Ainda sobre esta questão, Sandra Maximiano responde a Luís Aguiar-Conraria.
A crítica que ela faz ao exemplo dos doentes cardíacos parece-me fazer sentido, já que, pelo que leio, os incentivos incorporados eram tanto "comportamentais" como "neoclássicos".
No entanto, a respeito de outros pontos:
Por exemplo, os modelos neoclássicos assumem a existência de N agentes racionais, homogéneos nas suas preferências.
Se estou a perceber o que "homogéneos nas suas preferências" quer dizer, há alguma coisa no modelo neoclássico que implique que os "agentes" tenham que ser "homogéneos nas suas preferências"? É que já vi montes de argumentos, feitos em tom neoclássico, que me parecem ter implícito que diferentes indivíduos podem ter diferentes gostos - p.ex., quando se defende a seleção pelo preço dizendo que é "eficiente" porque quem está disposto a pagar mais é quem valoriza mais; a ideia que tenho é que o motivo porque muitos modelos neoclássicos assumem agentes homogéneos não é porque isso seja uma característica inerente ao modelo, mas para facilitar as contas.
Existe uma escola que advoga que os agentes não se comportam de forma neoclássica, por exemplo, têm preferências sociais e morais, mas o resultado das suas decisões não é necessariamente subótimo, sendo por isso racional. Por exemplo, há empresas que têm um comportamento que se não se coaduna com a maximização dos lucros “à la teoria neoclássica”, mas que no longo prazo sobrevivem, mostrando que o seu comportamento não é irracional. Considere, por exemplo, a REI, uma empresa americana que vende artigos de campismo e de desporto, e que mais uma vez não abriu portas no Black Friday porque considera que os funcionários têm direito a um fim de semana com a família. Este comportamento, aparentemente em desacordo como a maximização do lucro, atrai certos consumidores e pode no longo prazo trazer vantagens.
Isso será mesmo uma exceção ao modelo neoclássico? Ou será simplesmente que os donos da REI têm um dado conjunto de preferências (que inclui, entre outras coisas, querer que os seus empregados tenham tempo para estar com a família) e que agem racionalmente de forma a maximizar a utilidade que deriva de realizarem as suas preferências? É que aqui acho que é necessário distinguir duas coisas - ser "irracional" no sentido de não escolher a maneira mais adequada para atingir os fins que pretende; e ser "irracional" no sentido de pretender atingir fins "não-convencionais" (a mim parece-me que "irracional" só faz realmente sentido no primeiro caso; e a ideia de que as preferências são subjetivas até não me parece estranha ao pensamento neoclássico, pelo que me parece que ele pode viver facilmente com a segunda "irracionalidade").
Uma segunda escola de pensamento, advoga que os agentes económicos são inteligentes, fazem escolhas inteligentes, mas têm racionalidade limitada porque não têm toda a informação disponível. Neste caso, aplicar heurísticas e processos de escolha que são diferentes do processo de maximização pode fazer mais sentido e não vale a pena alterar o comportamento dos agentes por forma a que decidam melhor.
Esta parece mais ou menos o que eu escrevi no post anterior, com a diferença que aqui falam em informação limitada, e eu estava pensando mais em capacidade de processamento mental limitada.
Por último, existe uma escola de pensamento, popularizada por Daniel Kahnaman e Richard Thaler, que assume que os indivíduos são irracionais e que aplicam heurísticas nas suas decisões porque têm enviesamentos cognitivos e erram sistematicamente. Neste caso, assume-se que corrigir comportamentos é importante para que se gerem resultados melhores do ponto de vista do bem-estar.
Acho que há efetivamente um bom argumento que pode ser usado para, a partir do pressuposto de que os indivíduos são irracionais, achar que certas políticas públicas podem aumentar o bem-estar; e também há um péssimo argumento. O péssimo argumento é algo de género "
se os indivíduos fossem totalmente racionais, tomariam as melhores decisões; infelizmente, eles são irracionais, logo há espaço para políticas para mudar os seus comportamentos para seu próprio bem" (parece-me que a Sandra Maximiano está a apresentar uma versão deste argumento); porque é que acho que este argumento é péssimo? Porque parece-me ter implícito que as pessoas são irracionais na sua vida privada, mas (se estivermos a falar de políticas estatais para contrabalançar essa irracionalidade) já são racionais na altura de votar e escolher as políticas que vão corrigir a irracionalidade privada - sinceramente, isso não me parece fazer sentido nenhum, já que, se alguma coisa, até há mais razões para as pessoas serem irracionais como votantes: a) a quantidade de informação que têm que processar é muito maior; b) o custo de não tomarem a decisão melhor é menor, já que a probabilidade do seu voto decidir o resultado final é bastante reduzida (veja-se que mesmo nas
eleições parlamentares de Zanzibar de 1961, o eleitor que no circulo uninominal de Chake-Chake, Ilha de Pemba, votou no Partido Afro-Shirazi - dando-lhe, por 1538 contra 1537 votos, a vitória nesse círculo e elegendo o deputado que tornou, por 10 deputados contra 9, o PAS o maior partido no parlamento - não decidiu eleição nenhuma, já que a seguir formou-se uma coisa ainda mais complicada que a geringonça); c) há grandes instintos "tribais" - o nosso partido contra o deles - na política que turvam ainda mais a racionalidade do ato de votar.
Se estivermos a falar, não dos votantes, mas dos governantes mesmo (ou de todos os dirigentes de entidades privadas que se decidam a proteger as pessoas de si próprias - ao que me parece, as receitas "comportamentalistas" se calhar até têm sido mais usadas por privados bem-intencionados do que por Estados), também me parece haver motivos para supor que serão irracionais: além de toda a irracionalidade de qualquer ser humano, cargos de liderança tenderão a ser desproporcionalmente ocupados por pessoas com elevada autoconfiança e que tomam decisões sem grandes hesitações (afinal, os que hesitam e pensam muito antes de tomarem uma decisão tenderão mais frequentemente a perder oportunidades de serem nomeados ou eleitos para cargos - ou até a recusarem a ideia) e parece-me que essas pessoas, quase pode definição, serão mais dadas a tomar decisões "irracionais" (note-se que não me admirava que essas pessoas, se estejam sobrerepresentadas nos cargos dirigentes, também estejam sobrerepresentadas entre os completos falhados, por um mecanismo semelhante a
este).
Então qual é o bom argumento que eu acho que pode ser usado para propor políticas interventivas? Será o argumento "
se os indivíduos fossem totalmente racionais, a política que vamos por em prática não faria qualquer efeito, porque eles ajustariam o seu comportamento; felizmente, eles são irracionais, logo a nossa política vai funcionar porque os indivíduos não se vão ajustar - ou pelo menos não imediatamente - a ela"; um bom exemplo será todas aquelas discussões à volta da equivalência ricardiana, mas penso que também se aplicará às sobre ilusão monetária, ou talvez até mesmo à questão da rigidez nominal dos preços; indo à micro-economia, talvez possa ter alguma relevância para
aquelas discussões de "quem devia pagar a taxa audiovisual eram as empresas, não os clientes".
Porque é que eu digo que este é um bom argumento? Porque não implica que os decisores sejam mais racionais que o comum dos mortais: o raciocínio "
esta política vai ter efeito porque os indivíduos são irracionais e não vão alterar os seus atos" funciona perfeitamente mesmo que os próprios decisores não percebam que a política não funcionaria com indivíduos racionais (se calhar até funciona melhor, porque aplicam a política com mais convicção); e já agora, parece-me que se aplicará não só à irracionalidade tipo Kahnaman/Thaler mas também à irracionalidade tipo "informação limitada" ou "capacidade de processamento mental limitada".
Um exemplo interessante de como a economia comportamental pode afetar a teoria económica relaciona-se com a teoria da oferta de trabalho. De acordo com a teoria neoclássica, os indivíduos escolhem o tempo de trabalho e o tempo de lazer em função das suas preferências e da taxa salarial. Existem dois efeitos importantes, o chamado efeito substituição, que nos diz que os indivíduos trabalham mais, abdicando de horas de lazer, se a taxa salarial aumentar. Existe também o chamado efeito rendimento que mostra que quanto mais rendimento se tem mais se substitui o trabalho por lazer. Em geral o efeito substituição é dominante, explicando o facto da curva de oferta de trabalho ser positiva, até ao momento em que o efeito rendimento domina e a curva eventualmente sofre uma inflexão. Esta teoria é esteticamente bonita, mas tem dificuldade em explicar porque é que o efeito substituição é dominante e até quando é dominante. Mais, a teoria mostra que os indivíduos devem trabalhar menos se o salario baixar, um facto que não é observado na realidade, muito pelo o contrário.
Mostra? Imagine-se um modelo neoclássico em que a "função utilidade" é
U = T*ln(R), sendo
T o tempo livre e
R o rendimento (sim, o que dará utilidade não será tanto o rendimento, mas sim os bens que podem ser adquiridos com ele, mas acho que isso em nada afeta o resultado e torna a conta mais simples; e, para os mais puristas, esta "função utilidade" não pretende medir a utilidade, mas apenas comparar a utilidade entre diferentes combinações de
T e
R); imagine-se que o individuo tem 100 unidade de tempo disponíveis (que pode usar para trabalhar ou para outra coisa qualquer), e que
S é o salário por unidade de tempo; assim, a "função utilidade" poderia ser reescrita como
U = T*ln[S*(100-T)]. Maximizando a utilidade (
dU/dT=0), acho que o resultado será (se eu não me enganei nas contas)
S = e^[T/(100-T)]/(100-T). É verdade que, se estamos a tentar determinar como uma variação do salário leva a uma variação do tempo trabalhado, o lógico seria resolver a equação em ordem a
T; mas eu NÃO SEI resolver essa equação em ordem a
T e só a consigo resolver em ordem a
S - mas, de qualquer forma, penso que mesmo resolvendo em ordem a
S, dá para ver que o equilíbrio será que uma maior escolha por tempo livre corresponderá a um maior salário (ou, inversamente, uma escolha por trabalhar mais corresponderá a um menor salário). Isto, como digo, se não me enganei nas contas, o que é bem provável (mas, mesmo que tenha, de certeza que haverá "funções utilidade" hipotéticas em que uma redução de salário leva as pessoas a trabalhar mais).
Em termos gráficos, daria uma curva assim:
Um possível contra-argumento será algo como
"Miguel, o que você fez foi torturar os números e as variáveis até confessarem; provavelmente andou a inventar «funções utilidade» até lhe aparecer uma que desse os resultados que queria"; realmente foi, mas não acho que isso invalide as conclusões.
De qualquer maneira, nem precisaríamos de recorrer a um exemplo - afinal, é a própria Sandra Maximiano diz que a teoria neoclásica admite que em certas situações o efeito rendimento pode ultrapassar o substituição; se alguma coisa, acho são os neoclássicos que tendem a assumir que o efeito substituição predomina sobre o efeito rendimento que estão a intoduzir premissas ad hoc, que até podem ser empiricamente verdadeiras, mas sem uma fundamentação teórica sólida (como, aliás, a Sandra diz, quando afirma que a teoria "tem dificuldade em explicar porque é que o efeito substituição é dominante"); ou seja, parece-me que a questão do horário de trabalho poderá ser um problema para os economistas neoclássicos realmente existentes, mas não para a economia neoclássica enquanto modelo teórico.
A teoria comportamental, através de experiências laboratoriais e de campo têm mostrado que os indivíduos têm objetivos a alcançar no que respeita ao nível de rendimento desejado, ou seja, têm um alvo em mente, que em geral aumenta ao longo do tempo. Este alvo varia dependendo dos salários dos colegas pois por muito que o nosso salário seja, este sabe sempre a pouco se ganharmos menos que os nossos pares. Dada a existência de um rendimento alvo, se os salários se diminuírem é natural que a oferta de trabalho aumente para que o alvo continue a ser atingido. Mais, se o rendimento alvo aumentar, a oferta de trabalho aumenta mesmo sem aumentos salarias. O aumento de salários pode reduzir a oferta de trabalho apenas se esse aumento permitir que se atinja o rendimento objetivo com menos horas trabalhadas, o que tem acontecido em algumas economias desenvolvidas, onde aumentos salariais têm sido acompanhados com menos horas de trabalho semanais.
Eu até concordo com quase tudo o que é aqui dito, mas o problema é que me parece que a teoria comportamental não é precisa aqui para nada ou quase. Imagino que se escrevia:
Têm-se demonstrado que que os indivíduos têm objetivos a alcançar no que respeita ao nível de rendimento desejado, ou seja, têm um alvo em mente. Dada a existência de um rendimento alvo, se os salários se diminuírem é natural que a oferta de trabalho aumente para que o alvo continue a ser atingido. O aumento de salários pode reduzir a oferta de trabalho apenas se esse aumento permitir que se atinja o rendimento objetivo com menos horas trabalhadas, o que tem acontecido em algumas economias desenvolvidas, onde aumentos salariais têm sido acompanhados com menos horas de trabalho semanais.
As conclusões são quase as mesmas e já temos um cenário que me parece perfeitamente compatível com a visão neoclássica - o tal "rendimento alvo" mais não é que um caso extremo da ideia neoclássica da utilidade marginal decrescente (ter um "rendimento alvo" parece-me ser, simplesmente, ter um ponto a partir do qual a utilidade marginal de mais um euro de rendimento cai bruscamente, e foi mais ou menos isso que eu andei a tentar representar por uma função, ali acima).
Já agora, a respeito do horário de trabalho, se alguma coisa eu até suspeito que a curva inversa é a norma e não a exeção: não só pela tendência histórica para o crescimento dos salários vir usualmente de mão dada com a redução do trabalho - tanto diário/semanal (redução do horário) como anual (mais dias de férias) ou até "existencial" (sobretudo via entrada mais tardia no mercado de trabalho, embora aí possa ser também uma componente de procura e não apenas de oferta) - como pelas referências que, nalguma literatura, se encontram às queixas dos empregadores, sobretudo no princípio da Revolução Industrial e/ou nas economias mais atrasadas, de que os trabalhadores reagiam aos aumentos salariais trabalhando menos e mantendo o rendimento final constante. A única exceção talvez seja a do trabalho assalariado feminino (que ao longos das últimas décadas tem vindo a aumentar), mas mesmo aí creio que é mais o resultado de um choque cultural quase "one-time" que alterou bruscamente a curva de oferta de trabalho feminina a dada altura. Note-se que isto que estou a escrever só se aplica a aumentos permanentes e generalizados dos salários: se os salários numa dada profissão ou numa empresa específica aumentarem, muito provavelmente irá haver mais pessoas a querer trabalhar nessa profissão ou empresa (em vez de noutras); e se houver um aumento salarial numa dada estação do ano ou num dado ano, e se esse aumento for percecionado como ocasional, também será de esperar que as pessoas trabalhem mais nessa estação ou nesse ano, deixando o descanso para as alturas de baixos salários (este parágrafo já pouco ou nada tem a ver com a questão da economia comportamental, mas os meus leitores regulares já devem ter percebido que a curva invertida da oferta de trabalho é um dos meus temas recorrentes).