Ainda a respeito disto e disto, quanto é que um casal em que os membros começassem a trabalhar aos 18 anos e se reformassem aos 66 esperando morrer aos 80 deveria ter poupado no momento da reforma?
Vamos supor um modelo super-simplificado, em que os juros são zero (muito próximo da realidade atual), não há inflação; o rendimento da família não cresce ao longo do tempo; não há segurança social; e as pessoas pretendem ter um fluxo de despesa constante ao longo da vida.
Nesse modelo, se as pessoas vão trabalhar 48 anos e viver ainda mais 14 anos depois de se reformarem (ou seja, o trabalho + reforma vai ser de 62 anos), irão gastar por ano 48/62 do seu rendimento anual; por outras palavras, enquanto trabalharem vão poupar 14/62 do seu rendimento. Assim, uma família que tenha um rendimento mensal (depois de contribuições e impostos - ao longo deste post as referências a "rendimento" serão sempre ao rendimento líquido, salvo se dito explicitamente o oposto) de 2.000 euros irá poupar por ano 5.419,35 euros (assumindo 12 meses de rendimento por ano); quando chegar aos 66 anos irá ter acumulado um pouco menos de 260.000 euros. Neste modelo, faria sentido um casal ter uma poupança acumulado de 500.000 euros na altura da reforma se tivessem um rendimento mensal de 3.844 euros (enquanto trabalhavam gastariam cerca de 2.976 euros por mês e poupariam cerca de 868 euros; ao fim de 576 meses de trabalho - 48 anos x 12 meses - teriam acumulado uns 499.968 euros, que iriam gastar ao longo dos 168 meses da reforma, ao ritmo de 2976 euros por mês). Note-se que, se considerarmos que alguém é "rico" a partir dos 500.000 euros, isso quer dizer que um casal será rico a partir do milhão de euros (ainda não se conhecem os pormenores do eventual imposto sobre o património, mas será lógico que, para casais, se divida o valor do património por metade, tal como é feito com o rendimento no IRS, em que um casal com um rendimento de 30.000 euros fica aproximadamente no mesmo escalão que um indivíduo com um rendimento de 15.000 euros), o que será um rendimento mensal de 7.688 euros.
Agora vamos complicar um pouco mais o modelo e assumir que existe segurança social, e que esta paga cerca de metade do que as pessoas recebem enquanto trabalham. Assim, o rendimento total ao longo da vida será de 48*X+14*X/2 (sendo "X" o rendimento anual), pelo que seria de esperar que gastassem por ano 55/62*X, ou seja (48*X+14*X/2)/62. Desta forma, voltando ao tal casal que ganha 2.000 euros por mês irá gastar mensalmente 1.774,00 euros e poupar 226 euros; ao fim de 576 meses (48 anos) de trabalho terá poupado 130.176 euros; durante os 168 meses esperados da reforma irão retirar 774 euros dessa poupança, a que irão juntar os 1000 euros da reforma para continuarem a fazer a sua vida de 1774 euros mensais. Neste modelo, um casal com um rendimento mensal de 7.690 euros iria ter uma poupança de 500.000 euros aos 66 anos (para o milhão, seriam uns 15.375 euros de rendimento mensal).
Poderá argumentar-se que algumas das minhas premissas são irrealistas a longo prazo (juro zero, rendimento igual aos 18 e aos 66 anos) mas penso que mudar essas premissas não deve alterar muito o resultado final, até porque muitos dos efeitos serão ambivantes (p.ex., se os juros forem positivos, pode aumentar o incentivo para poupar, mas também reduzir a necessidade de poupar - como durante a reforma o casal vai ter, não apenas a poupança acumulado, mas também os juros, precisará de acumular menos para manter o seu anterior estilo de vida).
Então onde é que o Ricardo Campelo Magalhães foi buscar a ideia de que um casal com um rendimento mensal de 2.000 euros deveria poupar 500.000 euros? Basicamente, dá-me a ideia que ele assumiu que o casal iria, durante a reforma, fazer despesas equivalentes ao seu rendimento durante a vida ativa (enquanto o meu modelo pressupõe que pretende fazer despesas durante a reforma equivalentes às despesas que fazia durante a vida ativa) - note-se que isso implica gastar mais dinheiro na reforma do que na vida ativa (já que antes tem que se poupar para a reforma). Mais exatamente, um casal que ganhou 2.000 euros por mês durante 48 anos teve que poupar 868 euros por mês, sobrando-lhe 1.131 euros. Durante a reforma poderia gastar 2.900 euros por mês das poupanças acumuladas, e mais os 1.000 euros de pensão - ou seja, durante a reforma iria ter um nível de vida 4 vezes mais elevado do que enquanto trabalhava.
Uma nota final acerca do argumento da inflação ("Se tivermos em conta a inflação, um casal a meio da sua carreira precisará do dobro para manter a sua qualidade de vida, pelo que precisarão de 2.000 euros cada") - mas então assim o que o RCM está a dizer é que quando se reformar, daqui a umas décadas, esse casal precisará de ter uma poupança de 500.000 euros em dinheiro da altura, não a quantia equivalente ao que hoje valem 500.000 euros; hora, creio que o que se está a discutir é se quem tem neste momento 500.000 euros é "rico", não se, em 2036, 500.000 euros (aos preços de 2036) será uma fortuna ou não.