois:
"Por isso, quando os meus camaradas mais politizados me diziam (...) que a escolha tinha que se fazer entre a revolução e o fascismo, ria-me deles. De modo geral, aceitava o ponto de vista comunista, que se resumia mais ou menos nos seguinte: «Não podemos falar de revolução enquanto não ganharmos a guerra». E não aceitava o pnto de vista do POUM, que equivalia a dizer: «Temos de seguir para frente [com a revolução], pois de contrário voltaremos para trás». (...) [M]ais tarde, cheguei à conclusão que o POUM tinha razão, ou, pelo menos, tinha mais razão que os comunistas"
E também:
"Eu tinha ido parar, mais ou menos por acaso, à unica comunidade da Europa Ocidental onde a consciência politica e a descrença no capitalismo eram mais normais que o oposto. Ali, em Aragão, econtravamo-nos entre dezenas de milhares de pessoas (...) vivendo todas elas ao mesmo nível e lidando entre si em termos de igualdade. Em teoria, era uma igualdade perfeita, e até mesmo na prática não andava muito longe disso. Em certo sentido, seria verdade dizer que estávamos a ter um antegosto do socialismo (...). A comum divisão de classes também desaparecera (...): ali só estavam os camponeses e nós, e ninguém era patrão de ninguém (...). O efeito que tudo isso teve em mim foi tornar mais real, mais autêntico, o meu desejo de ver o socialismo implantado". [bold meu]
Depois de regressar de Espanha, Orwell (que até então não tinha pertencido a nenhum partido) ingressou no Independent Labour Party (o "partido irmão" do POUM), na altura um partido bastante à esquerda.
Ou seja, não me parece que Orwell se tenha "desiludido" com o socialismo em Espanha (muito pelo contrário). Deslidui-se (se é que alguma vez se chegou a iludir) com o PC, isso sim (nomeadamente, Orwell passou a considerar o PC e a URSS como uma "força contra-revolucionária").
Esse anti-Comunismo(-com-C-grande) foi a inspiração para as suas obras-primas (O Triunfo dos Porcos e 1984), mas não é por um socialista ser anti-URSS que passa a ser um "social-democrata": esses livros são, em larga medida, criticas pela esquerda ao regime de Moscovo. Uma analogia: há muitos liberais que acham que Bush é muito despesista; por acharem isso significam que passaram a ser "liberais-moderados"? Penso que não (muito pelo contrário).